Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 15 -

Por onde começar?

A salvação da vida na terra, o cuidado com o meio ambiente, a recuperação do que foi danificado e frear as agressões a “nossa mãe e pátria”, pressupõe educação. Não uma educação qualquer, mas uma educação que conscientize as pessoas da sua inserção existencial na natureza; uma educação que mostre como fazem parte e dependem para a vida e a morte do ambiente natural em que passam a sua existência; uma educação que alerta as pessoas sobre as consequências  da exploração fora de controle dos recursos  naturais; uma educação que convença as pessoas que a natureza é um bem comum; uma educação que, em sendo um bem comum, todos indistintamente tem o mesmo direito de usufruir das dádivas da natureza e ao mesmo tempo o dever de zelar por elas; e para concluir, uma educação que convença que estamos diante de uma questão que implica em responsabilidade ética e moral.

Não há necessidade de insistir que a educação  ambiental oferece desafios de proporções incomuns. Acontece que a humanidade  neste começo de milênio vive longe e afastada da natureza. Salvo raras exceções, quase como que curiosidades antropológicas, os humanos passam a vida na total artificialidade. Já não são capazes de  distinguir uma ovelha de uma cabra ou um pé de mandioca de um pé de milho. Contato e familiaridade só com cães, gatos e pássaros de  gaiola, por sua vez caricaturas, frutos da domesticação e do cativeiro. Mas, apesar de toda a artificialidade em que o povo vive nas metrópoles e megalópoles, debaixo das cinzas  que a civilização acumulou, continua viva a brasa do vínculo com o chão original. Na menor brecha que  se abre no quotidiano urbano, a brasa transforma-se em braseiro relembrando essa relação atávica. Edward Wilson descreveu assim esse fenômeno.

Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e jardins, nos esportes de caça e pesca, tão estranhos (pensando bem). Os  americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos profissionais,  e ainda mais tempo nas áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e reservas naturais   -  isto é, nas parte que permanecem intactas  -  gera uma renda substancial, da ordem de 20 bilhões de dólares, ao Produto Interno Bruto do país. A televisão, o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da natureza virgem. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo localizada em um ambiente pastoral natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. Observar pássaros se tornou um importante hobby e uma próspera indústria. Ser naturalista não é apenas uma honrosa atividade, e sim um honroso estado de espírito. (Wilson, 2.008, p. 159). (verificar a repetição)

O cientista citado tem como referência a formação de “naturalistas”. O “estado de espírito” de que deve caracterizar o verdadeiro naturalista cabe perfeitamente quando o assunto é “salvar a vida na terra”, ou salvar “a nossa casa”. O compromisso com esse salvamento supõe que as pessoas tenham interiorizado a essência do conceito natureza, como sendo a “nossa casa”, a “nossa mãe e pátria”. Em outras palavras. Esses conceitos revelam um “estado de espírito” nas pessoas que de fato chegaram a esse nível de relação com o ambiente natural. São muito mais do que zoólogos, botânicos, geógrafos, geólogos ou ambientalistas especializados. São amantes do chão em que pisam, enamorados das paisagens naturais que os rodeiam, apaixonados pela arte pintada, esculpida e desenhada em todos os detalhes a seu redor,  enlevados pela harmonia dos panoramas e a sinfonia dos sons, e sobretudo, empolgados pelo belo que envolve os fenômenos naturais. Esse estado de espírito permite perceber que o chão que gerou a espécie humana e a fez acompanhada de animais e plantas como parceiros de jornada, é sagrado. Por essa razão é que o Papa Francisco definiu a natureza como “nossa casa” e Francisco de Assis os animais e as plantas como “irmãos e irmãs”. Devaneios românticos ou desvios místicos indevidos que deformam a visão da realidade objetiva da natureza? Penso que não pois, assim, à avaliação quantitativa da natureza pela ciência soma-se o conteúdo qualitativo sugerido pela intuição e a percepção sensorial. Cérebro e coração, razão e emoção complementando-se resultam no “estado de espírito” de que estamos falando.

Posta nesses termos a relação do homem com a natureza deparamo-nos com a pergunta chave da qual depende a médio e longo prazo  o sucesso ou fracasso de qualquer iniciativa em favor dela. Dito de outra maneira, qual o caminho para alguém perceber e avaliar a natureza como um “estado de espírito?”. Educação é a resposta, curta, porém, prenhe de desafios de bom tamanho.

