Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 18 -

O Clima

Em apenas duas frases o Papa Francisco resumiu o gigantesco  desafio que envolve o conceito “clima”. “O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível global é um sistema complexo, que tem a ver com as muitas condições essenciais para a vida humana”. (Laudato se, 23).

No decorrer dessas reflexões já insistimos o bastante que os bens da natureza são bens comuns. Sendo comuns todos tem o direito natural de usufruí-los, com destaque para o clima. E, novamente, sendo assim, constitui-se numa obrigação ética permitir o uso e fruto a qualquer pessoa pelo simples fato de ser um ser humano. Seria redundante  insistir neste momento com mais comentários.

A complexidade que envolve o conceito “clima” e seu significado como condição sem a qual a espécie humana não existiria, menos ainda subsistiria, é um dos maiores desafios para quem lida com a ecologia. A análise da natureza, a extensão e profundidade da ameaça do aquecimento global, acha-se tão bem caracterizado na Encíclica, que merece ser oferecida ao público na sua versão original. Entre os números 23, 24, 25  e 26 a Encíclica fala da questão.

(23) O clima é um bem comum, um bem de todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem  a ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não relacionar ainda com o aumento dos acontecimentos metereológicos extremos, embora não se possa  atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem em acentuam.. É verdade que há outros fatores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo polar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devido à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros). A sua concentração na atmosfera impede  que o calor dos raios solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.

(24) Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um círculo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção  de  parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e da decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbônico. Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo anidrido carbônico aumenta a acidez dos oceanos  e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser  testemunha de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida  do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras.

(25) As mudanças climáticas são um problema global de graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente  os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento, e seus meios de subsistência dependem fortemente das  reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura e os recursos florestais. Não possuem outras disponibilidades econômicas nem outros recursos que lhes permita adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar  situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais de proteção. Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afeta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e  dos filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações  diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal de perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.

26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem centrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos  poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido carbônico e outros gases altamente  poluentes se reduza drasticamente,, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis. Mais ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação. Entretanto, nalguns países, registraram-se avanços que começam a ser significativos, embora estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve também alguns investimentos em modalidades de produção e transporte que consomem menos energia exigindo menor quantidade de matérias primas, bem como em modalidades  de construção e restruturação de edifícios  para melhorar a sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe de se tornar onipresentes.  (Laudato si, 23,24,25,26)

A intenção do Papa ao escrever a “Encíclica Verde” foi chamar a atenção para o clima como um bem comum, como os outros dons da natureza; que a sua qualidade é fundamental para uma vida saudável; que a sua degradação põe em risco crescente pessoas populações e a espécie humana como  um todo; que urge rever o atual modelo  de civilização industrial e produtivo movido a combustíveis fósseis com alto potencial  de poluentes, para sustar  e reverter o processo de degradação ambiental; que são urgentes medidas preventivas e corretivas para diminuir  e se possível interromper o ritmo do aquecimento global; que entre as medidas globais é fundamental partir para um modelo energético menos ou nada poluente. Este cenário refere-se às alterações climáticas diretamente relacionadas com a interferência humana no processo.
Mas no nº 23 da Encíclica, como que de passagem e entre parêntesis, o Papa enumera “outros fatores (tais como vulcanismo, variações da órbita e do eixo da terra, o ciclo solar”). A essas causas somam-se outras, não citadas no documento, porém, de impacto profundo sobre a vida na terra. Referimo-nos à queda de meteoros, a mudança de curso das correntes marítimas e as glaciações. Os meteoros ocasionam perturbações climáticas mais ou menos graves numa frequência irregular, enquanto as outras duas causas são cíclicas.

As glaciações são por natureza períodos de longa duração de 40.000 a 100.000 anos, nos quais a temperatura média mundial cai entre 8 e 10 graus C. No intervalo de dois ciclos glaciais intercalam-se períodos interglaciais de temperatura média semelhante à nossa e com duração  média de 10.000 anos.

A explicação desses fenômenos cíclicos parece relacionar-se com o fato de os mares e oceanos funcionarem como reguladores térmicos. Quanto maior é o volume de água acumulada, tanto maior e mais abrangente é o seu potencial  de manter o equilíbrio térmico. Em outras palavras a oscilação da temperatura é menor. Esses fenômeno pode ser observado nos assim chamados clima continentais e marítimos, O clima marítimo é característico nas faixas costeiras e nas ilhas e o clima continental no interior dos continentes. No primeiro caso os extremos não são tão acentuados quanto no segundo.

