Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 9 -

Uma questão fundamental a ser resolvida, está implícita nos ensinamentos da Encíclica, no momento quando o Papa lembra “que uma teologia integral requer a abertura para categorias  que transcendem a linguagem das Ciências ou da biologia  e nos põe em contato com a essência do se humano”. Poderíamos, quem sabe, formular  a questão de uma outra maneira. Para tentar entender a relação existencial com a “sua casa” natural em toda a sua extensão e profundidade, não basta nem a racionalidade científica, nem a filosófica nem a teológica. A explicação é simples. A racionalidade fundamenta-se em bases objetivas, a Ciência no “preto sobre branco”, dos resultados fornecidos pelos seus método e instrumentos. As Ciências do Espírito tiram  suas conclusões sobre “o preto e o branco” dos seus raciocínios e silogismos supostamente sem brechas. É verdade que com isso chega-se a entender, vamos dizer, a metade da complexa relação do homem com a natureza. Voltando à metáfora da “casa”, duas formas de racionalidade explicam a construção, os materiais empregados, o projeto técnico em função das necessidades de sobrevivência do homem como indivíduo  e como espécie. Acontece que com isso falta explicar o outro lado, exatamente aqueles atributos que fazem da “casa” uma “Querência”, um “Heim”, um “Home”. Lembrando São Francisco de Assis que se comunicava com todas as criaturas, ao ponto de pregar para as flores e o pássaros, o Papa pergunta: “Porque sua reação ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo econômico, porque para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho”. (Laudato se, 11)

Defrontamo-nos, à essa altura, com um desfio de respeitável tamanho. Se a atitude de São Francisco de Assis e de todos os demais que percebem na natureza aspectos que escapam às conclusões da Ciência, nem cabem na racionalidade dos silogismos, com que ferramenta é possível identificá-los? Não importa se a resposta vem da parte da Ciência consciente da limitação  dos seus métodos  e instrumentos; tão pouco importa se de filósofos e teólogos que não se satisfazem com a frieza dos seus raciocínios; tão pouco importa ainda se vem das pessoas comuns que tem uma capacidade como ninguém  para “farejar” sentidos, símbolos e mistérios na Natureza; tão pouco dão conta do recado as experiências dos místicos.

A explicação vem da forma de conhecer que foi a primeira disponível ao homem nos primórdios da sua existência como espécie. Seu relacionamento com o mundo ambiente foi possível por meio dos sentidos, como qualquer outro animal em sua volta. Mas, equipado com inteligência reflexa, foi observando o que havia e o que acontecia em sua volta. O ensaio e o erro ensinaram-lhe as escolhas a serem feitas, as opções a serem descartadas. Ao mesmo tempo “farejando” o que acontecia em sua volta, foi “intuindo” significados, simbolismos nos fatos, fenômenos e acontecimentos da natureza. Foi por esse caminho que a humanidade consolidou os seus mais antigos corpos do conhecimento. Não foram o resultado de uma lógica irrefutável ou  das evidências “preto no branco” de métodos científicos. Foram o produto elaborado à bases da Intuição. No entendimento do Pe. Rambo

Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado imediato da palavra, como do som subliminar que emite e a ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se prestou muito pouca atenção. Bem considerada, ela não é um som secundário e sim a nota dominante no contexto musical do espírito dinâmico do homem.  (Rambo, 1994, p. 265)

O Pe. Rambo escreveu esse parágrafo no contexto de uma reflexão sobre a construção do conhecimento. Em se tratando especificamente do conhecimento da natureza, do meio ambiente, da “nossa casa”, a intuição como  forma de conhecer, assume uma importância toda especial. Isso decorre do fato de o homem ser “filho dessa mãe e pátria” no sentido mais próprio do conceito. Essa questão já foi objeto de análise mais acima. A inserção existencial na natureza como então definimos essa relação, faz com que o ser humano perceba o meio em que vive com seus sentidos, o identifique e entenda pela intuição e a partir dela  cria métodos, tecnologias e categorias mentais, para organizar  “sua casa”, torná-la habitável e fornecer os alimentos para o corpo e o espírito.