Para início de conversa é preciso ter bem claro que falamos em educação e não reeducação. Nesse caso o alvo da educação são as crianças a começar pela primeira infância. Quanto mais cedo tanto melhor.

“A ascensão começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos.  de vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos  -  tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres. (Wilson, 2.oo8, p. 158)

Não há necessidade de um esforço maior de imaginação para concluir que o resultado desse tipo de aprendizado, termina numa simbiose da alma da criança com seu meio geográfico. Pela visão, ouvido, tato, olfato e gosto, o ambiente, por assim dizer, não se transforma numa segunda natureza, mas permeia o tecido todo do seu ser íntimo, terminando numa amálgama existencial, enfim num estado de espírito. A esse aprendizado em que a natureza é escola e mestre, soma-se o ensinamento dos mais velhos. Cabia a eles passar para as crianças as tradições inspiradas na natureza e a distinguir as plantas, frutas, raízes e tubérculos comestíveis dos  não comestíveis. Familiarizavam-se igualmente com os animais, seus hábitos, sua utilidade como também os riscos que ofereciam. À relação utilitária com o meio geográfico somava-se a identificação simbólica consagrada pela tradição e aplicada a plantas, animais, acidentes geográficos, fenômenos  metereológicos e astros, com destaque para o sol e a lua. O coroamento desse aprendizado vinha com as crenças mágicas e religiosas. Da soma de todas essas informações e conhecimentos resultava a cosmovisão, que nada mais é do que a forma singular como cada tradição concebe a sua inserção existencial no entorno ambiental em que constrói a sua identidade.

Foi nesse cenário, vivendo em simbiose com a natureza virgem, original e intata, que a humanidade passou acima de 95% da sua história. Essa relação entrou num processo irreversível de distanciamento, com a  revolução agrícola e pastoril. Darcy Ribeiro chamou-a   de “revolução dos alimentos” e Edward Wilson de “a primeira traição à natureza”. A visão aparentemente paradoxal do julgamento do antropólogo e do profundo conhecedor do funcionamento dos ecossistemas, deixa às claras a dupla face dessa “Revolução”. De um lado abriu o caminho sem volta para o controle e multiplicação dos recursos naturais e respectivas tecnologias de apoio. De outro lado a humanidade foi-se distanciando e desenraizando  do chão da “sua mãe e pátria”. Edward Wilson resumiu assim essa transição.

Foi então que, depois de milhões de anos dessas existência, a revolução agrícola retirou a maioria das pessoas do habitat onde seus antepassados tinham evoluído. A agricultura  prometia multiplicar-se e atingir uma densidade  populacional mais alta, porém ao preço de acorrentá-la a um ambiente muito mais simples. O ser humano passou a depender de um número drasticamente reduzido de plantas e animais que podiam ser cultivados em ambiente biologicamente pauperizado, por meio de trabalho repetitivo. À medida que as populações aumentavam, sustentadas pelos excedentes agrícolas, e migravam para vilas e cidades, as pessoas iam-se afastando mais e mais do seu ambiente ancestral. Hoje a maior  parte da humanidade  reside em um mundo fabricado artificialmente. O berço, o lar inicial da nossa espécie foi quase que esquecido por completo. (Wilson, 2.008, p. 158-159)

Ninguém de sã razão, muito menos o Papa Francisco, defende um retorno utópico a um passado de 15.000 anos passados. Postula-se, isso sim, o justo e indispensável equilíbrio no uso e fruto dos recursos naturais. Para tanto, requer-se uma educação que capacita as pessoas a perceberem, e acima de tudo, orientarem a sua maneira de ser e agir, dentro desses parâmetros. Na atual conjuntura mundial fazem falta pessoas dotadas de senso do responsabilidade para com “a casa” em que moramos. Estão sobrando técnicos frios, exploradores gananciosos, políticos interesseiros e ecologistas a serviço de ideologias duvidosas.


O desafio maior da educação de hoje resume-se em assumir para valer a tarefa de formar uma nova geração que volte a sentir-se existencialmente inserido na “mãe e pátria” e por isso mesmo comprometida com “a casa” na qual mora e que lhe oferece sustento e abrigo. Voltamos a insistir que o esforço da educação ambiental deve acontecer na educação infantil e fundamental. “O pepino se torce de pequenino”, ensina a sabedoria popular. Convém lembrar que a educação de que falamos é responsabilidade da família, da escola e da comunidade. Pressupõe-se para tanto que essas instâncias tenham consciência da sua inserção existencial na natureza. É fundamental insistir que o meio ambiente é pela sua própria natureza um bem comum e, em o sendo, implica em responsabilidade solidária no uso e fruto de suas dádivas. Dito de outra maneira. O que deve motivar atitudes e ações chama-se compromisso ético e responsabilidade moral, como norma universal de ação. Felizmente já se detectam sinais nesse sentido. O  Papa mostra otimismo. “Depois de um período de confiança irracional no progresso e na capacidade humana, uma parte da humanidade vive num clima de maior conscientização. Nota-se  uma crescente sensibilidade no relacionamento com a natureza e cresce um sincero sentimento de preocupação pelo que está a acontecer  com nosso planeta. (cf. Laudato se, 19).

