Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 15 -

Por onde começar?

A salvação da vida na terra, o cuidado com o meio ambiente, a recuperação do que foi danificado e frear as agressões a “nossa mãe e pátria”, pressupõe educação. Não uma educação qualquer, mas uma educação que conscientize as pessoas da sua inserção existencial na natureza; uma educação que mostre como fazem parte e dependem para a vida e a morte do ambiente natural em que passam a sua existência; uma educação que alerta as pessoas sobre as consequências  da exploração fora de controle dos recursos  naturais; uma educação que convença as pessoas que a natureza é um bem comum; uma educação que, em sendo um bem comum, todos indistintamente tem o mesmo direito de usufruir das dádivas da natureza e ao mesmo tempo o dever de zelar por elas; e para concluir, uma educação que convença que estamos diante de uma questão que implica em responsabilidade ética e moral.

Não há necessidade de insistir que a educação  ambiental oferece desafios de proporções incomuns. Acontece que a humanidade  neste começo de milênio vive longe e afastada da natureza. Salvo raras exceções, quase como que curiosidades antropológicas, os humanos passam a vida na total artificialidade. Já não são capazes de  distinguir uma ovelha de uma cabra ou um pé de mandioca de um pé de milho. Contato e familiaridade só com cães, gatos e pássaros de  gaiola, por sua vez caricaturas, frutos da domesticação e do cativeiro. Mas, apesar de toda a artificialidade em que o povo vive nas metrópoles e megalópoles, debaixo das cinzas  que a civilização acumulou, continua viva a brasa do vínculo com o chão original. Na menor brecha que  se abre no quotidiano urbano, a brasa transforma-se em braseiro relembrando essa relação atávica. Edward Wilson descreveu assim esse fenômeno.

Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e jardins, nos esportes de caça e pesca, tão estranhos (pensando bem). Os  americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos profissionais,  e ainda mais tempo nas áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e reservas naturais   -  isto é, nas parte que permanecem intactas  -  gera uma renda substancial, da ordem de 20 bilhões de dólares, ao Produto Interno Bruto do país. A televisão, o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da natureza virgem. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo localizada em um ambiente pastoral natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. Observar pássaros se tornou um importante hobby e uma próspera indústria. Ser naturalista não é apenas uma honrosa atividade, e sim um honroso estado de espírito. (Wilson, 2.008, p. 159). (verificar a repetição)

O cientista citado tem como referência a formação de “naturalistas”. O “estado de espírito” de que deve caracterizar o verdadeiro naturalista cabe perfeitamente quando o assunto é “salvar a vida na terra”, ou salvar “a nossa casa”. O compromisso com esse salvamento supõe que as pessoas tenham interiorizado a essência do conceito natureza, como sendo a “nossa casa”, a “nossa mãe e pátria”. Em outras palavras. Esses conceitos revelam um “estado de espírito” nas pessoas que de fato chegaram a esse nível de relação com o ambiente natural. São muito mais do que zoólogos, botânicos, geógrafos, geólogos ou ambientalistas especializados. São amantes do chão em que pisam, enamorados das paisagens naturais que os rodeiam, apaixonados pela arte pintada, esculpida e desenhada em todos os detalhes a seu redor,  enlevados pela harmonia dos panoramas e a sinfonia dos sons, e sobretudo, empolgados pelo belo que envolve os fenômenos naturais. Esse estado de espírito permite perceber que o chão que gerou a espécie humana e a fez acompanhada de animais e plantas como parceiros de jornada, é sagrado. Por essa razão é que o Papa Francisco definiu a natureza como “nossa casa” e Francisco de Assis os animais e as plantas como “irmãos e irmãs”. Devaneios românticos ou desvios místicos indevidos que deformam a visão da realidade objetiva da natureza? Penso que não pois, assim, à avaliação quantitativa da natureza pela ciência soma-se o conteúdo qualitativo sugerido pela intuição e a percepção sensorial. Cérebro e coração, razão e emoção complementando-se resultam no “estado de espírito” de que estamos falando.

Posta nesses termos a relação do homem com a natureza deparamo-nos com a pergunta chave da qual depende a médio e longo prazo  o sucesso ou fracasso de qualquer iniciativa em favor dela. Dito de outra maneira, qual o caminho para alguém perceber e avaliar a natureza como um “estado de espírito?”. Educação é a resposta, curta, porém, prenhe de desafios de bom tamanho.

Para início de conversa é preciso ter bem claro que falamos em educação e não reeducação. Nesse caso o alvo da educação são as crianças a começar pela primeira infância. Quanto mais cedo tanto melhor.

