Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 8 -

A questão ecológica tem tudo a ver  com a atitude que as pessoas assumem ao lidar com a natureza. No começo da encíclica o Papa Francisco definiu a natureza como sendo “a nossa casa”, a “nossa querência”, diríamos nós, “a nossa mãe e pátria” como a definiu o Pe. Rambo. Esses conceitos, ou quaisquer outros  que as muitas culturas cunharam para identificar o cenário em que o homem vive a intimidade existencial da sua vida, são infinitamente mais do que uma definição técnica.

Para o Papa os argumentos a que os grandes na política e economia recorrem não expressam a natureza mais profunda do meio ambiente. Ás cúpulas interessa o poder que comanda a política e a economia. As demandas do povo comum pouco ou nada importam. Ficam relegadas a um plano secundário, senão de todo ignoradas. O que dá para esperar nessas condições é por demais conhecido pela experiência dos encontros globais que já foram realizados.

Toda a argumentação do Papa parte de uma outra perspectiva e fundamenta-se em outros valores. A metáfora “nossa casa” ou as outras com o mesmo significado indicam essa perspectiva. A casa, a moradia do homem não se resume num abrigo para proteger-se contra as intempéries, contra os riscos que o meio oferece, ou um lugar privativo para a reprodução como acontece com os animais e os pássaros. Quando alguém sente saudade de casa, não é o abrigo ou a proteção física que o move. É evidente que a casa é também uma realidade física localizada num espaço geográfico definido. Até aqui pouca diferença com uma casa de João de Barro, um ninho de sabiá ou toca de tatu. Acontece que a casa do homem representa infinitamente mais. É o local onde as pessoas nascem, o cenário das suas vivências e experiências infantis, a escola que os prepara para  a vida. Pela palavra e principalmente pelo exemplo, aprende os valores humanos, sociais e religiosos que servirão de norte para o resto da vida. Os mestres nesse aprendizado são os pais, avós e irmãos maiores. As vivências experimentadas, as experiências vividas e os aprendizados feitos nessa escola da vida, apesar dos pesares, nunca se apagarão de todo. É nesse ambiente que se interiorizam  os princípios e os valores perenes que conferem solidez, coerência e segurança no enfrentamento com as surpresas da vida. A casa no verdadeiro sentido da palavra é ainda o ambiente que oferece as condições onde prospera o amor desinteressado, a solidariedade sem  reticências e a comunhão sem egoísmos entre as pessoas. Mas não é só isso. Na “casa” as pessoas aprendem a viver e a conviver com as outras pessoas na micro sociedade da família. O sucesso ou o fracasso nesse convívio refletir-se-á mais tarde no relacionamento  com a comunidade local e nas relações em outros níveis.

A metáfora “nossa cassa” ainda não está esgotada. O conceito como entendido na Encíclica não se limita às quatro paredes de uma construção física. Inclui os arredores imediatos com suas árvores, quem sabe uma mini floresta, árvores frutíferas, árvores de sombra, flores animais domésticos. Esse  cenário em que a moradia propriamente dita, ocupa a posição central, o ponto de convergência e polarização da vida familiar, dá a extensão do conceito “casa”, “lar”, “querência”, “Heim”, “Home”, “hogar”. Cada língua cunhou uma forma para expressar essa realidade na respectiva tradição cultural. Como se pode perceber, cada língua expressa o conceito de acordo com a índole pela qual as respectivas culturas o concebem. Toda a plenitude e toda a carga de significativos e simbolismos que dão sustentação à existência humana, resumem-se nesse conceito. Quanto mais longas são as histórias das  culturas, tanto mais rico em peculiaridades costume ser. Nesse particular a tradição alemã é emblemática. Quando alguém dessa tradição fala em saudade “de casa”, esse sentimento vai muito além da casa em que nasceu, para incluir também o  cenário geográfico comunitário. No original essas realidade expressa-se em quatro “Hs”, ou seja, “Haus”, “Hof”, Heim”, “Heimat”. “Haus” – a casa de moradia propriamente dita; “Hof”, pátio – a casa de moradia no contexto dos seus arredores, normalmente delimitados fisicamente por um muro ou uma cerca; “Heim” – a casa de moradia e suas imediações ou “Haus” e “Hof”, formando uma unidade; “Heimat” – o cenário geográfico mais amplo que abriga a comunidade local, com sua igreja, escola, cemitério, casa de comércio, oficinas de artesãos e demais arranjos que atendem a comunidade. Ter saudades “de casa” expressa a vinculação existencial com os quatro “Hs”.


Mas, no contexto da Encíclica o aspeto que mais interessa é a outra dimensão do conceito “casa”. no seu emprego como metáfora significando a natureza. Não se trata de uma morada individualizada, num local determinado, num cenário delimitado. Confunde-se com a natureza como um todo. Em outas palavras.  A grande natureza  é a “casa”, não do indivíduo mas da espécie humana como um todo. Nesta “casa” ela surgiu em algum momento que se perde nas brumas do tempo, em alguma savana da África ou em qualquer outro cenário, tanto faz. Concebido no meio da natureza, feito do mesmo “pó da terra”, o homem encontra alimento e abrigo rodeado dos outros animais, das plantas, frutos, flores, do sol, da lua, das estrelas e como pano de fundo de tudo a sinfonia dos sons da natureza. Nessa “casa” o homem não só encontra alimento e abrigo para o corpo como também alimento para seu espírito, para sua imaginação, seus sonhos, para desenvolver seu mundo simbólico, seu universo mágico e religioso. Em outras palavras. O homem vive nessa sua casa um relação com a natureza como um ser que existe como os minerais; existe e vegeta como as plantas; existe, vegeta  e sente como os animais; mas situa-se num nível acima porque, além e  existir, vegetar, sentir, é dotado da capacidade de raciocinar. Essa relação existencial explica a forma peculiar como as pessoas enxergam, compreendem e valorizam o ambiente natural, a “casa”, e tudo que lhe diz respeito. A forma de viver e o tipo de valorização depende da maneira individual como as pessoas se posicionam em relação a ela, da cultura em que nasceram e se criaram e da educação que receberam.

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