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 14 -

O que sucede em “nossa casa?”

Depois de contextualizar histórica, científica, filosófica e teologicamente a “Encíclica Verde”, vamos ao corpo propriamente dito do documento. O Papa começa perguntando “o que está acontecendo com “a nossa casa?” Ninguém dotado de uma capacidade mínima observação  percebe que algo de errado, de muito errado perturba o sossego da “nossa casa” e aflige a “nossa mãe e pátria”. Há consenso de que o ritmo da degradação ambiental exige algo de abrangente e substantivo  para ser estancado; que iniciativas e soluções tópicas já nada resolvem; que o processo avançou a um ponto tal que atinge a todos indistintamente, desde os poderosos até os súditos mais humildes, desde os grandes empresários e empreendedores, até os operários mais simples, os catadores de papel e os agricultores de subsistência.

Por onde começar? Como em qualquer outro desafio de grandes proporções e de grave risco para a coletividade, é preciso tomar pé na situação. É fundamental partir de uma noção a mais exata possível do que realmente está acontecendo: Qual a dimensão exata do problema e quais os agentes implicados. O Papa formulou a questão em forma de pergunta, que aproveitamos para título do capítulo: “O que está a acontecer com a nossa casa?”

O que está acontecendo com a tecnologia que dá o tom e o ritmo ao progresso?. Teilhard de Chardin na sua famosa obra “O Fenômeno Humano”, observa que devemos à Ciência e Tecnologia todo o progresso de que desfrutamos. Alerta, porém, que, pela sua própria natureza ela é regida  pelo processo da análise. Acontece que o método analítico mascara um grande risco. Desmonta, disseca e analisa os objetos até onde o método é capaz de avançar. Em se tratando da natureza ou partes dela, por meio de análises químicas, modelos de matemática, teorias físicas e técnicas de dissecação anatômica e histológica, vai penetrando até os últimos componentes estruturais e funcionais. Quanto mais o cientista aprofunda sua investigação, quanto mais o mecânico desmonta uma máquina, tanto maior é o risco de perder a visão do todo. Em outras palavras defronta-se com uma pilha de peças mas não se dá conta do porque que elas estão aí. Perde de vista que foram moldadas nas suas inúmeras formas para participarem do funcionamento de um sistema ou de uma máquina.

Menos mal quando se lida com uma máquina. Os benefícios e os malefícios permanecem no terreno da mecânica. A perspectiva muda radicalmente quando o objeto de pesquisa e/ou manipulação é o meio ambiente, a natureza na qual vive a humanidade e da qual depende a sua própria sobrevivência. Mexer nas peças de um  motor ou nos circuitos de um aparelho eletrônico sem vida, é uma coisa. Lidar com um componente da natureza, por mais insignificante que possa aparecer, é essencialmente diferente. No primeiro caso a manipulação começa e termina  no nível mecânico. No segundo as coisas acontecem no nível da vida. Não importa se a natureza é vista como um ente vivo à sua maneira, ou a atenção se volta para uma forma específica de vida, ou as circunstâncias físico geográficas e sua relação com os seres vivos. Disseca-se até às últimas fibras um ser vivo, inclusive o homem, sem tomar em conta a importância de um órgão quando cumprindo uma função vital no organismo a que pertence. Não passa de peça sem vida do corpo de que foi retirado. Por isso mesmo o interesse que desperta não passa do nível  da física, da química ou da fisiologia.

A análise “esse maravilhoso instrumento de todo o progresso”, como ensina Teilhard, é fundamental para se entender em que consiste e qual é base material da química e quais os processos mecânicos, físicos, químicos e fisiológicos sem os quais a vida não acontece e não evolui normalmente.