A intuição, na verdade, foi a primeira das formas do conhecimento. Se fixarmos a história do homem em um milhão de anos, sem favor nenhum em 95% dessa história  seus conhecimentos vieram-lhe da intuição. E foi o conhecer via intuição que levou às demais vias de conhecer, conferindo base “científica”, ou “racionalidade” ao conhecimento intuitivo.


Acontece que a evolução das culturas e civilizações  foi exigindo cada vez mais fundamentação objetiva para o conhecimento. A organização da “casa” pedia cada vez mais conhecimento da identidade material dos seus componentes, assim como a identificação da natureza simbólica, mágica e religiosa por meio de uma crescente racionalização. Ora os dois níveis, tanto o material quanto o simbólico, mágico e religioso, tiveram o seu ponto de partido no conhecimento intuitivo. Assim, por ex., a astronomia conferiu legitimidade, racionalidade, se preferirmos, fornecendo a explicação para “o como” os astros se movimentam, enquanto a astrologia respondia aos “porquês” da coreografia terrestre. Em outras palavras. A astronomia como ciência exata, garante racionalidade científica ao universo, enquanto a filosofia e a teologia oferecem a racionalidade espiritual.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 8 -

A questão ecológica tem tudo a ver  com a atitude que as pessoas assumem ao lidar com a natureza. No começo da encíclica o Papa Francisco definiu a natureza como sendo “a nossa casa”, a “nossa querência”, diríamos nós, “a nossa mãe e pátria” como a definiu o Pe. Rambo. Esses conceitos, ou quaisquer outros  que as muitas culturas cunharam para identificar o cenário em que o homem vive a intimidade existencial da sua vida, são infinitamente mais do que uma definição técnica.

Para o Papa os argumentos a que os grandes na política e economia recorrem não expressam a natureza mais profunda do meio ambiente. Ás cúpulas interessa o poder que comanda a política e a economia. As demandas do povo comum pouco ou nada importam. Ficam relegadas a um plano secundário, senão de todo ignoradas. O que dá para esperar nessas condições é por demais conhecido pela experiência dos encontros globais que já foram realizados.

Toda a argumentação do Papa parte de uma outra perspectiva e fundamenta-se em outros valores. A metáfora “nossa casa” ou as outras com o mesmo significado indicam essa perspectiva. A casa, a moradia do homem não se resume num abrigo para proteger-se contra as intempéries, contra os riscos que o meio oferece, ou um lugar privativo para a reprodução como acontece com os animais e os pássaros. Quando alguém sente saudade de casa, não é o abrigo ou a proteção física que o move. É evidente que a casa é também uma realidade física localizada num espaço geográfico definido. Até aqui pouca diferença com uma casa de João de Barro, um ninho de sabiá ou toca de tatu. Acontece que a casa do homem representa infinitamente mais. É o local onde as pessoas nascem, o cenário das suas vivências e experiências infantis, a escola que os prepara para  a vida. Pela palavra e principalmente pelo exemplo, aprende os valores humanos, sociais e religiosos que servirão de norte para o resto da vida. Os mestres nesse aprendizado são os pais, avós e irmãos maiores. As vivências experimentadas, as experiências vividas e os aprendizados feitos nessa escola da vida, apesar dos pesares, nunca se apagarão de todo. É nesse ambiente que se interiorizam  os princípios e os valores perenes que conferem solidez, coerência e segurança no enfrentamento com as surpresas da vida. A casa no verdadeiro sentido da palavra é ainda o ambiente que oferece as condições onde prospera o amor desinteressado, a solidariedade sem  reticências e a comunhão sem egoísmos entre as pessoas. Mas não é só isso. Na “casa” as pessoas aprendem a viver e a conviver com as outras pessoas na micro sociedade da família. O sucesso ou o fracasso nesse convívio refletir-se-á mais tarde no relacionamento  com a comunidade local e nas relações em outros níveis.