Os oceanos que no seu nível máximo,  que  corresponde ao atual, chegam a 100 metros acima do nível do pico da glaciação. Esse fenômeno leva a dois efeitos. Em primeiro lugar equilibra melhor a temperatura, pois  o  potencial estabilizador é diretamente proporcional ao volume de água acumulada, evitando extremos acentuados. Em segundo lugar, um volume maior e uma superfície de evaporação mais extensa carregam a atmosfera com aumento da umidade relativa do ar acompanhada com a saturação da atmosfera e a intensificação das precipitações. Uma porcentagem sempre maior das precipitações cai na forma de neve cobrindo as montanhas mais altas, com um manto de gelo de centenas de metros de espessura que desce lentamente as encostas na forma de geleiras, que nada mais são do gigantescos rios de gelo. Na sua passagem cavam vales característicos em forma de U.  Os fragmentos de rocha, as morainas,  arrancados das margens e do fundo do vale são carregadas e empurrados pelo caudal de gelo até os vales e planícies mais baixas, onde  as geleiras derretem dando  origem a arroios e rios. O material sólido fica depositado no local onde a geleira derrete. Em latitudes mais próximas ao  círculo polar os mantos de gelo descendo das montanhas cobrem também as planícies. Resultam daí campos ininterruptos de gelo e neve, cobrindo milhões de quilômetros, principalmente no hemisfério norte, onde as massas continentais avançam até além círculo polar ártico, emendando o gelo do continente com a calota polar propriamente dita. Com centenas de metros de espessura inviabilizam praticamente toda  vida terrestre. Animais e vegetais migram para o sul ou então são extintos. Na América do norte os campos de gelo avançaram até o centro norte dos Estados Unidos. Assim todo o centro norte do país, mais o Canadá, Alasca, as ilhas do Ártico e a Groenlândia, permaneceram sepultados sob uma espessa camada de neve e gelo de centenas de metros de espessura.  O mesmo aconteceu  com a Euro-Ásia central e do norte. Com tamanho volume de água retido na forma de gelo e neve, os mares e oceanos baixaram cerca de 100 metros em relação ao nível atual. Como consequência diminuiu a umidade da atmosfera e o aquecimento dos oceanos subiu com  diminuição significativo do volume das suas massas de água. Um ciclo glacial se fecha e começa outro. A maior parte das regiões onde hoje se concentram as assim chamadas civilizações do primeiro mundo, não passavam de gigantescos campos de gelo de centenas de metros de espessura. A fronteira sul desses territórios pode ser traçada com referência a blocos de rocha – os blocos  erráticos – carregados pelas geleiras de centenas de quilômetros de distância. Ficaram para trás quando os campos de gelo recuaram par o norte com o final da era glacial. Aos blocos erráticos são também marcadores do limite extremo do avanço do gelo, as morainas. Não são nada mais do que os entulhos dos vales cavados pelo avanço das geleiras e deixados para trás com seu recuo para o norte.

No decorrer do último milhão de anos sucederam-se quatro ciclos glaciais, ou quatro glaciações batizadas com nomes  de localidades na Europa e na América do norte. Da mais antiga à mais recente foram denominadas de Günz–Mindel-Riss-Würma na Europa. Nos Estados Unidos  também da mais antiga à mais recente receberam os nomes de Nebraska-Kansas-illinois-Wisconsin. A diferença média de temperatura entre o pico da glaciação e o interglacial oscilou em torno de 8 graus C. A soma da duração de um ciclo glacial  durou por um  espaço de tempo de em torno de 100.000 anos. As eras frias, ou era glaciais, prolongaram-se por  cerca de 90.000 anos e o interglacial quente por 10.000 anos. A primeira glaciação ocorreu por volta dos 700.000 anos; a segunda 500.000 anos; a terceira 230.000 anos; a quarta 70.000 anos com o pico máximo por volta dos 18.000 anos. A partir de 15.000 anos fala-se em pós glacial. Supondo que a lógica da natureza continue deveríamos estar entrando num período glacial. Ao que tudo indica, porém a temperatura média da terra ainda está subindo. Há certamente uma relação entre esse fenômeno e interferência do homem. A dúvida fica por conta de eventos naturais ainda não devidamente identificados.

No decorrer do último período glacial a humanidade ficou concentrada, na Europa em volta do Mediterrâneo, Norte da África, o Oriente Próximo e Médio, no centro sul do Oriente Remoto e na Indonésia. Vale lembrar que com o final da era glacial, por volta de 15.000 anos passados começa a expansão da agricultura. As aldeias dos agricultores multiplicaram-se a partir do Egito na África e da Mesopotâmia no Oriente Médio e, no Oriente Remoto, a partir do centro sul da China. A agricultura com seu potencial de alimentar com segurança populações mais numerosas concentradas em espaços geográficos menores, teve como consequência um constante superpovoamento. Os excedentes assim gerados avançavam sobre sempre novas fronteiras agrícolas. Na medida em que os campos de gelo do norte derretiam e deixavam descobertas mais e mais terras aráveis, os agricultores subiram para povoar todo o centro e norte da Europa, deitando as raízes da civilização ocidental. Mas não é esse assunto que pretendemos desenvolver aqui, A intenção é mostrar como as oscilações climáticas são um dos fatores determinantes mais decisivos, influenciando diretamente no rumo da evolução histórica das civilizações.

