Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 14 -

O que sucede em “nossa casa?”

Depois de contextualizar histórica, científica, filosófica e teologicamente a “Encíclica Verde”, vamos ao corpo propriamente dito do documento. O Papa começa perguntando “o que está acontecendo com “a nossa casa?” Ninguém dotado de uma capacidade mínima observação  percebe que algo de errado, de muito errado perturba o sossego da “nossa casa” e aflige a “nossa mãe e pátria”. Há consenso de que o ritmo da degradação ambiental exige algo de abrangente e substantivo  para ser estancado; que iniciativas e soluções tópicas já nada resolvem; que o processo avançou a um ponto tal que atinge a todos indistintamente, desde os poderosos até os súditos mais humildes, desde os grandes empresários e empreendedores, até os operários mais simples, os catadores de papel e os agricultores de subsistência.

Por onde começar? Como em qualquer outro desafio de grandes proporções e de grave risco para a coletividade, é preciso tomar pé na situação. É fundamental partir de uma noção a mais exata possível do que realmente está acontecendo: Qual a dimensão exata do problema e quais os agentes implicados. O Papa formulou a questão em forma de pergunta, que aproveitamos para título do capítulo: “O que está a acontecer com a nossa casa?”

O que está acontecendo com a tecnologia que dá o tom e o ritmo ao progresso?. Teilhard de Chardin na sua famosa obra “O Fenômeno Humano”, observa que devemos à Ciência e Tecnologia todo o progresso de que desfrutamos. Alerta, porém, que, pela sua própria natureza ela é regida  pelo processo da análise. Acontece que o método analítico mascara um grande risco. Desmonta, disseca e analisa os objetos até onde o método é capaz de avançar. Em se tratando da natureza ou partes dela, por meio de análises químicas, modelos de matemática, teorias físicas e técnicas de dissecação anatômica e histológica, vai penetrando até os últimos componentes estruturais e funcionais. Quanto mais o cientista aprofunda sua investigação, quanto mais o mecânico desmonta uma máquina, tanto maior é o risco de perder a visão do todo. Em outras palavras defronta-se com uma pilha de peças mas não se dá conta do porque que elas estão aí. Perde de vista que foram moldadas nas suas inúmeras formas para participarem do funcionamento de um sistema ou de uma máquina.

Menos mal quando se lida com uma máquina. Os benefícios e os malefícios permanecem no terreno da mecânica. A perspectiva muda radicalmente quando o objeto de pesquisa e/ou manipulação é o meio ambiente, a natureza na qual vive a humanidade e da qual depende a sua própria sobrevivência. Mexer nas peças de um  motor ou nos circuitos de um aparelho eletrônico sem vida, é uma coisa. Lidar com um componente da natureza, por mais insignificante que possa aparecer, é essencialmente diferente. No primeiro caso a manipulação começa e termina  no nível mecânico. No segundo as coisas acontecem no nível da vida. Não importa se a natureza é vista como um ente vivo à sua maneira, ou a atenção se volta para uma forma específica de vida, ou as circunstâncias físico geográficas e sua relação com os seres vivos. Disseca-se até às últimas fibras um ser vivo, inclusive o homem, sem tomar em conta a importância de um órgão quando cumprindo uma função vital no organismo a que pertence. Não passa de peça sem vida do corpo de que foi retirado. Por isso mesmo o interesse que desperta não passa do nível  da física, da química ou da fisiologia.

A análise “esse maravilhoso instrumento de todo o progresso”, como ensina Teilhard, é fundamental para se entender em que consiste e qual é base material da química e quais os processos mecânicos, físicos, químicos e fisiológicos sem os quais a vida não acontece e não evolui normalmente.

É aqui que mora um dos problemas principais, como já alertou Teilhard de Chardin: a fragmentação. O todo é desmontado e peça por peça analisada até perder de vista a totalidade. Em outras palavras. Não se percebe mais a unidade na pluralidade. No contexto e na linha que vai a nossa reflexão a atenção volta-se para  efeitos indiretos quando a análise é levada longe demais. Mudam as categorias mentais com destaque para a percepção do que é certo e errado. Em outras palavras. A ética como critério universal para qualificar os atos humanos, cede lugar para o relativismo ético e moral, o fim justificando os meios. O filósofo e humanista nicaraguense Alexandro Serrano Caldera, resumiu  o efeito destruidor da mentalidade apoiada na fragmentação. “É a desvalorização do futuro, a queda das utopias, e o cancelamento das certezas. É o reino do ceticismo moral” (Caldera, 2004, p. 91)