É aqui que mora um dos problemas principais, como já alertou Teilhard de Chardin: a fragmentação. O todo é desmontado e peça por peça analisada até perder de vista a totalidade. Em outras palavras. Não se percebe mais a unidade na pluralidade. No contexto e na linha que vai a nossa reflexão a atenção volta-se para  efeitos indiretos quando a análise é levada longe demais. Mudam as categorias mentais com destaque para a percepção do que é certo e errado. Em outras palavras. A ética como critério universal para qualificar os atos humanos, cede lugar para o relativismo ético e moral, o fim justificando os meios. O filósofo e humanista nicaraguense Alexandro Serrano Caldera, resumiu  o efeito destruidor da mentalidade apoiada na fragmentação. “É a desvalorização do futuro, a queda das utopias, e o cancelamento das certezas. É o reino do ceticismo moral” (Caldera, 2004, p. 91)

Nessa passagem Caldera aponta o ponto nevrálgico da questão do que afirmamos mais acima, isto é, que o desmonte da natureza termina no cancelamento  das certezas, que encontra no ceticismo ético e moral a sua consequência mais funesta. No momento em que o ceticismo ético e moral marca o compasso para o comportamento das pessoas os valores estáveis e a hierarquia entre eles também é cancelada. Tudo torna-se relativo. Subverte-se o axioma que os meios são legitimados pela sua própria natureza moral e não aos fins que servem. Cada sociedade, cada ideologia, as pessoas individuais legitimam suas escolhas de acordo com as conveniências do momento e os interesses que hoje são uns e manhã podem ser exatamente o oposto. Franqueia as portas para a instalação da barbárie, a anarquia nas relações humanas. O binômio poder e riqueza governam o mundo. Instala-se  uma sociedade formada por lobos que se devoram mutuamente o que, aliás, não é novidade na história. Os velhos romanos já recorreram à metáfora  dos lobos devorando-se uns aos outros com o provérbio que se tornou emblemático para essas situações: “Homo homini lúpus” – “Os homens não passam de lobos que se devoram mutuamente”.

Sem a pretensão de esgotar a matéria, este é o cenário em que nos cabe administrar “a nossa cassa”. Com a riqueza e o poder como fins, os poderosos com seus projetos de poder político e econômico administram “a nossa casa” e cultivam “a nossa mãe e pátria”. Discursos falando em “salvar a vida no planeta”, “salvar a vida na terra”, caem bem nos ouvidos do mundo de hoje, soam ecologicamente corretos. Só então merecem alguma credibilidade quando acompanhados por propostas concretas capazes de inverter o caminho pelo qual  administramos de momento “a nossa casa”. A formula para desencadear essa revolução é simples e óbvia. mas de uma complexidade assustadora na concretização. Poderia soar mais ou menos assim: “A realização de uma existência humana decente é baseada na ética e na moral”. Simples assim? Na sua formulação teórica, sim. Na implementação prática demanda um esforço impossível de dimensionar.

Em resumo e para começo de conversa, exige-se uma inversão radical dos referenciais e perspectivas  que orientam o relacionamento das pessoas entre si e com o meio ambiente em que vivem, um pacto de salvamento para a humanidade e a natureza na qual está inserida para a vida e a morte. Em outras palavras. A vida humana como base de toda a ética exige que as leis e instituições se pautem por essa responsabilidade; que do mesmo modo o consenso e o contrato social correspondam a essa exigência; que importa que o antiético seja banido ainda que seja acordado e institucionalizado; que o que está a seu favor deve ser apoiado e fomentado ainda que não esteja nas leis nem no acordo; que o esforço deve concentrar-se para que as instituições se fundamentem na ética pois, só assim a legalidade terá também legitimidade. (cf. Caldera, 2004, p. 84)

É oportuno ampliar esse raciocínio quando o assunto é meio ambiente, natureza, “nossa casa”, “nossa mãe e pátria”. Lembremos novamente. A espécie humana insere-se existencialmente na natureza. Foi concebida, nasceu e cresceu “nessa casa” e continua morando nela, porque fora dela não há como subsistir. Existe e subsiste nela, nela encontra os recursos que garantem a sua subsistência como espécie biológica, nela e a partir dela consolida a cultura. Nela encontra os estímulos que põem em ebulição sentimentos e emoções, a percepção da arte e do Belo. Nela encontra os símbolos que dão vida e conferem sentido à sua existência. Nela, enfim, molda seu imaginário, suas crenças e religiões.

Acontece que a transformação de uma cosmovisão moldada pelo pragmatismo, pelo utilitarismo, pelo racionalismo inclusive teológico, para uma perspectiva ética e humanista, implica numa revolução de proporções e consequências difíceis de dimensionar.

