Se
o coração não animar a razão, pouca consistência e pouca durabilidade terão as
ações elaboradas pela racionalidade política, econômica ou ideológica. O Papa
chama a atenção que
Esta convicção não pode ser
desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que
determinam o nosso comportamento. Se nos
aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem essa abertura para a admiração
e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza da
nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do
consumidor ou de um mero explorador de recursos naturais incapaz de por um
limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos
intimamente unidos a tudo que existe,
então brotarão de modo espontâneo a solidariedade e a solicitude. A pobreza e
austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior mas
algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um objeto de uso e
domínio. (Laudato si, 11)
A educação proposta pelo biólogo “humanista
secular” Edward Wilson, o exemplo de São Francisco de Assis e a proposta da
Encíclica do Papa Francisco, deixam claro que a maravilhosa racionalidade do
mundo material tem alma, coração e emoção. Ensinam para quem tem olhos para ver
e ouvidos para ouvir que o ambiente que nos cerca é um manancial sem limites
que a natureza humana tem de mais existencial. Em contato com as plantas e
animais, a paisagem geográfica com suas montanhas, vales e planícies,
florestas, savanas e desertos, fazem
emergir o humano, a “Menschlichkeit”, na sua forma mais autêntica. Para os que
estão em busca de provas para a existência de Deus o livro da natureza abre
suas páginas como o livro dos livros da Sua Revelação. Para o geneticista
Francis Kollins o código genético é uma linguagem cifrada com que Deus se
comunica com os homens. Para o botânico Balduino Rambo alguém mora nos abismos escuros
rodeados de montanhas; alguém vigia no
alto da torre da montanha; alguém sussurra na névoa da noite; à sombra dos
pinheirais desfruta-se “a pátria na terra”; o Eterno faz tremer as montanhas
sob a cadência marcial de suas eternidades; muito do que não está escrito nos
livros, intui-se no silêncio e na sombra mortiça da floresta. Por intuir
significados de ordem superior na natureza houve tentativas de desqualificar o
Pe. Rambo como cientista rebaixando-o ao nível de um romântico sonhador e um
místico alienado e isso partindo de
irmãos seus de ordem religiosa.
Pergunta-se a essa altura a esses críticos: afinal
para que serve a ciência, o cientistas e os resultados da investigação, senão
para aperfeiçoar o humano no homem? Convém não esquecer que o humano no homem
não termina numa racionalidade fria do “preto no branco”, na soberba do
cientista que acredita cegamente nos seus métodos e instrumentos ou no filósofo
que não reconhece racionalidade fora dos seus silogismos aparentemente sem
brechas. O humano no homem é, antes de mais nada emoção, afeto, amor,
solidariedade, abertura para um universo que vai além do palpável. O humano no
homem é abertura para a harmonia, para o Belo, para a Divindade. “Pulchritudo semper antiqua et semper nova - Beleza sempre antiga e sempre nova”.
O Papa Francisco, aliado aos cientistas e
pensadores que se alinham nessa direção, conclui: “O mundo é algo a mais que um
problema a resolver, é um mistério gozoso
que contemplamos na alegria e no louvor. (Laudato se, 12.) O Pe. Rambo
refletindo sobre essa temática anotou no seu diário do dia 10 de julho de 1960.
Toda a nossa existência equilibra-se entre dois polos: Razão e
intuição. O empobrecimento definitivo do homem instala-se no momento em que
elege o utilitarismo como norma maior da vida. Este é certamente o caso do ouro
e do dinheiro que levam à personalidade degenerada da usura e da cobiça. Um
esbanjador sem preocupações vem a ser, em última análise, um ser humano muito
melhor do que a caricatura do procedimento que inverte todos os valores.
(Diário, 10 de julho de 1960)
Profético como em outras ocasiões, o Pe. Rambo resumiu,
em poucas palavras, há 56 anos, o cerne da crise que aflige a pós-modernidade:
a opção pelo utilitarismo como valor maior e o racionalismo sem ética para se
apossar sem piedade dos recursos
naturais. Para o filósofo nicaraguense
Alexandro Serrano Caldera:
“Rompeu-se também o contrato natural que selava o convênio original entre o
homem e a natureza e o que presenciamos e padecemos é uma dialética perversa,
na qual o ser humano destrói a natureza e por essa via destrói-se a si mesmo”.
