Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 12 -

Se o coração não animar a razão, pouca consistência e pouca durabilidade terão as ações elaboradas pela racionalidade política, econômica ou ideológica. O Papa chama a atenção que

Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam  o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem essa abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza da nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador de recursos naturais incapaz de por um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente  unidos a tudo que existe, então brotarão de modo espontâneo a solidariedade e a solicitude. A pobreza e austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um objeto de uso e domínio. (Laudato si, 11)

A educação proposta pelo biólogo “humanista secular” Edward Wilson, o exemplo de São Francisco de Assis e a proposta da Encíclica do Papa Francisco, deixam claro que a maravilhosa racionalidade do mundo material tem alma, coração e emoção. Ensinam para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir que o ambiente que nos cerca é um manancial sem limites que a natureza humana tem de mais existencial. Em contato com as plantas e animais, a paisagem geográfica com suas montanhas, vales e planícies, florestas,  savanas e desertos, fazem emergir o humano, a “Menschlichkeit”, na sua forma mais autêntica. Para os que estão em busca de provas para a existência de Deus o livro da natureza abre suas páginas como o livro dos livros da Sua Revelação. Para o geneticista Francis Kollins o código genético é uma linguagem cifrada com que Deus se comunica com os homens. Para o botânico Balduino Rambo alguém mora nos abismos escuros rodeados de montanhas; alguém vigia  no alto da torre da montanha; alguém sussurra na névoa da noite; à sombra dos pinheirais desfruta-se “a pátria na terra”; o Eterno faz tremer as montanhas sob a cadência marcial de suas eternidades; muito do que não está escrito nos livros, intui-se no silêncio e na sombra mortiça da floresta. Por intuir significados de ordem superior na natureza houve tentativas de desqualificar o Pe. Rambo como cientista rebaixando-o ao nível de um romântico sonhador e um místico alienado e isso partindo  de irmãos seus de ordem religiosa. 

Pergunta-se a essa altura a esses críticos: afinal para que serve a ciência, o cientistas e os resultados da investigação, senão para aperfeiçoar o humano no homem? Convém não esquecer que o humano no homem não termina numa racionalidade fria do “preto no branco”, na soberba do cientista que acredita cegamente nos seus métodos e instrumentos ou no filósofo que não reconhece racionalidade fora dos seus silogismos aparentemente sem brechas. O humano no homem é, antes de mais nada emoção, afeto, amor, solidariedade, abertura para um universo que vai além do palpável. O humano no homem é abertura para a harmonia, para o Belo, para a  Divindade. “Pulchritudo  semper antiqua et semper nova -  Beleza sempre antiga e sempre nova”.

O Papa Francisco, aliado aos cientistas e pensadores que se alinham nessa direção, conclui: “O mundo é algo a mais que um problema a resolver, é um mistério gozoso  que contemplamos na alegria e no louvor. (Laudato se, 12.) O Pe. Rambo refletindo sobre essa temática anotou no seu diário do dia 10 de julho de 1960.

Toda a nossa existência  equilibra-se entre dois polos: Razão e intuição. O empobrecimento definitivo do homem instala-se no momento em que elege o utilitarismo como norma maior da vida. Este é certamente o caso do ouro e do dinheiro que levam à personalidade degenerada da usura e da cobiça. Um esbanjador sem preocupações vem a ser, em última análise, um ser humano muito melhor do que a caricatura do procedimento que inverte todos os valores. (Diário, 10 de julho de 1960)

Profético como em outras ocasiões, o Pe. Rambo resumiu, em poucas palavras, há 56 anos, o cerne da crise que aflige a pós-modernidade: a opção pelo utilitarismo como valor maior e o racionalismo sem ética para se apossar sem piedade dos  recursos naturais. Para o filósofo nicaraguense  Alexandro  Serrano Caldera: “Rompeu-se também o contrato natural que selava o convênio original entre o homem e a natureza e o que presenciamos e padecemos é uma dialética perversa, na qual o ser humano destrói a natureza e por essa via destrói-se a si mesmo”. (Caldera, 2004, p. 30). A humanidade vive num cenário em que todas as referências estáveis, os valores perenes, o humano no homem, a “Menschlichkeit”, parecem que foram arquivados nos museus da história, colocando o homem frente ao desafio maior: “a reconstrução da unidade despedaçada, a reunificação dos pedaços dispersos da existência: a vida e o trabalho, a imaginação e a realidade,  a ilusão e a desesperança, a paixão e a razão, a liberdade e a igualdade”. (Caldera, 2004, p. 16).

Essa é a sina e a maldição que costuma viciar e terminar na inocuidade pequenas e grandes iniciativas em favor da proteção e da preservação da vida na terra. Tomemos como exemplo o tão alardeado Congresso do Clima em Paris em dezembro de 2015. Chega a ser patético, senão pífio, o documento assinado por quase duas centenas de líderes mundiais. O utilitarismo interesseiro deu o tom aos debates e ditou os termos do documento final. Para  os governantes e líderes reunidos em Paris, o clima  parece ser o grande e único vilão da deterioração ambiental. Estancar e se possível começar a diminuir o aquecimento global a partir de 2.020, projetando metas até o final do século, soa como escamoteamento e mistificação. Cabe, portanto a outros governantes, a outros líderes  implementar as ações necessárias para atingir as metas. E há um pormenor que atribui aos governos dos respectivos países por em prática as medidas e estratégias necessárias. O documento com esse feitio dá a impressão que em Paris se exibiu um grande “faz de conta” e a perspectiva de  resultados práticos significativos no mínimo não permite grandes ilusões. Tem todas condições de transformar-se num “parto de montanha”, como foi a Conferência internacional do Clima no Rio de Janeiro em 1992. “Parturient montes, nascitur ridiculus mus” – “As motanhas dão à luz e nasce um ridículo camundongo”, ensina a velha sabedoria romana.