Até aqui identificamos o que está acontecendo com e dentro da “nossa casa”. A tarefa foi relativamente fácil. Acontece que o “como”  resolver a questão, vem a ser um  desafio gigantesco tomando em consideração, em primeiro lugar, a situação e as características desse começo de milênio. Em segundo lugar, pelo tempo necessário para consolidar os fundamentos dessa mudança revolucionária e o tempo necessário para a sua implantação e consolidação.


É nesse plano que a “Encíclica Verde” do Papa Francisco bate de frente com a cosmovisão que orienta os donos do poder político, econômico e ideológico. Sintomático foi e ainda é o silêncio ou quase silêncio da grande da mídia. No protocolo de Paris de dezembro de 2015 o documento sequer foi citado.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 13 -

A maldição da racionalidade e do utilitarismo  contaminou não só os políticos ao lidarem com a natureza e seus recursos. Viciou também a Filosofia, a Teologia e a própria Ascese, aprisionando numa camisa de força, impedindo o pleno desabrochar do humano no homem – “die Menschlichkeit. A realização plena do humano no homem somente então é possível quando o cérebro e o coração, a racionalidade e as emoções, os sentimentos e intuição acertam o passo.

Lidar com a natureza e sobretudo com o homem apenas com a racionalidade e/ou racionalidades, significa simplesmente ignorar a metade da questão. No caso específico o humano no homem fica esquecido no lado escuro da lua. Ilustrativa  é a metáfora da árvore. O que entra em questão para o utilitarismo racional de qualquer natureza é o que está acima chão. Para tanto a árvore precisa ser cortada. Acontece que uma árvore sem  raízes deixa de ser “árvore” para ser apenas madeira. Na metáfora da árvore aplicada ao homem, ressalvadas as peculiaridades, ele não passa de um organismo vivo sem alma, quando encarado como um ser apenas racional. Em outras palavras. Ignorar o coração, as emoções, a percepção sensorial, a intuição, o rebaixa ao nível de uma máquina ou de um antropoide um pouco melhorado ou nem tanto.

Antes de entrar mais a fundo nas reflexões sobre o corpo da “Encíclica Verde” faz sentido aprofundar um pouco mais o sentido da metáfora da árvore e assim evitar que o conceito de natureza e nela o homem, não passe de uma caricatura.

Em seu diário o Pe. Rambo anotou no dia 10 de julho de 1960, na escala em Marburg na viagem de quatro meses pela Europa.

O divórcio entre a razão e emoção, entre o cérebro e o coração começou no fim da Idade Média e na entrada da Renascença.  Toda a nossa existência equilibra-se entre dois polos: Razão e Intuição da Totalidade. O empobrecimento definitivo do homem instalou-se no momento em que elegeu o utilitarismo como norma maior de sua vida. Este é, certamente, o caso do dinheiro e do ouro que engendraram  a personalidade degenerada da usura e da cobiça. Um esbanjador sem preocupações vem a ser, em última análise, um ser humano muito melhor do que a caricatura do procedimento que inverte todos os valores. (Rambo, diário, 10 de julho de 1960)

Essa tendência afeta perigosamente a vida espiritual  como um todo e a piedade de modo especial.  A importância das emoções, da intuição, da piedade, isto é do coração, perde espaço na vida das pessoas, no mesmo ritmo em que se instala a tirania da razão, isto é, do cérebro. Desfeito o equilíbrio, pior consumado o divórcio entre o cérebro e o coração, abre-se o caminho que leva a aberrações que em nada contribuem para melhorar a vida das pessoas. A tirania da razão resulta em personalidades utilitaristas que medem tudo com a régua do racional e  do útil. O pragmatismo rege tudo e resulta na abolição dos valores perenes e o cancelamento das certezas.

No momento em que o racionalismo contamina a Teologia assiste-se à esterilização da piedade. Num ambiente desses não tem como florescer nem a mística, nem a santidade, nem a arte. Perde-se a sensibilidade pelo belo que permeia as criaturas, os fenômenos e os panoramas da natureza. As igrejas e catedrais construídas antes da entrada avassaladora do racionalismo, foram privados dos seus símbolos de piedade. As imagens, as pinturas, as estátuas e símbolos da piedade popular, se não caíram nas mãos de iconoclastas fanáticos. no mínimo foram banidos dos templos. Os bancos foram desenhados para sentar e/ou ficar em pé. Ajoelhar-se não combina com a soberba da Teologia e Liturgia da razão. O racionalismo levado ao extremo terminou na heresia do Jansenismo. Embriões e modalidades dessa linha doutrinária podem ser identificados  nos diversos períodos da história do cristianismo.