Acontece que as leis que regem a longo prazo as relações  do homem com seu habitat natural, são as mesmas que marcam o compasso nas situações de curto prazo. E é do curto prazo de que estamos falando que cobre os últimos dois séculos com destaque para os 100 anos finais. Nesse período foram desenvolvidas tecnologias cada vez mais eficientes postas a serviço das demandas que também se multiplicaram e tornaram-se mais complexas. Esta é a face indiscutivelmente positiva do modelo. Em contrapartida ele gerou um “senão” preocupante. Ele é movido por energias oriundas de combustíveis perigosamente agressivos ao meio ambiente pela emissão de gases e resíduos poluentes. De outra parte as tecnologias permitem a invasão e destruição em grande escala dos ecossistemas naturais, substituindo florestas e campos naturais por pastagens e plantações de soja, milho, sorgo, algodão cana de açúcar, mandioca e outras culturas. Também para esse setor vale a afirmação que os benefícios que essa atividade trás em favor do homem são benvindos. Não se pode deixar, porém, de reconhecer que também vem acompanhado de um “senão” cujas consequências somam-se ao “senão” anterior. Interferem  direta e indiretamente no meio ambiente na “nossa casa”, preocupação  maior do Papa nessa passagem da “Encíclica Verde”. É isso que causa uma das maiores dores de cabeça no atual momento histórico: o aquecimento global e seus reflexos sobre a vida na terra.

Sobre o aquecimento global em si os cientistas que a ele se dedicam são praticamente unânimes sobre a extensão dos danos que acompanha o processo. Há-os que suspeitam que a redução das áreas e volumes de gelo, principalmente do Ártico, alteraria o curso das correntes marítimas. O impacto a longo prazo sobre o clima no hemisfério norte terminaria num resfriamento exagerado  daquela metade da terra. O hemisfério sul, ao contrário, sofreria um aumento também excepcional de temperatura. Esse desequilíbrio terminaria de um lado em tornados e ciclones com chuvas catastróficas em outas regiões estiagens extremas. Uma outra suspeita dos cientistas consiste num possível retardamento de uma nova era glacial, prolongando o interglacial além do esperado. O argumento baseia-se no fato de, se o atual ciclo glacial for de duração  semelhante os do passado, a quinta era glacial já deveria estar em andamento. Especulações à parte, tudo isso não resolve a situação momentânea criada pelo aquecimento global.

Penso que seja oportuno lembrar que o clima é um dos grandes artistas responsáveis pela modelagem da fisionomia da terra e de todas as formas de vida. Para tal as marcas dos seus cinzeis são tão  antigos quanto a própria crosta sólida do planeta. Mais de uma dezena de bilhões de anos se passou para chegarmos ao momento atual. Nessa mega história o que significam os 200 anos de que falamos mais acima, mais ainda os últimos 100?  Considerando agora o último milhão de anos com suas eras glaciais e a humanidade vivendo e sobrevivendo aos extremos de temperatura, faz concluir que os 200 anos continuam sendo um momento da história e as possíveis catástrofes climáticas não passam de episódios pontuais que dificilmente interromperão a caminhada da humanidade ao encontro do seus destino.


É claro que o cenário muda radicalmente no momento em que imaginarmos mudanças tão drásticas que levam à extinção do último representante da espécie humana. Improvável mas não impossível. O impacto de um meteoro gigante reduzindo a terra a fragmentos ou um vulcanismo universal, poderiam levar a esse efeito. Como se pode concluir, a  hipótese da extinção global da vida é remota, improvável, mas não impossível. Significaria o fim do mundo em toda extensão do termo.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 17 -

Depois de tomar conhecimento mais genérico dos solos é oportuno refletir um pouco mais sobre o seu significado ecológico e a vida que  neles prospera. Em outras palavras. O que significa a invasão destruidora desse mundo fantástico com procedimentos agrícolas inadequadas valendo-se  indiscriminadamente de agrotóxicos, fertilizante, queimadas, etc. Na agenda dos debates sobre ecologia costumam predominar temas que chamam a atenção pelo apelo econômico, político, ideológico e outros politicamente corretos e não levam em conta o preço que o solo paga por isso. O Papa  chamou  em poucas linhas a atenção sobre essa perigosa bomba-relógio armada com a agressão irresponsável dos solos. “A isto vem ajuntar-se a poluição, que afeta a todos causada pelo transporte, pelo fumo  das indústria, pela descarga de substâncias que contribuem  para a acidificação dos solos e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral”).  (Laudato se, 20).