Nessa passagem Caldera aponta o ponto nevrálgico da questão do que afirmamos mais acima, isto é, que o desmonte da natureza termina no cancelamento  das certezas, que encontra no ceticismo ético e moral a sua consequência mais funesta. No momento em que o ceticismo ético e moral marca o compasso para o comportamento das pessoas os valores estáveis e a hierarquia entre eles também é cancelada. Tudo torna-se relativo. Subverte-se o axioma que os meios são legitimados pela sua própria natureza moral e não aos fins que servem. Cada sociedade, cada ideologia, as pessoas individuais legitimam suas escolhas de acordo com as conveniências do momento e os interesses que hoje são uns e manhã podem ser exatamente o oposto. Franqueia as portas para a instalação da barbárie, a anarquia nas relações humanas. O binômio poder e riqueza governam o mundo. Instala-se  uma sociedade formada por lobos que se devoram mutuamente o que, aliás, não é novidade na história. Os velhos romanos já recorreram à metáfora  dos lobos devorando-se uns aos outros com o provérbio que se tornou emblemático para essas situações: “Homo homini lúpus” – “Os homens não passam de lobos que se devoram mutuamente”.

Sem a pretensão de esgotar a matéria, este é o cenário em que nos cabe administrar “a nossa cassa”. Com a riqueza e o poder como fins, os poderosos com seus projetos de poder político e econômico administram “a nossa casa” e cultivam “a nossa mãe e pátria”. Discursos falando em “salvar a vida no planeta”, “salvar a vida na terra”, caem bem nos ouvidos do mundo de hoje, soam ecologicamente corretos. Só então merecem alguma credibilidade quando acompanhados por propostas concretas capazes de inverter o caminho pelo qual  administramos de momento “a nossa casa”. A formula para desencadear essa revolução é simples e óbvia. mas de uma complexidade assustadora na concretização. Poderia soar mais ou menos assim: “A realização de uma existência humana decente é baseada na ética e na moral”. Simples assim? Na sua formulação teórica, sim. Na implementação prática demanda um esforço impossível de dimensionar.

Em resumo e para começo de conversa, exige-se uma inversão radical dos referenciais e perspectivas  que orientam o relacionamento das pessoas entre si e com o meio ambiente em que vivem, um pacto de salvamento para a humanidade e a natureza na qual está inserida para a vida e a morte. Em outras palavras. A vida humana como base de toda a ética exige que as leis e instituições se pautem por essa responsabilidade; que do mesmo modo o consenso e o contrato social correspondam a essa exigência; que importa que o antiético seja banido ainda que seja acordado e institucionalizado; que o que está a seu favor deve ser apoiado e fomentado ainda que não esteja nas leis nem no acordo; que o esforço deve concentrar-se para que as instituições se fundamentem na ética pois, só assim a legalidade terá também legitimidade. (cf. Caldera, 2004, p. 84)

É oportuno ampliar esse raciocínio quando o assunto é meio ambiente, natureza, “nossa casa”, “nossa mãe e pátria”. Lembremos novamente. A espécie humana insere-se existencialmente na natureza. Foi concebida, nasceu e cresceu “nessa casa” e continua morando nela, porque fora dela não há como subsistir. Existe e subsiste nela, nela encontra os recursos que garantem a sua subsistência como espécie biológica, nela e a partir dela consolida a cultura. Nela encontra os estímulos que põem em ebulição sentimentos e emoções, a percepção da arte e do Belo. Nela encontra os símbolos que dão vida e conferem sentido à sua existência. Nela, enfim, molda seu imaginário, suas crenças e religiões.

Acontece que a transformação de uma cosmovisão moldada pelo pragmatismo, pelo utilitarismo, pelo racionalismo inclusive teológico, para uma perspectiva ética e humanista, implica numa revolução de proporções e consequências difíceis de dimensionar.

Até aqui identificamos o que está acontecendo com e dentro da “nossa casa”. A tarefa foi relativamente fácil. Acontece que o “como”  resolver a questão, vem a ser um  desafio gigantesco tomando em consideração, em primeiro lugar, a situação e as características desse começo de milênio. Em segundo lugar, pelo tempo necessário para consolidar os fundamentos dessa mudança revolucionária e o tempo necessário para a sua implantação e consolidação.


É nesse plano que a “Encíclica Verde” do Papa Francisco bate de frente com a cosmovisão que orienta os donos do poder político, econômico e ideológico. Sintomático foi e ainda é o silêncio ou quase silêncio da grande da mídia. No protocolo de Paris de dezembro de 2015 o documento sequer foi citado.

This entry was posted on quarta-feira, 27 de setembro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.