A ciência que tem como objeto a Fé, chamada Teologia e  a doutrina que se ocupa com a piedade, chamada Ascese, espalharam ambas uma interminável confusão entre os homens e seu Deus. Sempre de novo percebe-se a tentativa de  impor leis gerais e fórmulas indecifráveis, onde a coisa é ausência de leis. Não estou contestando simplesmente toda e qualquer legislação que não se opõe à essência do divino, mas a rejeição das leis racionalistas impostas pelo homem. Respeitemos essas leis e as entendamos até certo ponto. Nenhuma mente, nem todas elas reunidas são capazes de abarcar todo o seu sentido. Aproximam-se da fronteira do Hybris no momento em que pretendem regulamentar com leis o relacionamento com Deus. Apesar de dois mil anos de Revelação e apesar das elucubrações do homem, desde que a terra existe, é sempre a mesma  e toda a soma do conhecimento humano, mostrou-se um vaso pequeno demais para conter a incomensurável grandeza do sentido contido no Mistério de Deus.
Deus é o eterno vivo. O homem tende a transformar Deus num fóssil. Ele projeta sua pequenez e estreiteza de coração sobre a percepção que tem de Deus e se diverte como uma criança quando essa representação corresponde de algum forma à imagem que tem de si próprio. Quem ousaria desencadear a revolução que há muito está madura? (Rambo, diário, 10 de julho de 1960).


Cinquenta e cinco anos depois que o Pe. Ramo anotou essas reflexões, seu irmão de Ordem, o Papa Francisco convida cientistas, teólogos, filósofos, crentes, agnósticos, ateus e as pessoas comuns, para entender o universo, a natureza e o homem como “algo a mais do que um problema a resolver, mas um mistério gozoso a ser contemplado na alegria e no louvor”. (Laudato se, 12)

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 12 -

Se o coração não animar a razão, pouca consistência e pouca durabilidade terão as ações elaboradas pela racionalidade política, econômica ou ideológica. O Papa chama a atenção que

Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam  o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem essa abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza da nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador de recursos naturais incapaz de por um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente  unidos a tudo que existe, então brotarão de modo espontâneo a solidariedade e a solicitude. A pobreza e austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um objeto de uso e domínio. (Laudato si, 11)

A educação proposta pelo biólogo “humanista secular” Edward Wilson, o exemplo de São Francisco de Assis e a proposta da Encíclica do Papa Francisco, deixam claro que a maravilhosa racionalidade do mundo material tem alma, coração e emoção. Ensinam para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir que o ambiente que nos cerca é um manancial sem limites que a natureza humana tem de mais existencial. Em contato com as plantas e animais, a paisagem geográfica com suas montanhas, vales e planícies, florestas,  savanas e desertos, fazem emergir o humano, a “Menschlichkeit”, na sua forma mais autêntica. Para os que estão em busca de provas para a existência de Deus o livro da natureza abre suas páginas como o livro dos livros da Sua Revelação. Para o geneticista Francis Kollins o código genético é uma linguagem cifrada com que Deus se comunica com os homens. Para o botânico Balduino Rambo alguém mora nos abismos escuros rodeados de montanhas; alguém vigia  no alto da torre da montanha; alguém sussurra na névoa da noite; à sombra dos pinheirais desfruta-se “a pátria na terra”; o Eterno faz tremer as montanhas sob a cadência marcial de suas eternidades; muito do que não está escrito nos livros, intui-se no silêncio e na sombra mortiça da floresta. Por intuir significados de ordem superior na natureza houve tentativas de desqualificar o Pe. Rambo como cientista rebaixando-o ao nível de um romântico sonhador e um místico alienado e isso partindo  de irmãos seus de ordem religiosa. 

Pergunta-se a essa altura a esses críticos: afinal para que serve a ciência, o cientistas e os resultados da investigação, senão para aperfeiçoar o humano no homem? Convém não esquecer que o humano no homem não termina numa racionalidade fria do “preto no branco”, na soberba do cientista que acredita cegamente nos seus métodos e instrumentos ou no filósofo que não reconhece racionalidade fora dos seus silogismos aparentemente sem brechas. O humano no homem é, antes de mais nada emoção, afeto, amor, solidariedade, abertura para um universo que vai além do palpável. O humano no homem é abertura para a harmonia, para o Belo, para a  Divindade. “Pulchritudo  semper antiqua et semper nova -  Beleza sempre antiga e sempre nova”.