A seguir a Encíclica aponta para outros subprodutos  da atividade industrial, da concentração de milhares e milhões de seres humanos em poucos quilômetros quadrados. São nossos velhos conhecidos as inevitáveis realidades negativas do dia a dia.  A Encíclica enumera entre os principais vilões as centenas de milhões de toneladas de resíduos anualmente descartados para o meio ambiente. “Resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioativos. A terra, “nossa casa”, parece transformar-se num imenso depósito de lixo”. (Laudato se, 21)

A pergunta é; de que forma enfrentar os problemas causados pelo acúmulo assustador de resíduos de toda  espécie? Diminuir a curto prazo significativamente a sua produção até um nível aceitável, faria cair a oferta dos bens de consumo e serviços que alimentam o atual modelo de civilização. Interrompê-lo, nem pensar. Pelo visto o problema não tem solução a curto prazo. A médio e longo prazo a própria natureza ensina como agir. Basta observar como funciona um ecossistema natural. Num perpétuo “fieri – fazer-se”, a natureza edificada sobre seus ecossistemas, flui como um caudal sempre se renovando sem perder o equilíbrio. A Encíclica resumiu o círculo virtuoso que auto alimenta e preserva o equilíbrio da natureza como um  ecossistema global e cada um dos seus ecossistemas em particular. “Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros,  que fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a nova geração de vegetais. (Laudato si, 22).

Esse é o círculo virtuoso que mantém indefinidamente a evolução renovadora e a estabilidade da biosfera como um sistema global e seus subsistemas. Ressalvadas as peculiaridades, esse poderia ser um bom modelo para a auto sustentabilidade das civilizações. Acontece  que a atividade humana, com destaque para a industrial, resume-se nas duas primeiras etapas do modelo oferecido pela natureza. Retira os recursos naturais, os transforma em bens de consumo, atende às necessidade das pessoas, mas deixa de reaproveitar volumes gigantescos amontoados nos lixões, ou simplesmente jogados na beira das estradas, nos rios e nos oceanos. Considerados os resíduos não orgânicos, o círculo virtuoso não fecha. O desafio maior consiste, portanto, num reaproveitamento pela reciclagem de mais de 80% desses resíduos. A Encíclica insiste na  urgência de “adotar um modelo circular que assegure recursos para todos e para as gerações futuras” (Laudato se, 22)

0 nó maior da questão está a curto e médio prazo nos resíduos não biodegradáveis como plásticos,  vidros, cerâmicas e similares. A esse complexo de poluentes vem somar-se as emissões de gases com destaque para o carbônico, considerado o maior vilão do aquecimento global. Esse quadro não deixa de ser preocupante. A soma de todos esses fatores  e seus efeitos sobre “a nossa casa”, reclamam medidas globais urgentes tanto preventivas quanto corretivas.  Pelo fato de estarmos  frente a uma ameaça global que implica na saúde da terra e da viabilidade da própria espécie humana, as medidas têm que ser de caráter também global. Não é aqui  o lugar para aprofundar a identificação dos responsáveis. Já que o problema é global o desafio para as iniciativas cabe às personalidades e organizações que exercem liderança em nível internacional. Incluem-se nessa cruzada governantes, detentores do poder político, econômico, religioso. De momento as iniciativas mostraram-se viciadas por interesses geopolíticos, geoeconômicos, militares, ideológicos. Os resultados estão sendo pífios como demonstram os protocolos assinados no Rio de Janeiro, Kyoto e Paris.

Apesar de todo esse quadro pouco animador, uma tênue luz indicando o fim do túnel faz com que não deixemos de acreditar no quase impossível. A justiça manda que em nível mundial não se pode deixar de mencionar o Papa Francisco. Como líder máximo na formação de opinião de mais de um bilhão de católicos vem prestando uma colaboração preciosa por meio da “Encíclica  Ludato se”. Já que este documento é o objeto central dessas reflexões nesse momento basta citá-lo. O Patriarca Bartolomeu líder de  400 milhões  de cristãos ortodoxos, soma  a sua maneira de ver a natureza à do Papa Francisco. Embora nenhum dos dois líderes religiosos estivesse presente no encontro de Paris, seu significado como formuladores de opinião de no mínimo um bilhão e meio de cristãos, não é nada desprezível.

Não se podem esquecer as muitas iniciativas em andamento sob o rótulo de “agricultura orgânica” em plena expansão. Merece destaque especial a horticultura orgânica que ganha sempre mais adeptos. Presta um serviço difícil de avaliar para a qualidade da alimentação de um lado e do outro para a saúde e o equilíbrio do solo. Temos aqui “um modelo circular de produção” (Laudato se, 22) sugerido pela Encíclica. O solo organicamente em equilíbrio e por isso mesmo fértil, alimenta as hortaliças, estas chegam sem agrotóxicos à mesa do consumidor e os resíduos e sobras  -  raízes, folhas, caules e outros - voltam a ser incorporados no solo. Fecha-se assim o círculo virtuoso ao qual nos referimos há pouco. Todos saem ganhando: os solos, a qualidade dos produtos, a alimentação do consumidor e de cobro a rentabilidade do horticultor. Já é um bom começo.