A metáfora “nossa cassa” ainda não está esgotada. O conceito como entendido na Encíclica não se limita às quatro paredes de uma construção física. Inclui os arredores imediatos com suas árvores, quem sabe uma mini floresta, árvores frutíferas, árvores de sombra, flores animais domésticos. Esse  cenário em que a moradia propriamente dita, ocupa a posição central, o ponto de convergência e polarização da vida familiar, dá a extensão do conceito “casa”, “lar”, “querência”, “Heim”, “Home”, “hogar”. Cada língua cunhou uma forma para expressar essa realidade na respectiva tradição cultural. Como se pode perceber, cada língua expressa o conceito de acordo com a índole pela qual as respectivas culturas o concebem. Toda a plenitude e toda a carga de significativos e simbolismos que dão sustentação à existência humana, resumem-se nesse conceito. Quanto mais longas são as histórias das  culturas, tanto mais rico em peculiaridades costume ser. Nesse particular a tradição alemã é emblemática. Quando alguém dessa tradição fala em saudade “de casa”, esse sentimento vai muito além da casa em que nasceu, para incluir também o  cenário geográfico comunitário. No original essas realidade expressa-se em quatro “Hs”, ou seja, “Haus”, “Hof”, Heim”, “Heimat”. “Haus” – a casa de moradia propriamente dita; “Hof”, pátio – a casa de moradia no contexto dos seus arredores, normalmente delimitados fisicamente por um muro ou uma cerca; “Heim” – a casa de moradia e suas imediações ou “Haus” e “Hof”, formando uma unidade; “Heimat” – o cenário geográfico mais amplo que abriga a comunidade local, com sua igreja, escola, cemitério, casa de comércio, oficinas de artesãos e demais arranjos que atendem a comunidade. Ter saudades “de casa” expressa a vinculação existencial com os quatro “Hs”.


Mas, no contexto da Encíclica o aspeto que mais interessa é a outra dimensão do conceito “casa”. no seu emprego como metáfora significando a natureza. Não se trata de uma morada individualizada, num local determinado, num cenário delimitado. Confunde-se com a natureza como um todo. Em outas palavras.  A grande natureza  é a “casa”, não do indivíduo mas da espécie humana como um todo. Nesta “casa” ela surgiu em algum momento que se perde nas brumas do tempo, em alguma savana da África ou em qualquer outro cenário, tanto faz. Concebido no meio da natureza, feito do mesmo “pó da terra”, o homem encontra alimento e abrigo rodeado dos outros animais, das plantas, frutos, flores, do sol, da lua, das estrelas e como pano de fundo de tudo a sinfonia dos sons da natureza. Nessa “casa” o homem não só encontra alimento e abrigo para o corpo como também alimento para seu espírito, para sua imaginação, seus sonhos, para desenvolver seu mundo simbólico, seu universo mágico e religioso. Em outras palavras. O homem vive nessa sua casa um relação com a natureza como um ser que existe como os minerais; existe e vegeta como as plantas; existe, vegeta  e sente como os animais; mas situa-se num nível acima porque, além e  existir, vegetar, sentir, é dotado da capacidade de raciocinar. Essa relação existencial explica a forma peculiar como as pessoas enxergam, compreendem e valorizam o ambiente natural, a “casa”, e tudo que lhe diz respeito. A forma de viver e o tipo de valorização depende da maneira individual como as pessoas se posicionam em relação a ela, da cultura em que nasceram e se criaram e da educação que receberam.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 7 -

O apelo para o diálogo e a colaboração vem também do lado da Genética, de momento o campo mais promissor e mais importante da Biologia por seu potencial  para avançar até os arcanos da vida e desvendar a sua natureza biológica. Escolhemos como porta voz emblemático dessa especialidade o Dr. Francis Collins, Diretor do Projeto Genoma Humano. Ele conta que até aos 21 anos foi agnóstico, até os 27 ateu fervoroso. Foi quando entrou em contato com os doentes internados no hospital em que cumpria residência médica. A convivência com eles, a maioria  pessoas simples do povo do interior, sua atitude frente à doença, não poucas vezes sem cura à vista, fizeram dele um crente em Deus que não escode sua suas convicções. Desde então faz da perfeita compatibilidade entre a Fé em Deus e a prática da Ciência como uma missão a ser cumprida.