(Caldera, 2004, p. 30). A humanidade vive num cenário em que todas as
referências estáveis, os valores perenes, o humano no homem, a
“Menschlichkeit”, parecem que foram arquivados nos museus da história,
colocando o homem frente ao desafio maior: “a reconstrução da unidade
despedaçada, a reunificação dos pedaços dispersos da existência: a vida e o
trabalho, a imaginação e a realidade, a
ilusão e a desesperança, a paixão e a razão, a liberdade e a igualdade”.
(Caldera, 2004, p. 16).
Essa é a sina e a maldição que costuma viciar e
terminar na inocuidade pequenas e grandes iniciativas em favor da proteção e da
preservação da vida na terra. Tomemos como exemplo o tão alardeado Congresso do
Clima em Paris em dezembro de 2015. Chega a ser patético, senão pífio, o
documento assinado por quase duas centenas de líderes mundiais. O utilitarismo
interesseiro deu o tom aos debates e ditou os termos do documento final. Para os governantes e líderes reunidos em Paris, o
clima parece ser o grande e único vilão
da deterioração ambiental. Estancar e se possível começar a diminuir o
aquecimento global a partir de 2.020, projetando metas até o final do século,
soa como escamoteamento e mistificação. Cabe, portanto a outros governantes, a
outros líderes implementar as ações
necessárias para atingir as metas. E há um pormenor que atribui aos governos
dos respectivos países por em prática as medidas e estratégias necessárias. O
documento com esse feitio dá a impressão que em Paris se exibiu um grande “faz
de conta” e a perspectiva de resultados
práticos significativos no mínimo não permite grandes ilusões. Tem todas
condições de transformar-se num “parto de montanha”, como foi a Conferência
internacional do Clima no Rio de Janeiro em 1992. “Parturient montes, nascitur
ridiculus mus” – “As motanhas dão à luz e nasce um ridículo camundongo”, ensina
a velha sabedoria romana.
O
mais lamentável foi que não entrou nem em pauta, muito menos foi analisada, a
imensa complexidade e abrangência do problema ambiental como um todo. Diminuir
ou pelo menos sustar o aquecimento global isolado do contexto global do que
está acontecendo na natureza, não passa de uma tentativa tópica para sanar um
mal que padece de muitas causas que permeiam a macro, a micro e a nano na natureza.
No máximo o clima vem a ser um dos sintomas, a ponta do iceberg fora da água,
sinalizando que algo de muito maior e de muito mais peso encontra-se escondido
abaixo da superfície. Outras questões tão ou
mais urgentes que o aquecimento global por se constituírem em parte suas
causas, não poderiam deixar de ser incluídas com destaque na pauta das
reflexões de um encontro global como foi
o de Paris ou Rio de Janeiro. Apontando alguns: a água, os solos agrícolas e o
emprego irresponsável de agrotóxicos e pesticidas que ameaçam, a médio e longo
prazo os solos, tornando a sua recuperação uma grande incógnita. Soma-se a tudo
isso a agressão, a invasão e a destruição sistemática dos ecossistemas naturais,
responsáveis pela circulação das correntes atmosféricas que carregam a umidade
e determinam assim a distribuição da chuva, regulam a temperatura e administram
a biodiversidade, fundamental para manter em equilíbrio novamente a macro, mico
e nano fauna e flora. E por sua vez, esse equilíbrio biológico, mantém os solos em condições de
alimentar a dinâmica que impulsiona e
garante o equilíbrio do sistema como um todo. Não é nossa intenção entrar em
maiores detalhes na complexidade dos ecossistemas naturais e os riscos para
vida na terra em geral e da humanidade em particular inerentes à sua progressiva
e rápida substituição por ecossistemas humanizados muito mais pobres
ecologicamente, mesmo que empreguem técnicas ecologicamente consideradas
adequadas, no seu uso agrícola ou manejo florestal.