Uma terceira boa notícia vem do agronegócio um dos setores mais estigmatizados como agressor e degradador em grande escala do meio ambiente. O modelo vem conquistando terreno sob a sigla ILPF – integração lavoura - pecuária – floresta. O pesquisador João Kluthcouski, pesquisador da Emprapa e no meio rural conhecido como “João K”, para evitar confusão com “JK” – Juscelino Kubischeck. O modelo, depois dos primeiros resultados animadores, ainda se encontra em teste na fazenda Santa Brígida em Ipemeri – Goiás. Como muitas outras essa fazenda era mais uma dessas grandes propriedades – 900 hectares – da região, fortemente degradas e de baixa produtividade. A dona da propriedade, a dentista Marize Porto Costa assumiu-a com o falecimento do marido. Sem nenhum conhecimento nem experiência no ramo agropecuário, recorreu à Emprapa. O diretor da época entregou-lhe um livro sobre Integração Lavoura – Pecuária e apresentou-a ao autor o João K. Ele opinou que, para reverter a situação, tudo tinha que ser feto ao contrário do usual nas fazendas da região. Ela apostou no pesquisador e “o milagre” foi acontecendo. Em resumo: Ele mandou começar por revirar os pastos degradados e  corrigir a acidez dos solo. A primeira colheita foi de soja surpreendendo pela produtividade. Depois da soja veio o sorgo que depois de crescido serviu de pasto de engorda do gado. Na seguinte etapa a área foi semeada com milho associado à braquiária. Enquanto o milho se desenvolvia as raízes da braquiária vascularizavam o solo facilitando a penetração dos nutrientes para fertilizá-lo. Colhido o milho voltou o gado para a engorda no inverno, fechando o círculo virtuoso. Os resultados passaram de todas as expectativas, tanto na produção de soja e milho, quanto no rendimento de duas engordas de gado ao ano. O recurso a  defensivos agrícolas  baixou a um nível insignificante. Faltava incluir a floresta no experimento. João K sugeriu plantar eucalipto (poderia ser outra espécie) por toda a propriedade, em fileiras deixando corredores de 24 metros de largura, destinadas no verão para o milho e a braquiária e no inverno como pastagem de engorda para o gado.

João K explica que o modelo ILP – Integração-Lavoura-Pecuária – pode ser implantado em qualquer tipo de solo, de clima e tamanho de área. Para acrescentar o F – Floresta – o tamanho da área é um limitador. De outra parte, como é aplicável à grande propriedade e as propriedades familiares de poucos hectares, vem a ser um fator que contribui para superar a avaliação preconceituosa do mundo do agronegócio como predatório, explorador, capitalista e por aí a fora, enquanto a agricultura familiar se aproxima do ideal de uma situação socialmente mais justa e economicamente mais saudável. A lógica dessa linha de avaliação leva à conclusão que as duas modalidades não são mutuamente excludentes, quando de fato são mutuamente complementares, especialmente num país como o Brasil que dispõe de milhões e mais milhões de hectares de terras aráveis, localizadas em latitudes e características geográficas as mais variadas. Os bons resultados de ambos os modelos somam-se em vez de se excluir. A pequena propriedade com sua agricultura familiar atende à demanda interna. Abastece a mesa dos brasileiros com feijão, batata, aipim e hortaliças de tudo que variedade. A prioridade do agronegócio é a exportação de alimentos para cobrir  a demanda mundial. Contribui também com uma parte substancial para equilibrar a balança comercial com as exportações e reforçar o produto interno bruto. É irracional e suicida a pregação contra o agronegócio com os argumentos fortemente viciados com ideologias, com os quais normalmente se argumenta. O agronegócio e a agricultura familiar são complementares e somam-se quando do atendimento das duas necessidades prioritárias do país: o abastecimento interno e a pressão crescente  para geração de divisas externas.


Concluindo, há boas razões para não perder as esperanças perante os danos causados à natureza, à “nossa casa”.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 16 -

Motivos para inquietação
Depois de lembrar as bases científicas, filosóficas, teológicas e estratégicas  para ações em favor do meio ambiente, o Papa aponta para as áreas de maior relevância e risco a serem privilegiados.

Poluição e mudanças climáticas.
A poluição sob todas as suas formas é o maior vilão da degradação ambiental.  A Encíclica começa destacando os poluentes atmosféricos. Eles afetam compulsoriamente a todos pelo simples fato de a vida depender da respiração. Os danos causados pela inspiração do ar poluído vem a ser o maior vilão dos males que afetam os pulmões e como tal reduzem drasticamente a qualidade de vida e terminam por comprometê-la. Quem mais se ressente de uma atmosfera empestada são as populações menos favorecidas, Muitas se aglomeram próximas a locais  de fontes produtoras de poluentes atmosféricos. Dia e noite inspiram a fumaça de incêndios em depósitos de lixo, queimadas da vegetação seca e outros mais. Especialmente nocivos são as emissões de gases tóxicos, com destaque para o gás carbônico, liberado na atmosfera por milhões de veículos que entopem as ruas das cidades e congestionam as estradas. Em casos extremos, que se tornam cada vez mais frequentes, a população obriga-se a usar máscaras para não comprometer de vez os pulmões e a qualidade de vida. Quando chega a esse ponto ninguém de sã razão ousa ficar indiferente. Uma intervenção radical no modelo de produção  faz-se então urgente. Acontece que uma decisão desse porte pressupõe uma mudança também não menos profunda na mentalidade dos  responsáveis pela formulação e execução das políticas econômicas, industriais e do agronegócio. Mas, esse assunto já foi objeto de uma reflexão mais acima. A Encíclica está cheia da razão quando lembra que a “exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres e provoca milhões de mortes prematuras”. (Laudto se, 20) Lembramos ainda que os poluentes atmosféricos, além de afetarem diretamente a saúde das pessoas, são vistos como os grandes vilões do aquecimento global.