No discurso que ajudou a elaborar para ser pronunciado pelo Presidente Clinton por ocasião da apresentação oficial  do Mapa do Genoma humano, cujo desenho coordenara, Collins inseriu o seguinte parágrafo, lido pelo Presidente. “Trata-se do mapa mais importante e mais extraordinário já produzido pela humanidade. Hoje estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados pela complexidade, pela beleza e pela maravilha da dádiva mais divina e mais sagrada de Deus”. (Collins, 2007, p. 10)

Numa outra passagem do seu livro “A Linguagem de Deus”, Collins afirma categoricamente.

É claro que a visão científica do mundo não é totalmente  suficiente para responder a todas as questões interessantes acerca da origem do universo e não há nada essencialmente em conflito entre a ideia de um Deus criador e o que a ciência revelou. Na verdade a hipótese de Deus soluciona algumas questões da profundidade mais problemática sobre o que veio antes do Big Bang e porque o universo aprece tão exatamente acertado para que estejamos aqui. (Collins, 2007, p. 87)

E sobre as conclusões de Robert Jastrow, citado mais acima, Collins acrescenta. “Tenho de concordar. O Big Bang grita por uma explicação divina. Obriga à uma conclusão de que a natureza teve um princípio definido. Não consigo ver como a natureza pôde ter-se criado. Apenas uma força sobrenatural, fora do tempo e do espaço poderia tê-la originado”. (Collins, 2007, p. 75)

Acrescentamos aos cientistas de renome citados, mais  um, também ele da área da genética. Este, por sua vez, é um dos sistematizadores e consolidadores  dessa especialidade, na metade do século XX. Falamos de Theodosius Dobzhansky, nascido na Ucrânia, filiado a Igreja Ortodoxa, mas fez toda a trajetória de cientista nos Estados Unidos. Entre suas muitas publicações, destaca-se: Herencia e la naturaliza del hombre, título na tradução no espanhol. Referindo-se  especificamente ao homem põe em dúvida a compreensão da sua natureza somente pelo lado da ciência. pois o homem é uma incógnita que pede explicações até hoje fora do alcance da ciência.

O homem, quem é? como se originou e para onde vai? No mínimo é discutível que a ciência por si só esteja um dia de posse da resposta definitiva para esses questionamentos. Até os espíritos mais apurados, quem sabe exatamente por serem os mais apurados, ficam sem ação. Fazem aproximadamente oito séculos e meio que Omar Kayam expressou com exatidão o dilema; “Chegamos a este mundo sem saber porque, nem donde, querendo ou não, como a água que flui; e partimos dele como o vento pelo deserto, para onde, não sei, querendo ou não querendo”. (em Dobzhansky, 1969, p. 150-151)

Dobzhansky segue nas sus reflexões. “O homem é o produto final de um longo processo evolutivo, aparentado de todos os seres vivos. Não é só produto da evolução como continua nesse processo. O sentido de sua evolução é um problema ainda não resolvido”. (Dobzhansky, 1969, p. 151)

Falando sobre genética e herança cultural concluiu.


Inevitavelmente, a natureza do homem é sua natureza biológica. Sem dúvida o ser humano é algo mais que a capacidade de o DNA  auto duplicar-se. Considerado tanto do ponto de vista biológico quanto do filosófico o ser humano é o produto mais singular do processo evolutivo.  Recebe e transmite duas heranças, a biológica e a cultural. A herança biológica do homem é muito parecida como a de qualquer outro organismo; é transmitida exclusivamente dos pais aos filhos e outros descendentes diretos. Não é possível dar os genes aos melhores amigos ou parentes, salvo que estes sejam os próprios filhos. A herança cultural, ou simplesmente a cultura, é transmitida pelo ensino, imitação e aprendizagem, e em grande parte pela linguagem. (Dobzhansky, 1969, p. 152-153)

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 6 -

Depois de definir os fundamentos doutrinários o papa, retomando o pensamento dos seus antecessores, acrescenta que nada é indiferente. Os acontecimentos mais triviais do cotidiano de uma “casa”, são importantes. Por mais insignificantes que pareçam dão brilho e conferem sentido ao cenário doméstico ou o perturbam e enfeiam. Essa maneira de enxergar e avaliar as coisas interessa a todos indistintamente de filiação religiosa,  confessional, política ou ideológica. No momento em que essa questão entra na agenda de documentos pontifícios eles deixam de ser restritos aos católicos. O endereço são todas as pessoas de boa vontade, crentes ou não crentes. Na encíclica “Pacem in terris”, de João XXIII, em princípio dirigida ao mundo católico, mas ao tocar na questão do meio ambiente abriu a sua mensagem “a todas pessoas de boa vontade”. “Agora à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. ( ... ) “Nesta encíclica pretendo especialmente entrar em diálogo  com todos acerca da nossa casa comum”. (Laudato se, 3)

