A
maldição da racionalidade e do utilitarismo
contaminou não só os políticos ao lidarem com a natureza e seus
recursos. Viciou também a Filosofia, a Teologia e a própria Ascese, aprisionando
numa camisa de força, impedindo o pleno desabrochar do humano no homem – “die
Menschlichkeit. A realização plena do humano no homem somente então é possível
quando o cérebro e o coração, a racionalidade e as emoções, os sentimentos e
intuição acertam o passo.
Lidar
com a natureza e sobretudo com o homem apenas com a racionalidade e/ou
racionalidades, significa simplesmente ignorar a metade da questão. No caso
específico o humano no homem fica esquecido no lado escuro da lua. Ilustrativa é a metáfora da árvore. O que entra em questão
para o utilitarismo racional de qualquer natureza é o que está acima chão. Para
tanto a árvore precisa ser cortada. Acontece que uma árvore sem raízes deixa de ser “árvore” para ser apenas
madeira. Na metáfora da árvore aplicada ao homem, ressalvadas as
peculiaridades, ele não passa de um organismo vivo sem alma, quando encarado
como um ser apenas racional. Em outras palavras. Ignorar o coração, as emoções,
a percepção sensorial, a intuição, o rebaixa ao nível de uma máquina ou de um
antropoide um pouco melhorado ou nem tanto.
Antes
de entrar mais a fundo nas reflexões sobre o corpo da “Encíclica Verde” faz
sentido aprofundar um pouco mais o sentido da metáfora da árvore e assim evitar
que o conceito de natureza e nela o homem, não passe de uma caricatura.
Em
seu diário o Pe. Rambo anotou no dia 10 de julho de 1960, na escala em Marburg
na viagem de quatro meses pela Europa.
O divórcio entre a razão e
emoção, entre o cérebro e o coração começou no fim da Idade Média e na entrada
da Renascença. Toda a nossa existência
equilibra-se entre dois polos: Razão e Intuição da Totalidade. O empobrecimento
definitivo do homem instalou-se no momento em que elegeu o utilitarismo como
norma maior de sua vida. Este é, certamente, o caso do dinheiro e do ouro que
engendraram a personalidade degenerada
da usura e da cobiça. Um esbanjador sem preocupações vem a ser, em última
análise, um ser humano muito melhor do que a caricatura do procedimento que
inverte todos os valores. (Rambo, diário, 10 de julho de 1960)
Essa
tendência afeta perigosamente a vida espiritual como um todo e a piedade de modo especial. A importância das emoções, da intuição, da
piedade, isto é do coração, perde espaço na vida das pessoas, no mesmo ritmo em
que se instala a tirania da razão, isto é, do cérebro. Desfeito o equilíbrio,
pior consumado o divórcio entre o cérebro e o coração, abre-se o caminho que
leva a aberrações que em nada contribuem para melhorar a vida das pessoas. A
tirania da razão resulta em personalidades utilitaristas que medem tudo com a
régua do racional e do útil. O
pragmatismo rege tudo e resulta na abolição dos valores perenes e o
cancelamento das certezas.
No
momento em que o racionalismo contamina a Teologia assiste-se à esterilização
da piedade. Num ambiente desses não tem como florescer nem a mística, nem a
santidade, nem a arte. Perde-se a sensibilidade pelo belo que permeia as
criaturas, os fenômenos e os panoramas da natureza. As igrejas e catedrais
construídas antes da entrada avassaladora do racionalismo, foram privados dos
seus símbolos de piedade. As imagens, as pinturas, as estátuas e símbolos da
piedade popular, se não caíram nas mãos de iconoclastas fanáticos. no mínimo
foram banidos dos templos. Os bancos foram desenhados para sentar e/ou ficar em
pé. Ajoelhar-se não combina com a soberba da Teologia e Liturgia da razão. O
racionalismo levado ao extremo terminou na heresia do Jansenismo. Embriões e modalidades
dessa linha doutrinária podem ser identificados
nos diversos períodos da história do cristianismo.
A ciência que tem como
objeto a Fé, chamada Teologia e a
doutrina que se ocupa com a piedade, chamada Ascese, espalharam ambas uma
interminável confusão entre os homens e seu Deus. Sempre de novo percebe-se a
tentativa de impor leis gerais e
fórmulas indecifráveis, onde a coisa é ausência de leis. Não estou contestando
simplesmente toda e qualquer legislação que não se opõe à essência do divino,
mas a rejeição das leis racionalistas impostas pelo homem. Respeitemos essas
leis e as entendamos até certo ponto. Nenhuma mente, nem todas elas reunidas
são capazes de abarcar todo o seu sentido. Aproximam-se da fronteira do Hybris
no momento em que pretendem regulamentar com leis o relacionamento com Deus.
Apesar de dois mil anos de Revelação e apesar das elucubrações do homem, desde
que a terra existe, é sempre a mesma e
toda a soma do conhecimento humano, mostrou-se um vaso pequeno demais para
conter a incomensurável grandeza do sentido contido no Mistério de Deus.
Deus é o eterno vivo. O
homem tende a transformar Deus num fóssil. Ele projeta sua pequenez e
estreiteza de coração sobre a percepção que tem de Deus e se diverte como uma
criança quando essa representação corresponde de algum forma à imagem que tem
de si próprio. Quem ousaria desencadear a revolução que há muito está madura?
(Rambo, diário, 10 de julho de 1960).
Cinquenta
e cinco anos depois que o Pe. Ramo anotou essas reflexões, seu irmão de Ordem,
o Papa Francisco convida cientistas, teólogos, filósofos, crentes, agnósticos,
ateus e as pessoas comuns, para entender o universo, a natureza e o homem como
“algo a mais do que um problema a resolver, mas um mistério gozoso a ser
contemplado na alegria e no louvor”. (Laudato se, 12)