Uma outra categoria de poluentes são aqueles que afetam a saúde e o equilíbrio dos solos. Fazem parte deles os resíduos industriais, quantidades gigantescas  de lama tóxica sub produto da mineração. O rompimento da barragem de lama em Mariana, Minas Gerais é uma amostra do que acontece quando não se tomam a devidas precauções. Mais de 100 quilômetros do leito e das margens do Rio Doce estão mortos. Para recuperar a água contaminada, o solo do leito do rio e margens e os ecossistemas do rio serão necessárias décadas, sem contar aquelas espécies irremediavelmente perdidas. Esses tipo de agressão somada ao uso generalizado de agrotóxicos, inseticidas, pesticidas, herbicidas, fertilizantes químicos, fungicidas e outros do gênero, agridem severamente  a micro e nano fauna e flora dos solos e a exterminam parcialmente  Poucos tem uma noção mais ou menos clara da natureza, composição e fina calibragem dos ecossistemas que dão vida e fertilidade para os solos. O chão em que pisamos, aparentemente inerte, fervilha com um número assombroso de espécies de microrganismos. Esse micro e nano mudo  pouco ou nada conta quando se avaliam questões ambientais  e se propõem estratégias e ações concretas de manejo.

Além de ignoradas essas formas de vida que fazem do solo um gigantesco e complexo ecossistema, os cientistas não identificaram até o momento nem 10% delas. São de pasmar os números registrados por Edward Wilson no seu livro. Custaria  acreditar se não partissem de um especialista  da sua envergadura. O panorama por ele desenhado é resumidamente  esse. O número total de espécies vivas, plantas,  animais e micro organismos situa-se entre 1,5 e 1,8 milhões. A estimativa total conforme a “Avaliação da biodiversidade global” de 1995, oscila entre 3,6 a 112 milhões de espécies. O próprio conhecimento das categorias de animais e plantas superiores deixa muito a desejar. A situação complica-se com os peixes. A precariedade no conhecimento dessa categoria fica clara com a distância entre a avaliação mínima de 15.000 e  a máxima de 40.000 espécies.

O desafio para a identificação e classificação das espécies vivas aumenta na medida em que se desce ao nível dos microrganismos. Conforme Wilson “as bactérias e os micróbios semelhantes a bactérias, chamados “archea” são a matéria obscura do universo vivo da terra”. (Wilson, 2008, p. 135). Ainda, pelos dados registrados pelo autor, em 2.002 o número de espécies já catalogadas chegava a 6.288. Tomando como base que em cada grama de  solo fértil proliferam 10 bilhões dessas nano criaturas, conclui-se que o  que já foi identificado é uma parcela mínima desse universo. Estimativas feitas por especialistas, falam em 4 milhões de espécies que podem ser encontradas numa tonelada de solo fértil. A respeito disso Wilson observa.

Pelo menos 700 espécies vivem e se multiplicam como simbiontes na boca dos ser humano. Estão adaptados  à vida nesse habitat, nas vastas (para as bactérias) planícies e cânions  dos nossos dentes e da nossa língua, onde se acredita que contribuam para a nossa saúde oral ao eliminarem bactérias patogênicas. Pode parecer estranho pensar que o ser humano está em conluio com esses micro organismos, mas a verdade vista de outra maneira é ainda mais estranha; cada pessoa abriga mais células bacterianas em seu corpo do que células humanas. Se a classificação zoológica se baseasse na preponderância de certas células o ser humano seria classificado como um ecossistema bacteriano. (Wilson, 2.008, p. 136).

E para completar o mapa biogeográfico das bactérias não é preciso ir longe. Basta vasculhar alguns metros quadrados do chão debaixo dos nossos pés, num parque, numa floresta virgem ou num campo natural. O manto de solo de aproximadamente  3 quilômetros de espessura abriga um fantástico número de espécies de micro organismos. Os cientistas levarão séculos para identifica-los nos seu conjunto, se é que essa façanha pode ser levada a bom termo num futuro remoto. A quantidade, a variedade e a complexidade desse nano universo vivo, que faz com que o chão em que pisamos seja um ecossistema gigantesco, intrincado e de alta resolução. Somando às singularidades apontadas, falta chamar a atenção ao fato de que a biomassa total que prolifera nos solos e subsolos, supera em volume toda a biomassa encontrável na superfície. “Se por algum motivo a superfície terrestre fosse queimada até torrar, a vida que há por debaixo dela provavelmente subsistiria. Então, quem sabe, daqui a um bilhão anos,  talvez, dali poderiam evoluir novas formas de vida capazes de  repovoar a superfície”. (Wilson, 2008, p. 136). (Para mais detalhes a respeito recomenda-se especialmente o cap. 13 de (“A Criação – como salvar a vida na terra)”.