Oito anos depois da Pacem in terris, o papa Paulo VI, na carta “Octogesima adveniens”, referindo-se à problemática em pauta, coloca-a numa dimensão histórico cultural. Segundo o pontífice, a questão ecológica configura-se numa crise que é “consequência dramática da atividade descontrolada do ser humano: “por motivo de  uma exploração inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruir e vir a ser, também ele, vítima dessa degradação”. Num discurso à FAO em 16 de novembro de 1970, Paulo VI chamou a atenção sobre uma possível catástrofe ecológica como efeito da “explosão da civilização industrial”. Insistiu também na “necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem”. (em Laudato se, 4).

João Paulo II abordou a questão ambiental na encíclica “Redemptor hominis” de 4  de março de 1979, ao observar que “os ser humano parece não se dar conta do outro significado dos seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um uso e consumo imediatos”. Em 8 de janeiro o mesmo papa falou em “conversão ecológica global”, chamando a atenção para o pouco esforço em “salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana”. E no mesmo documento adverte que, para melhorar o  mundo são necessárias mudanças radicais “nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidas do poder,  que hoje regem  as sociedades”. (em Laudato se, 5-6). o papa Francisco chama novamente a atenção que o progresso e os meios e estratégias que o implementam deveriam tomar como um dos parâmetros de ação as exigências éticas. Pelo fato de a natureza ser um bem comum e o homem depender dela para a vida e a morte, qualquer ação invasora que compromete a sua integridade e equilíbrio implica em responsabilidade ética.

Na encíclica “Sollicitude in rei socialis” de 30 de  dezembro de 1987, João Paulo II chama a atenção para a obrigação “de ter em conta a natureza de cada ser e as ligações entre todos, num sistema ordenado”. (em Laudato se, 5). O papa Bento XVI, dirigindo-se ao corpo diplomático  em 8 de janeiro de 2007, foi ainda mais explícito e categórico ao lembrar aos que de alguma forma exercem poder e autoridade na atual conjuntura mundial convidando para eliminar “as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos  de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente”. (em Laudato se, 6). Na encíclica “Caritas in veritate” ensina; “O livro da natureza é uno e indivisível”. (em Laudato se, 6). E para dar uma ideia desse “ente indivisível”, incluiu o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. E dando uma outra dimensão à questão: “A degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana. (em Laudatdo se, 6). Numa alocução ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone, põe o dedo direto na ferida: A criação resulta comprometida “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumismo é para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”. (em Laudato se, 6)

Nas linhas e nas entrelinhas do que vimos refletindo, conclui-se  sem grande esforço, que a natureza não é só una  e indivisível, como forma uma unidade sistêmica em que cada componente tem um sentido e cumpre uma função; que o homem e suas culturas prospera nas relações simbióticas dentro do sistema  global da natureza; que a natureza com seus recursos é um bem comum ao qual todos tem o direito de usufruir; que, em sendo assim, a exploração das dádivas da natureza implica em responsabilidade moral e ética; que o homem não é senhor do meio ambiente em que passa a sua existência; que o atual modelo civilizatório a serviço de outros valores, valores que ignoram a ética como valor maior, é predatório e destruidor; que, sob pena de todas as políticas e iniciativas não passar de uma cortina de fumaça, é preciso começar pela mudança profunda nas filosofias e estratégias que lidam com os desafios ambientais; que, finalmente, para  que haja uma real perspectiva nessa batalha inglória, requer-se a soma solidária das  forças vivas da comunidade humana.