O Papa Francisco, aliado aos cientistas e pensadores que se alinham nessa direção, conclui: “O mundo é algo a mais que um problema a resolver, é um mistério gozoso  que contemplamos na alegria e no louvor. (Laudato se, 12.) O Pe. Rambo refletindo sobre essa temática anotou no seu diário do dia 10 de julho de 1960.

Toda a nossa existência  equilibra-se entre dois polos: Razão e intuição. O empobrecimento definitivo do homem instala-se no momento em que elege o utilitarismo como norma maior da vida. Este é certamente o caso do ouro e do dinheiro que levam à personalidade degenerada da usura e da cobiça. Um esbanjador sem preocupações vem a ser, em última análise, um ser humano muito melhor do que a caricatura do procedimento que inverte todos os valores. (Diário, 10 de julho de 1960)

Profético como em outras ocasiões, o Pe. Rambo resumiu, em poucas palavras, há 56 anos, o cerne da crise que aflige a pós-modernidade: a opção pelo utilitarismo como valor maior e o racionalismo sem ética para se apossar sem piedade dos  recursos naturais. Para o filósofo nicaraguense  Alexandro  Serrano Caldera: “Rompeu-se também o contrato natural que selava o convênio original entre o homem e a natureza e o que presenciamos e padecemos é uma dialética perversa, na qual o ser humano destrói a natureza e por essa via destrói-se a si mesmo”. (Caldera, 2004, p. 30). A humanidade vive num cenário em que todas as referências estáveis, os valores perenes, o humano no homem, a “Menschlichkeit”, parecem que foram arquivados nos museus da história, colocando o homem frente ao desafio maior: “a reconstrução da unidade despedaçada, a reunificação dos pedaços dispersos da existência: a vida e o trabalho, a imaginação e a realidade,  a ilusão e a desesperança, a paixão e a razão, a liberdade e a igualdade”. (Caldera, 2004, p. 16).

Essa é a sina e a maldição que costuma viciar e terminar na inocuidade pequenas e grandes iniciativas em favor da proteção e da preservação da vida na terra. Tomemos como exemplo o tão alardeado Congresso do Clima em Paris em dezembro de 2015. Chega a ser patético, senão pífio, o documento assinado por quase duas centenas de líderes mundiais. O utilitarismo interesseiro deu o tom aos debates e ditou os termos do documento final. Para  os governantes e líderes reunidos em Paris, o clima  parece ser o grande e único vilão da deterioração ambiental. Estancar e se possível começar a diminuir o aquecimento global a partir de 2.020, projetando metas até o final do século, soa como escamoteamento e mistificação. Cabe, portanto a outros governantes, a outros líderes  implementar as ações necessárias para atingir as metas. E há um pormenor que atribui aos governos dos respectivos países por em prática as medidas e estratégias necessárias. O documento com esse feitio dá a impressão que em Paris se exibiu um grande “faz de conta” e a perspectiva de  resultados práticos significativos no mínimo não permite grandes ilusões. Tem todas condições de transformar-se num “parto de montanha”, como foi a Conferência internacional do Clima no Rio de Janeiro em 1992. “Parturient montes, nascitur ridiculus mus” – “As motanhas dão à luz e nasce um ridículo camundongo”, ensina a velha sabedoria romana.

O mais lamentável foi que não entrou nem em pauta, muito menos foi analisada, a imensa complexidade e abrangência do problema ambiental como um todo. Diminuir ou pelo menos sustar o aquecimento global isolado do contexto global do que está acontecendo na natureza, não passa de uma tentativa tópica para sanar um mal que padece de muitas causas que permeiam a macro, a micro e a nano na natureza. No máximo o clima vem a ser um dos sintomas, a ponta do iceberg fora da água, sinalizando que algo de muito maior e de muito mais peso encontra-se escondido abaixo da superfície. Outras questões tão ou  mais urgentes que o aquecimento global por se constituírem em parte suas causas, não poderiam deixar de ser incluídas com destaque na pauta das reflexões de  um encontro global como foi o de Paris ou Rio de Janeiro. Apontando alguns: a água, os solos agrícolas e o emprego irresponsável de agrotóxicos e pesticidas que ameaçam, a médio e longo prazo os solos, tornando a sua recuperação uma grande incógnita. Soma-se a tudo isso a agressão, a invasão e a destruição sistemática dos ecossistemas naturais, responsáveis pela circulação das correntes atmosféricas que carregam a umidade e determinam assim a distribuição da chuva, regulam a temperatura e administram a biodiversidade, fundamental para manter em equilíbrio novamente a macro, mico e nano fauna e flora. E por sua vez, esse equilíbrio  biológico, mantém os solos em condições de alimentar  a dinâmica que impulsiona e garante o equilíbrio do sistema como um todo. Não é nossa intenção entrar em maiores detalhes na complexidade dos ecossistemas naturais e os riscos para vida na terra em geral e da humanidade em particular inerentes à sua progressiva e rápida substituição por ecossistemas humanizados muito mais pobres ecologicamente, mesmo que empreguem técnicas ecologicamente consideradas adequadas, no seu uso agrícola ou manejo florestal.