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 15 -

Por onde começar?

A salvação da vida na terra, o cuidado com o meio ambiente, a recuperação do que foi danificado e frear as agressões a “nossa mãe e pátria”, pressupõe educação. Não uma educação qualquer, mas uma educação que conscientize as pessoas da sua inserção existencial na natureza; uma educação que mostre como fazem parte e dependem para a vida e a morte do ambiente natural em que passam a sua existência; uma educação que alerta as pessoas sobre as consequências  da exploração fora de controle dos recursos  naturais; uma educação que convença as pessoas que a natureza é um bem comum; uma educação que, em sendo um bem comum, todos indistintamente tem o mesmo direito de usufruir das dádivas da natureza e ao mesmo tempo o dever de zelar por elas; e para concluir, uma educação que convença que estamos diante de uma questão que implica em responsabilidade ética e moral.

Não há necessidade de insistir que a educação  ambiental oferece desafios de proporções incomuns. Acontece que a humanidade  neste começo de milênio vive longe e afastada da natureza. Salvo raras exceções, quase como que curiosidades antropológicas, os humanos passam a vida na total artificialidade. Já não são capazes de  distinguir uma ovelha de uma cabra ou um pé de mandioca de um pé de milho. Contato e familiaridade só com cães, gatos e pássaros de  gaiola, por sua vez caricaturas, frutos da domesticação e do cativeiro. Mas, apesar de toda a artificialidade em que o povo vive nas metrópoles e megalópoles, debaixo das cinzas  que a civilização acumulou, continua viva a brasa do vínculo com o chão original. Na menor brecha que  se abre no quotidiano urbano, a brasa transforma-se em braseiro relembrando essa relação atávica. Edward Wilson descreveu assim esse fenômeno.

Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e jardins, nos esportes de caça e pesca, tão estranhos (pensando bem). Os  americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos profissionais,  e ainda mais tempo nas áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e reservas naturais   -  isto é, nas parte que permanecem intactas  -  gera uma renda substancial, da ordem de 20 bilhões de dólares, ao Produto Interno Bruto do país. A televisão, o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da natureza virgem. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo localizada em um ambiente pastoral natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. Observar pássaros se tornou um importante hobby e uma próspera indústria. Ser naturalista não é apenas uma honrosa atividade, e sim um honroso estado de espírito. (Wilson, 2.008, p. 159). (verificar a repetição)

O cientista citado tem como referência a formação de “naturalistas”. O “estado de espírito” de que deve caracterizar o verdadeiro naturalista cabe perfeitamente quando o assunto é “salvar a vida na terra”, ou salvar “a nossa casa”. O compromisso com esse salvamento supõe que as pessoas tenham interiorizado a essência do conceito natureza, como sendo a “nossa casa”, a “nossa mãe e pátria”. Em outras palavras. Esses conceitos revelam um “estado de espírito” nas pessoas que de fato chegaram a esse nível de relação com o ambiente natural. São muito mais do que zoólogos, botânicos, geógrafos, geólogos ou ambientalistas especializados. São amantes do chão em que pisam, enamorados das paisagens naturais que os rodeiam, apaixonados pela arte pintada, esculpida e desenhada em todos os detalhes a seu redor,  enlevados pela harmonia dos panoramas e a sinfonia dos sons, e sobretudo, empolgados pelo belo que envolve os fenômenos naturais. Esse estado de espírito permite perceber que o chão que gerou a espécie humana e a fez acompanhada de animais e plantas como parceiros de jornada, é sagrado. Por essa razão é que o Papa Francisco definiu a natureza como “nossa casa” e Francisco de Assis os animais e as plantas como “irmãos e irmãs”. Devaneios românticos ou desvios místicos indevidos que deformam a visão da realidade objetiva da natureza? Penso que não pois, assim, à avaliação quantitativa da natureza pela ciência soma-se o conteúdo qualitativo sugerido pela intuição e a percepção sensorial. Cérebro e coração, razão e emoção complementando-se resultam no “estado de espírito” de que estamos falando.

Posta nesses termos a relação do homem com a natureza deparamo-nos com a pergunta chave da qual depende a médio e longo prazo  o sucesso ou fracasso de qualquer iniciativa em favor dela. Dito de outra maneira, qual o caminho para alguém perceber e avaliar a natureza como um “estado de espírito?”. Educação é a resposta, curta, porém, prenhe de desafios de bom tamanho.

Para início de conversa é preciso ter bem claro que falamos em educação e não reeducação. Nesse caso o alvo da educação são as crianças a começar pela primeira infância. Quanto mais cedo tanto melhor.