Nessa cruzada ninguém  está dispensado de dar  sua contribuição proporcionalmente à importância do lugar que ocupa no todo do sistema. Cientistas, filósofos, teólogos, líderes de organizações sociais, os mentores e donos de toda a ordem de tecnologias, os manipuladores das engrenagens  da economia, os  agentes financeiros, enfim, as comunidades humanas, são convocados para engajar-se na grande cruzada. Sem esse pressuposto,  pouco ou nada temos a esperar dos poderosos reunidos para formular políticas   ambientais. Num cenário desses o Papa Francisco com sua Encíclica não passa de um profeta pregando no deserto.

A preocupação com o meio ambiente envolve muito mais do que uma boa conservação e administração da “nossa casa”. O Papa ensina que “uma ecologia integral requer  abertura para categorias que transcendem a linguagem das Ciências ou da Biologia, e nos põe em contato com a essência do ser humano”. (Laudadto se, 11). Esse diagnóstico aponta para a questão central, o desafio maior a ser enfrentado no momento em que alguém, algum poder público ou alguma organização se dispõe a abraçar a causa ambiental. Em mais do que uma ocasião ao longo dessas reflexões ficou claro que a natureza com o homem incluído, forma uma unidade, um sistema de alta complexidade, finamente calibrado e de alta resolução. Na sua arquitetura entram elementos comuns ao restante do universo. Dele fazem parte todas as formas de vida das mais simples às mais complexas. Como espécie biológica o homem faz parte existencial dessa autêntica comunhão natural. Ao mesmo tempo, o homem com sua inteligência reflexa, desenvolve suas culturas, seu imaginário, seus sistemas simbólicos, seu universo mágico e religioso. Para compreender essa magnífica e intrincada urdidura com suas relações de fina resolução que lhe garantem coesão, integridade e durabilidade, as questões  básicas a serem respondida, resumem-se no “donde” no “como”, no “quando, no “porque” e no “para que”. Ao “como e quando” cabe às Ciências Naturais responder; é tarefa das Ciências do Espírito  responder o “donde”, “por que” e o “para que”. A compreensão da complexa totalidade da natureza só é possível com a soma dos resultados dos conhecimentos vindos dos dois campos do saber: das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito

Acontece que essa aliança começou a ser penosamente construída de 80 ou 100 anos para cá. Do começo do século XX até a sua metade as tentativas não passaram de manifestações isoladas. Depois de 1940 tornaram-se cada vez mais frequentes e articuladas. Datam desse período os documentos oficiais da Igreja acima citados, a Academia pontifícia de Ciências, a “American Scientific Affliliation” – associação que reúne cientistas que creem em Deus  - Além de muitas manifestações de cientistas de primeira grandeza e pensadores influentes.

Em grandes linhas os séculos XVII, XVIII e  XIX primaram pelo distanciamento e até a guerra declarada entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. O período mais tenso desse embate foi o que às vezes se chama o “grande século XIX” – 1750-1914. A consolidação dos fundamentos  teóricos e metodológicos das Ciências Naturais e Revolução do Pensamento com todas as ramificações, impulsionaram o distanciamento e forneceram o combustível para uma guerra declarada em que os dois lados saíram perdendo. Não menos responsabilidade nesse conflito cabe ao outro lado. O Pe. Rambo anotou no seu diário em 12 de agosto de 1960 em Koblenz na Alemanha, com rara precisão a situação. “É a velha maldição que desde o fim da alta Escolástica pesa sobre a ciência católica: Encantamo-nos com o papel de guardiães de um precioso tesouro do passado, que, entretanto, nos  atrapalha  na participação na ciência viva. Nós perdemos a afinidade com as Ciências Naturais e admiramo-nos que a Ciência ficou ateia”.

Hoje esse cenário de distanciamento e beligerância está sendo superado. Sobrevive ainda num formato mais ou menos fundamentalista em denominações religiosas e num número considerável de cientistas. Para a Ciência e os cientistas  sérios fica, a cada dia que passa, mais evidente que seus métodos e tecnologias tem  limites. Para os filósofos, teólogos e humanistas de espírito aberto não há como não tomar em conta os resultados e as conquistas da Ciência. Mais do que nunca faz sentido a observação de Eisntein: “Sem a Religião a Ciência é manca e sem  a Ciência a Religião  é cega”, ou a declaração de Kant: O que mais me impressiona é o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro. Cabe ainda a conclusão a que chegou Stephen Hawking,  na conclusão  da sua obra “Uma breve  História do Tempo”:  “Então, poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns participar sobre a questão do porque de nós  e o universo existirmos. Se encontrarmos um resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana pois, então conheceremos a mente de Deus”. (Hawking. 2015, p. 229). Na mesma direção vai a observação de  Eugen Wiegner: “Não seria nada além de um feliz acidente  ou refletiria alguma intuição profunda na natureza da realidade? Para quem deseja aceitar a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição na mente de Deus. Teriam Einstein, Heisenberg e outros encontrado o divino?”  (in Collins, 2007, p. 70).

