Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 13 -

A maldição da racionalidade e do utilitarismo  contaminou não só os políticos ao lidarem com a natureza e seus recursos. Viciou também a Filosofia, a Teologia e a própria Ascese, aprisionando numa camisa de força, impedindo o pleno desabrochar do humano no homem – “die Menschlichkeit. A realização plena do humano no homem somente então é possível quando o cérebro e o coração, a racionalidade e as emoções, os sentimentos e intuição acertam o passo.

Lidar com a natureza e sobretudo com o homem apenas com a racionalidade e/ou racionalidades, significa simplesmente ignorar a metade da questão. No caso específico o humano no homem fica esquecido no lado escuro da lua. Ilustrativa  é a metáfora da árvore. O que entra em questão para o utilitarismo racional de qualquer natureza é o que está acima chão. Para tanto a árvore precisa ser cortada. Acontece que uma árvore sem  raízes deixa de ser “árvore” para ser apenas madeira. Na metáfora da árvore aplicada ao homem, ressalvadas as peculiaridades, ele não passa de um organismo vivo sem alma, quando encarado como um ser apenas racional. Em outras palavras. Ignorar o coração, as emoções, a percepção sensorial, a intuição, o rebaixa ao nível de uma máquina ou de um antropoide um pouco melhorado ou nem tanto.

Antes de entrar mais a fundo nas reflexões sobre o corpo da “Encíclica Verde” faz sentido aprofundar um pouco mais o sentido da metáfora da árvore e assim evitar que o conceito de natureza e nela o homem, não passe de uma caricatura.

Em seu diário o Pe. Rambo anotou no dia 10 de julho de 1960, na escala em Marburg na viagem de quatro meses pela Europa.

O divórcio entre a razão e emoção, entre o cérebro e o coração começou no fim da Idade Média e na entrada da Renascença.  Toda a nossa existência equilibra-se entre dois polos: Razão e Intuição da Totalidade. O empobrecimento definitivo do homem instalou-se no momento em que elegeu o utilitarismo como norma maior de sua vida. Este é, certamente, o caso do dinheiro e do ouro que engendraram  a personalidade degenerada da usura e da cobiça. Um esbanjador sem preocupações vem a ser, em última análise, um ser humano muito melhor do que a caricatura do procedimento que inverte todos os valores. (Rambo, diário, 10 de julho de 1960)

Essa tendência afeta perigosamente a vida espiritual  como um todo e a piedade de modo especial.  A importância das emoções, da intuição, da piedade, isto é do coração, perde espaço na vida das pessoas, no mesmo ritmo em que se instala a tirania da razão, isto é, do cérebro. Desfeito o equilíbrio, pior consumado o divórcio entre o cérebro e o coração, abre-se o caminho que leva a aberrações que em nada contribuem para melhorar a vida das pessoas. A tirania da razão resulta em personalidades utilitaristas que medem tudo com a régua do racional e  do útil. O pragmatismo rege tudo e resulta na abolição dos valores perenes e o cancelamento das certezas.

No momento em que o racionalismo contamina a Teologia assiste-se à esterilização da piedade. Num ambiente desses não tem como florescer nem a mística, nem a santidade, nem a arte. Perde-se a sensibilidade pelo belo que permeia as criaturas, os fenômenos e os panoramas da natureza. As igrejas e catedrais construídas antes da entrada avassaladora do racionalismo, foram privados dos seus símbolos de piedade. As imagens, as pinturas, as estátuas e símbolos da piedade popular, se não caíram nas mãos de iconoclastas fanáticos. no mínimo foram banidos dos templos. Os bancos foram desenhados para sentar e/ou ficar em pé. Ajoelhar-se não combina com a soberba da Teologia e Liturgia da razão. O racionalismo levado ao extremo terminou na heresia do Jansenismo. Embriões e modalidades dessa linha doutrinária podem ser identificados  nos diversos períodos da história do cristianismo.

A ciência que tem como objeto a Fé, chamada Teologia e  a doutrina que se ocupa com a piedade, chamada Ascese, espalharam ambas uma interminável confusão entre os homens e seu Deus. Sempre de novo percebe-se a tentativa de  impor leis gerais e fórmulas indecifráveis, onde a coisa é ausência de leis. Não estou contestando simplesmente toda e qualquer legislação que não se opõe à essência do divino, mas a rejeição das leis racionalistas impostas pelo homem. Respeitemos essas leis e as entendamos até certo ponto. Nenhuma mente, nem todas elas reunidas são capazes de abarcar todo o seu sentido. Aproximam-se da fronteira do Hybris no momento em que pretendem regulamentar com leis o relacionamento com Deus. Apesar de dois mil anos de Revelação e apesar das elucubrações do homem, desde que a terra existe, é sempre a mesma  e toda a soma do conhecimento humano, mostrou-se um vaso pequeno demais para conter a incomensurável grandeza do sentido contido no Mistério de Deus.
Deus é o eterno vivo. O homem tende a transformar Deus num fóssil. Ele projeta sua pequenez e estreiteza de coração sobre a percepção que tem de Deus e se diverte como uma criança quando essa representação corresponde de algum forma à imagem que tem de si próprio. Quem ousaria desencadear a revolução que há muito está madura? (Rambo, diário, 10 de julho de 1960).


Cinquenta e cinco anos depois que o Pe. Ramo anotou essas reflexões, seu irmão de Ordem, o Papa Francisco convida cientistas, teólogos, filósofos, crentes, agnósticos, ateus e as pessoas comuns, para entender o universo, a natureza e o homem como “algo a mais do que um problema a resolver, mas um mistério gozoso a ser contemplado na alegria e no louvor”. (Laudato se, 12)

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