“A ascensão começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos.  de vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos  -  tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres. (Wilson, 2.oo8, p. 158)

Não há necessidade de um esforço maior de imaginação para concluir que o resultado desse tipo de aprendizado, termina numa simbiose da alma da criança com seu meio geográfico. Pela visão, ouvido, tato, olfato e gosto, o ambiente, por assim dizer, não se transforma numa segunda natureza, mas permeia o tecido todo do seu ser íntimo, terminando numa amálgama existencial, enfim num estado de espírito. A esse aprendizado em que a natureza é escola e mestre, soma-se o ensinamento dos mais velhos. Cabia a eles passar para as crianças as tradições inspiradas na natureza e a distinguir as plantas, frutas, raízes e tubérculos comestíveis dos  não comestíveis. Familiarizavam-se igualmente com os animais, seus hábitos, sua utilidade como também os riscos que ofereciam. À relação utilitária com o meio geográfico somava-se a identificação simbólica consagrada pela tradição e aplicada a plantas, animais, acidentes geográficos, fenômenos  metereológicos e astros, com destaque para o sol e a lua. O coroamento desse aprendizado vinha com as crenças mágicas e religiosas. Da soma de todas essas informações e conhecimentos resultava a cosmovisão, que nada mais é do que a forma singular como cada tradição concebe a sua inserção existencial no entorno ambiental em que constrói a sua identidade.

Foi nesse cenário, vivendo em simbiose com a natureza virgem, original e intata, que a humanidade passou acima de 95% da sua história. Essa relação entrou num processo irreversível de distanciamento, com a  revolução agrícola e pastoril. Darcy Ribeiro chamou-a   de “revolução dos alimentos” e Edward Wilson de “a primeira traição à natureza”. A visão aparentemente paradoxal do julgamento do antropólogo e do profundo conhecedor do funcionamento dos ecossistemas, deixa às claras a dupla face dessa “Revolução”. De um lado abriu o caminho sem volta para o controle e multiplicação dos recursos naturais e respectivas tecnologias de apoio. De outro lado a humanidade foi-se distanciando e desenraizando  do chão da “sua mãe e pátria”. Edward Wilson resumiu assim essa transição.

Foi então que, depois de milhões de anos dessas existência, a revolução agrícola retirou a maioria das pessoas do habitat onde seus antepassados tinham evoluído. A agricultura  prometia multiplicar-se e atingir uma densidade  populacional mais alta, porém ao preço de acorrentá-la a um ambiente muito mais simples. O ser humano passou a depender de um número drasticamente reduzido de plantas e animais que podiam ser cultivados em ambiente biologicamente pauperizado, por meio de trabalho repetitivo. À medida que as populações aumentavam, sustentadas pelos excedentes agrícolas, e migravam para vilas e cidades, as pessoas iam-se afastando mais e mais do seu ambiente ancestral. Hoje a maior  parte da humanidade  reside em um mundo fabricado artificialmente. O berço, o lar inicial da nossa espécie foi quase que esquecido por completo. (Wilson, 2.008, p. 158-159)

Ninguém de sã razão, muito menos o Papa Francisco, defende um retorno utópico a um passado de 15.000 anos passados. Postula-se, isso sim, o justo e indispensável equilíbrio no uso e fruto dos recursos naturais. Para tanto, requer-se uma educação que capacita as pessoas a perceberem, e acima de tudo, orientarem a sua maneira de ser e agir, dentro desses parâmetros. Na atual conjuntura mundial fazem falta pessoas dotadas de senso do responsabilidade para com “a casa” em que moramos. Estão sobrando técnicos frios, exploradores gananciosos, políticos interesseiros e ecologistas a serviço de ideologias duvidosas.


O desafio maior da educação de hoje resume-se em assumir para valer a tarefa de formar uma nova geração que volte a sentir-se existencialmente inserido na “mãe e pátria” e por isso mesmo comprometida com “a casa” na qual mora e que lhe oferece sustento e abrigo. Voltamos a insistir que o esforço da educação ambiental deve acontecer na educação infantil e fundamental. “O pepino se torce de pequenino”, ensina a sabedoria popular. Convém lembrar que a educação de que falamos é responsabilidade da família, da escola e da comunidade. Pressupõe-se para tanto que essas instâncias tenham consciência da sua inserção existencial na natureza. É fundamental insistir que o meio ambiente é pela sua própria natureza um bem comum e, em o sendo, implica em responsabilidade solidária no uso e fruto de suas dádivas. Dito de outra maneira. O que deve motivar atitudes e ações chama-se compromisso ético e responsabilidade moral, como norma universal de ação. Felizmente já se detectam sinais nesse sentido. O  Papa mostra otimismo. “Depois de um período de confiança irracional no progresso e na capacidade humana, uma parte da humanidade vive num clima de maior conscientização. Nota-se  uma crescente sensibilidade no relacionamento com a natureza e cresce um sincero sentimento de preocupação pelo que está a acontecer  com nosso planeta. (cf. Laudato se, 19).

This entry was posted on segunda-feira, 2 de outubro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.