Acontece ainda que qualquer discussão em qualquer nível e com qualquer tipo de objetivo envolvendo a natureza, carece de base sólida e por isso mesmo de sentido, quando falta como pressuposto norteador a consciência que se está lidando com um bem comum. E em se tratando de um bem comum toda e qualquer decisão sobre o acesso e desfrute dos recursos naturais, implica necessariamente em responsabilidade ética. Edward Wilson que se autodenominou “humanista secular”, conclui com esse parágrafo o seu livro: “A Criação – como salvar a vida na terra”, escrita na forma de carta a um pastor fundamentalista:

Ao encerrar  esta carta, espero que o senhor não tenha se ofendido quando falei em ascender rumo à Natureza, e não longe dela. Eu teria grande satisfação de saber que esse  desejo, tal como expliquei no livro, é compatível  com as suas crenças. Pois seja como for que as tensões acabarem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos, seja como for que a ciência e a religião aumentem e diminuam de importância na mente dos homens, permanece o compromisso, ao mesmo tempo humano e transcendental, que nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2008, p. 188)

O Pe. Rambo, depois de afirmar que “o homem, filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria” (Rambo, 1942, p. 337), chama a atenção que enquanto a  densidade demográfica é pequena e a abundância dos recursos supera a demanda, esses sentimentos e preocupações permanecem em segundo plano. A preocupação torna-se cada vez mais insistente na medida em que as “necessidades brutais da vida forçam a interferir  sempre mais na expressão natural do ambiente, despertando a dor perante a destruição de suas feições naturais ...” (Rambo, 1942), p. 338). Depois dessas observações de natureza histórico-cultural do homem em relação a seu meio geográfico, passou a detalhar por onde começar a proteção à natureza, que ações adotar e sobre que fundamentos pô-las em prática.

Sob a rubrica da proteção à natureza vai a conservação dos monumentos naturais, das espécies botânicas  e zoológicas periclitantes, das paisagens típicas originais – tudo isso enquanto as necessidades concretas da sociedade humana o permitirem. A proteção à natureza, em primeiro lugar está a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária ou inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da  terra, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagogia sociais e um adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, 1942, p. 338).

Para dar peso e respaldo à Encíclica Verde do Papa Francisco, chamamos como reforço a opinião de um cientista especialista em insetos, ecossistemas naturais e humanizados, que se auto denominou um “Humanista secular. O segundo que escolhemos foi o Pe. Balduino Rambo, jesuíta como o Papa Francisco. Vamos acrescentar mais, desta vez um dos ícones da genética, o médico geneticista, diretor do Projeto Genoma, Francis Collins. Em seu memorável livro “A Linguagem de Deus”, ao discutir os limites científicos e a validade ética no avanço da ciência registrou:

Cada parte tende a recorrer a um padrão superior não declarado. Esse padrão é a Lei Moral, que pode também ser chamada de “lei do comportamento correto”, e sua existência em cada uma dessas situações parece inquestionável. O que se está debatendo é se uma ação ou outra consiste em uma aproximação às exigências de tal lei. (Collins, 2007, p. 30)

Mais pelo final do livro volta ao assunto


Na verdade descobri que assim que os fatos de um problema ganham nitidez, na maioria das vezes as pessoas com  visões de mundo completamente distintas chegam a uma conclusão que compartilham e com a qual se sentem à vontade. Embora isso possa parecer à primeira vista surpreendente, acredito que seja um exemplo interessante da universalidade da Lei Moral. Todos nós temos um conhecimento inato  do certo e errado; apesar disso  poder ser disfarçado pelas distrações e mal-entendidos. (Collins, 2007, p. 246)