O mais lamentável foi que não entrou nem em pauta, muito menos foi analisada, a imensa complexidade e abrangência do problema ambiental como um todo. Diminuir ou pelo menos sustar o aquecimento global isolado do contexto global do que está acontecendo na natureza, não passa de uma tentativa tópica para sanar um mal que padece de muitas causas que permeiam a macro, a micro e a nano na natureza. No máximo o clima vem a ser um dos sintomas, a ponta do iceberg fora da água, sinalizando que algo de muito maior e de muito mais peso encontra-se escondido abaixo da superfície. Outras questões tão ou  mais urgentes que o aquecimento global por se constituírem em parte suas causas, não poderiam deixar de ser incluídas com destaque na pauta das reflexões de  um encontro global como foi o de Paris ou Rio de Janeiro. Apontando alguns: a água, os solos agrícolas e o emprego irresponsável de agrotóxicos e pesticidas que ameaçam, a médio e longo prazo os solos, tornando a sua recuperação uma grande incógnita. Soma-se a tudo isso a agressão, a invasão e a destruição sistemática dos ecossistemas naturais, responsáveis pela circulação das correntes atmosféricas que carregam a umidade e determinam assim a distribuição da chuva, regulam a temperatura e administram a biodiversidade, fundamental para manter em equilíbrio novamente a macro, mico e nano fauna e flora. E por sua vez, esse equilíbrio  biológico, mantém os solos em condições de alimentar  a dinâmica que impulsiona e garante o equilíbrio do sistema como um todo. Não é nossa intenção entrar em maiores detalhes na complexidade dos ecossistemas naturais e os riscos para vida na terra em geral e da humanidade em particular inerentes à sua progressiva e rápida substituição por ecossistemas humanizados muito mais pobres ecologicamente, mesmo que empreguem técnicas ecologicamente consideradas adequadas, no seu uso agrícola ou manejo florestal.

Acontece ainda que qualquer discussão em qualquer nível e com qualquer tipo de objetivo envolvendo a natureza, carece de base sólida e por isso mesmo de sentido, quando falta como pressuposto norteador a consciência que se está lidando com um bem comum. E em se tratando de um bem comum toda e qualquer decisão sobre o acesso e desfrute dos recursos naturais, implica necessariamente em responsabilidade ética. Edward Wilson que se autodenominou “humanista secular”, conclui com esse parágrafo o seu livro: “A Criação – como salvar a vida na terra”, escrita na forma de carta a um pastor fundamentalista:

Ao encerrar  esta carta, espero que o senhor não tenha se ofendido quando falei em ascender rumo à Natureza, e não longe dela. Eu teria grande satisfação de saber que esse  desejo, tal como expliquei no livro, é compatível  com as suas crenças. Pois seja como for que as tensões acabarem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos, seja como for que a ciência e a religião aumentem e diminuam de importância na mente dos homens, permanece o compromisso, ao mesmo tempo humano e transcendental, que nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2008, p. 188)

O Pe. Rambo, depois de afirmar que “o homem, filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria” (Rambo, 1942, p. 337), chama a atenção que enquanto a  densidade demográfica é pequena e a abundância dos recursos supera a demanda, esses sentimentos e preocupações permanecem em segundo plano. A preocupação torna-se cada vez mais insistente na medida em que as “necessidades brutais da vida forçam a interferir  sempre mais na expressão natural do ambiente, despertando a dor perante a destruição de suas feições naturais ...” (Rambo, 1942), p. 338). Depois dessas observações de natureza histórico-cultural do homem em relação a seu meio geográfico, passou a detalhar por onde começar a proteção à natureza, que ações adotar e sobre que fundamentos pô-las em prática.

Sob a rubrica da proteção à natureza vai a conservação dos monumentos naturais, das espécies botânicas  e zoológicas periclitantes, das paisagens típicas originais – tudo isso enquanto as necessidades concretas da sociedade humana o permitirem. A proteção à natureza, em primeiro lugar está a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária ou inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da  terra, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagogia sociais e um adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, 1942, p. 338).

Para dar peso e respaldo à Encíclica Verde do Papa Francisco, chamamos como reforço a opinião de um cientista especialista em insetos, ecossistemas naturais e humanizados, que se auto denominou um “Humanista secular. O segundo que escolhemos foi o Pe. Balduino Rambo, jesuíta como o Papa Francisco. Vamos acrescentar mais, desta vez um dos ícones da genética, o médico geneticista, diretor do Projeto Genoma, Francis Collins. Em seu memorável livro “A Linguagem de Deus”, ao discutir os limites científicos e a validade ética no avanço da ciência registrou:

Cada parte tende a recorrer a um padrão superior não declarado. Esse padrão é a Lei Moral, que pode também ser chamada de “lei do comportamento correto”, e sua existência em cada uma dessas situações parece inquestionável. O que se está debatendo é se uma ação ou outra consiste em uma aproximação às exigências de tal lei. (Collins, 2007, p. 30)

Mais pelo final do livro volta ao assunto


Na verdade descobri que assim que os fatos de um problema ganham nitidez, na maioria das vezes as pessoas com  visões de mundo completamente distintas chegam a uma conclusão que compartilham e com a qual se sentem à vontade. Embora isso possa parecer à primeira vista surpreendente, acredito que seja um exemplo interessante da universalidade da Lei Moral. Todos nós temos um conhecimento inato  do certo e errado; apesar disso  poder ser disfarçado pelas distrações e mal-entendidos. (Collins, 2007, p. 246)

This entry was posted on quarta-feira, 20 de setembro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.