Nos últimos decênios o enigma do “como” o universo e a natureza surgiram, intrigou especialmente  os astrônomos e astrofísicos. Os cientistas, convencidos dos limites dos seus métodos, ou se quisermos, intuindo ou “farejando” para além do alcance dos seus instrumentos, formulam questionamentos que já não cabem nem na física, nem na astronomia e nem mesmo nas  outras especialidades. Na sua obra “God and the astronomers”, 1992, Robert Jastrow, astrônomo e diretor da NASA, mostra como lida com esse tipo de desafio.

Neste momento, parece que a ciência nunca será capaz de erguer a cortina acerca do mistério da criação. Para o cientista que vive pela fé na força da razão, a história encerra como um sonho ruim. Ele escalou as montanhas da ignorância; vê-se prestes a conquistar o pico mais alto; à medida que se puxa para a rocha final, é saudado por um bando de teólogos que estiveram sentados ali durante séculos.  – Numa outra passagem da mesma obra observou – Agora vemos como a evidência astronômica conduziu a uma visão bíblica sobre a origem do mundo. Há diferenças nos detalhes, porém, os elementos essenciais e as considerações astronômicas e bíblicas sobre a origem são as mesmas; a cadeia de eventos conduzindo ao homem iniciou de modo repentino e preciso em um momento definido no tempo, em um brilho de luz e energia. (em Collins, 2007, p. 74-75)

Os desafios postos pela questão ecológica são de tal ordem que, para identificá-los, avaliá-los corretamente, o caminho certo a seguir, é o proposto pelo papa. Pelo visto, da parte da Ciência e dos cientistas existe a  disposição para um diálogo honesto e comprometido. Os cientistas que estamos citando fazem parte da elite de vanguarda da pesquisa de hoje. Mencionamos até aqui físicos, astrofísicos  e astrônomos. Pelo significado dos seus depoimentos merecem o reforço de outras especialidade científicas.

O apelo do papa para o diálogo foi precedido por um vindo de Edward Wilson, um dos maiores, senão o maior entomologista e conhecedor de ecossistemas naturais e humanizados. Sem filiação confessional, livre-pensador ele se auto classifica como “humanista secular”. A obra síntese  com as conclusões dos seus estudos sobre insetos e ecossistemas, leva o título sugestivo: “A Criação – como salvar a vida na terra”. Ela foi escrita no formato de uma carta na  qual faz um convite ao diálogo a um pastor fundamentalista, para encontrar um caminho comum para “salvar a vida na terra”. O prof. Wilson provavelmente deve ter tomado conhecimento da Encíclica do papa Francisco e pode-se concluir que tenha ficado feliz por ter encontrado um interlocutor à sua altura. Os frutos de um diálogo nesse nível não podem deixar de levar a resultados também de grande significado, como expresso nos últimos parágrafos da obra citada:

 O que devemos fazer? Esquecer as diferenças digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a condição da sua vida e da minha. Minha suposição é que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruísticas mais ou menos no mesmo grau. Somos produto de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade, santificar a vida humana. E, com certeza, compartilhamos o amor pela criação.
Ao encerrar esta carta, espero que o senhor não se tenha ofendido quando falei em rumo à natureza, e não para longe dela. Eu teria grande satisfação em saber que esse desejo, tal como o expliquei neste livro, é compatível com as suas crenças. Pois, seja como for que as tensões acabem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos, seja como for a ciência e a religião aumentem ou diminuam  de importância na mente dos homens, permanece o compromisso ao mesmo tempo humano e transcendental, nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2008, p. 188)