Acontece
ainda que qualquer discussão em qualquer nível e com qualquer tipo de objetivo
envolvendo a natureza, carece de base sólida e por isso mesmo de sentido,
quando falta como pressuposto norteador a consciência que se está lidando com
um bem comum. E em se tratando de um bem comum toda e qualquer decisão sobre o
acesso e desfrute dos recursos naturais, implica necessariamente em
responsabilidade ética. Edward Wilson que se autodenominou “humanista secular”,
conclui com esse parágrafo o seu livro: “A Criação – como salvar a vida na
terra”, escrita na forma de carta a um pastor fundamentalista:
Ao encerrar esta carta, espero que o senhor não tenha se
ofendido quando falei em ascender rumo à Natureza, e não longe dela. Eu teria
grande satisfação de saber que esse
desejo, tal como expliquei no livro, é compatível com as suas crenças. Pois seja como for que
as tensões acabarem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos,
seja como for que a ciência e a religião aumentem e diminuam de importância na
mente dos homens, permanece o compromisso, ao mesmo tempo humano e
transcendental, que nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar.
(Wilson, 2008, p. 188)
O
Pe. Rambo, depois de afirmar que “o homem, filho desta terra, que lhe fornece o
pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato
perante a fisionomia desta sua mãe e pátria” (Rambo, 1942, p. 337), chama a
atenção que enquanto a densidade
demográfica é pequena e a abundância dos recursos supera a demanda, esses
sentimentos e preocupações permanecem em segundo plano. A preocupação torna-se
cada vez mais insistente na medida em que as “necessidades brutais da vida
forçam a interferir sempre mais na
expressão natural do ambiente, despertando a dor perante a destruição de suas
feições naturais ...” (Rambo, 1942), p. 338). Depois dessas observações de
natureza histórico-cultural do homem em relação a seu meio geográfico, passou a
detalhar por onde começar a proteção à natureza, que ações adotar e sobre que
fundamentos pô-las em prática.
Sob a rubrica da proteção à
natureza vai a conservação dos monumentos naturais, das espécies botânicas e zoológicas periclitantes, das paisagens
típicas originais – tudo isso enquanto as necessidades concretas da sociedade
humana o permitirem. A proteção à natureza, em primeiro lugar está a serviço
das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar,
baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a
destruição desnecessária ou inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em
terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu,
acomodando as obras da mão humana ao estilo da
terra, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagogia sociais e um
adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, 1942, p. 338).
Para
dar peso e respaldo à Encíclica Verde do Papa Francisco, chamamos como reforço
a opinião de um cientista especialista em insetos, ecossistemas naturais e
humanizados, que se auto denominou um “Humanista secular. O segundo que
escolhemos foi o Pe. Balduino Rambo, jesuíta como o Papa Francisco. Vamos
acrescentar mais, desta vez um dos ícones da genética, o médico geneticista,
diretor do Projeto Genoma, Francis Collins. Em seu memorável livro “A Linguagem
de Deus”, ao discutir os limites científicos e a validade ética no avanço da
ciência registrou:
Cada parte tende a recorrer
a um padrão superior não declarado. Esse padrão é a Lei Moral, que pode também
ser chamada de “lei do comportamento correto”, e sua existência em cada uma
dessas situações parece inquestionável. O que se está debatendo é se uma ação
ou outra consiste em uma aproximação às exigências de tal lei. (Collins, 2007,
p. 30)
Mais pelo final do livro volta ao assunto
Na verdade descobri que
assim que os fatos de um problema ganham nitidez, na maioria das vezes as
pessoas com visões de mundo
completamente distintas chegam a uma conclusão que compartilham e com a qual se
sentem à vontade. Embora isso possa parecer à primeira vista surpreendente,
acredito que seja um exemplo interessante da universalidade da Lei Moral. Todos
nós temos um conhecimento inato do certo
e errado; apesar disso poder ser
disfarçado pelas distrações e mal-entendidos. (Collins, 2007, p. 246)