“A ascensão começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos.  de vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos  -  tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres. (Wilson, 2.oo8, p. 158)

Não há necessidade de um esforço maior de imaginação para concluir que o resultado desse tipo de aprendizado, termina numa simbiose da alma da criança com seu meio geográfico. Pela visão, ouvido, tato, olfato e gosto, o ambiente, por assim dizer, não se transforma numa segunda natureza, mas permeia o tecido todo do seu ser íntimo, terminando numa amálgama existencial, enfim num estado de espírito. A esse aprendizado em que a natureza é escola e mestre, soma-se o ensinamento dos mais velhos. Cabia a eles passar para as crianças as tradições inspiradas na natureza e a distinguir as plantas, frutas, raízes e tubérculos comestíveis dos  não comestíveis. Familiarizavam-se igualmente com os animais, seus hábitos, sua utilidade como também os riscos que ofereciam. À relação utilitária com o meio geográfico somava-se a identificação simbólica consagrada pela tradição e aplicada a plantas, animais, acidentes geográficos, fenômenos  metereológicos e astros, com destaque para o sol e a lua. O coroamento desse aprendizado vinha com as crenças mágicas e religiosas. Da soma de todas essas informações e conhecimentos resultava a cosmovisão, que nada mais é do que a forma singular como cada tradição concebe a sua inserção existencial no entorno ambiental em que constrói a sua identidade.

Foi nesse cenário, vivendo em simbiose com a natureza virgem, original e intata, que a humanidade passou acima de 95% da sua história. Essa relação entrou num processo irreversível de distanciamento, com a  revolução agrícola e pastoril. Darcy Ribeiro chamou-a   de “revolução dos alimentos” e Edward Wilson de “a primeira traição à natureza”. A visão aparentemente paradoxal do julgamento do antropólogo e do profundo conhecedor do funcionamento dos ecossistemas, deixa às claras a dupla face dessa “Revolução”. De um lado abriu o caminho sem volta para o controle e multiplicação dos recursos naturais e respectivas tecnologias de apoio. De outro lado a humanidade foi-se distanciando e desenraizando  do chão da “sua mãe e pátria”. Edward Wilson resumiu assim essa transição.

Foi então que, depois de milhões de anos dessas existência, a revolução agrícola retirou a maioria das pessoas do habitat onde seus antepassados tinham evoluído. A agricultura  prometia multiplicar-se e atingir uma densidade  populacional mais alta, porém ao preço de acorrentá-la a um ambiente muito mais simples. O ser humano passou a depender de um número drasticamente reduzido de plantas e animais que podiam ser cultivados em ambiente biologicamente pauperizado, por meio de trabalho repetitivo. À medida que as populações aumentavam, sustentadas pelos excedentes agrícolas, e migravam para vilas e cidades, as pessoas iam-se afastando mais e mais do seu ambiente ancestral. Hoje a maior  parte da humanidade  reside em um mundo fabricado artificialmente. O berço, o lar inicial da nossa espécie foi quase que esquecido por completo. (Wilson, 2.008, p. 158-159)

Ninguém de sã razão, muito menos o Papa Francisco, defende um retorno utópico a um passado de 15.000 anos passados. Postula-se, isso sim, o justo e indispensável equilíbrio no uso e fruto dos recursos naturais. Para tanto, requer-se uma educação que capacita as pessoas a perceberem, e acima de tudo, orientarem a sua maneira de ser e agir, dentro desses parâmetros. Na atual conjuntura mundial fazem falta pessoas dotadas de senso do responsabilidade para com “a casa” em que moramos. Estão sobrando técnicos frios, exploradores gananciosos, políticos interesseiros e ecologistas a serviço de ideologias duvidosas.


O desafio maior da educação de hoje resume-se em assumir para valer a tarefa de formar uma nova geração que volte a sentir-se existencialmente inserido na “mãe e pátria” e por isso mesmo comprometida com “a casa” na qual mora e que lhe oferece sustento e abrigo. Voltamos a insistir que o esforço da educação ambiental deve acontecer na educação infantil e fundamental. “O pepino se torce de pequenino”, ensina a sabedoria popular. Convém lembrar que a educação de que falamos é responsabilidade da família, da escola e da comunidade. Pressupõe-se para tanto que essas instâncias tenham consciência da sua inserção existencial na natureza. É fundamental insistir que o meio ambiente é pela sua própria natureza um bem comum e, em o sendo, implica em responsabilidade solidária no uso e fruto de suas dádivas. Dito de outra maneira. O que deve motivar atitudes e ações chama-se compromisso ético e responsabilidade moral, como norma universal de ação. Felizmente já se detectam sinais nesse sentido. O  Papa mostra otimismo. “Depois de um período de confiança irracional no progresso e na capacidade humana, uma parte da humanidade vive num clima de maior conscientização. Nota-se  uma crescente sensibilidade no relacionamento com a natureza e cresce um sincero sentimento de preocupação pelo que está a acontecer  com nosso planeta. (cf. Laudato se, 19).