Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 6 -

Depois de definir os fundamentos doutrinários o papa, retomando o pensamento dos seus antecessores, acrescenta que nada é indiferente. Os acontecimentos mais triviais do cotidiano de uma “casa”, são importantes. Por mais insignificantes que pareçam dão brilho e conferem sentido ao cenário doméstico ou o perturbam e enfeiam. Essa maneira de enxergar e avaliar as coisas interessa a todos indistintamente de filiação religiosa,  confessional, política ou ideológica. No momento em que essa questão entra na agenda de documentos pontifícios eles deixam de ser restritos aos católicos. O endereço são todas as pessoas de boa vontade, crentes ou não crentes. Na encíclica “Pacem in terris”, de João XXIII, em princípio dirigida ao mundo católico, mas ao tocar na questão do meio ambiente abriu a sua mensagem “a todas pessoas de boa vontade”. “Agora à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. ( ... ) “Nesta encíclica pretendo especialmente entrar em diálogo  com todos acerca da nossa casa comum”. (Laudato se, 3)

Oito anos depois da Pacem in terris, o papa Paulo VI, na carta “Octogesima adveniens”, referindo-se à problemática em pauta, coloca-a numa dimensão histórico cultural. Segundo o pontífice, a questão ecológica configura-se numa crise que é “consequência dramática da atividade descontrolada do ser humano: “por motivo de  uma exploração inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruir e vir a ser, também ele, vítima dessa degradação”. Num discurso à FAO em 16 de novembro de 1970, Paulo VI chamou a atenção sobre uma possível catástrofe ecológica como efeito da “explosão da civilização industrial”. Insistiu também na “necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem”. (em Laudato se, 4).

João Paulo II abordou a questão ambiental na encíclica “Redemptor hominis” de 4  de março de 1979, ao observar que “os ser humano parece não se dar conta do outro significado dos seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um uso e consumo imediatos”. Em 8 de janeiro o mesmo papa falou em “conversão ecológica global”, chamando a atenção para o pouco esforço em “salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana”. E no mesmo documento adverte que, para melhorar o  mundo são necessárias mudanças radicais “nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidas do poder,  que hoje regem  as sociedades”. (em Laudato se, 5-6). o papa Francisco chama novamente a atenção que o progresso e os meios e estratégias que o implementam deveriam tomar como um dos parâmetros de ação as exigências éticas. Pelo fato de a natureza ser um bem comum e o homem depender dela para a vida e a morte, qualquer ação invasora que compromete a sua integridade e equilíbrio implica em responsabilidade ética.

Na encíclica “Sollicitude in rei socialis” de 30 de  dezembro de 1987, João Paulo II chama a atenção para a obrigação “de ter em conta a natureza de cada ser e as ligações entre todos, num sistema ordenado”. (em Laudato se, 5). O papa Bento XVI, dirigindo-se ao corpo diplomático  em 8 de janeiro de 2007, foi ainda mais explícito e categórico ao lembrar aos que de alguma forma exercem poder e autoridade na atual conjuntura mundial convidando para eliminar “as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos  de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente”. (em Laudato se, 6). Na encíclica “Caritas in veritate” ensina; “O livro da natureza é uno e indivisível”. (em Laudato se, 6). E para dar uma ideia desse “ente indivisível”, incluiu o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. E dando uma outra dimensão à questão: “A degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana. (em Laudatdo se, 6). Numa alocução ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone, põe o dedo direto na ferida: A criação resulta comprometida “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumismo é para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”. (em Laudato se, 6)

Nas linhas e nas entrelinhas do que vimos refletindo, conclui-se  sem grande esforço, que a natureza não é só una  e indivisível, como forma uma unidade sistêmica em que cada componente tem um sentido e cumpre uma função; que o homem e suas culturas prospera nas relações simbióticas dentro do sistema  global da natureza; que a natureza com seus recursos é um bem comum ao qual todos tem o direito de usufruir; que, em sendo assim, a exploração das dádivas da natureza implica em responsabilidade moral e ética; que o homem não é senhor do meio ambiente em que passa a sua existência; que o atual modelo civilizatório a serviço de outros valores, valores que ignoram a ética como valor maior, é predatório e destruidor; que, sob pena de todas as políticas e iniciativas não passar de uma cortina de fumaça, é preciso começar pela mudança profunda nas filosofias e estratégias que lidam com os desafios ambientais; que, finalmente, para  que haja uma real perspectiva nessa batalha inglória, requer-se a soma solidária das  forças vivas da comunidade humana.

Nessa cruzada ninguém  está dispensado de dar  sua contribuição proporcionalmente à importância do lugar que ocupa no todo do sistema. Cientistas, filósofos, teólogos, líderes de organizações sociais, os mentores e donos de toda a ordem de tecnologias, os manipuladores das engrenagens  da economia, os  agentes financeiros, enfim, as comunidades humanas, são convocados para engajar-se na grande cruzada. Sem esse pressuposto,  pouco ou nada temos a esperar dos poderosos reunidos para formular políticas   ambientais. Num cenário desses o Papa Francisco com sua Encíclica não passa de um profeta pregando no deserto.

A preocupação com o meio ambiente envolve muito mais do que uma boa conservação e administração da “nossa casa”. O Papa ensina que “uma ecologia integral requer  abertura para categorias que transcendem a linguagem das Ciências ou da Biologia, e nos põe em contato com a essência do ser humano”. (Laudadto se, 11). Esse diagnóstico aponta para a questão central, o desafio maior a ser enfrentado no momento em que alguém, algum poder público ou alguma organização se dispõe a abraçar a causa ambiental. Em mais do que uma ocasião ao longo dessas reflexões ficou claro que a natureza com o homem incluído, forma uma unidade, um sistema de alta complexidade, finamente calibrado e de alta resolução. Na sua arquitetura entram elementos comuns ao restante do universo. Dele fazem parte todas as formas de vida das mais simples às mais complexas. Como espécie biológica o homem faz parte existencial dessa autêntica comunhão natural. Ao mesmo tempo, o homem com sua inteligência reflexa, desenvolve suas culturas, seu imaginário, seus sistemas simbólicos, seu universo mágico e religioso. Para compreender essa magnífica e intrincada urdidura com suas relações de fina resolução que lhe garantem coesão, integridade e durabilidade, as questões  básicas a serem respondida, resumem-se no “donde” no “como”, no “quando, no “porque” e no “para que”. Ao “como e quando” cabe às Ciências Naturais responder; é tarefa das Ciências do Espírito  responder o “donde”, “por que” e o “para que”. A compreensão da complexa totalidade da natureza só é possível com a soma dos resultados dos conhecimentos vindos dos dois campos do saber: das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito

Acontece que essa aliança começou a ser penosamente construída de 80 ou 100 anos para cá. Do começo do século XX até a sua metade as tentativas não passaram de manifestações isoladas. Depois de 1940 tornaram-se cada vez mais frequentes e articuladas. Datam desse período os documentos oficiais da Igreja acima citados, a Academia pontifícia de Ciências, a “American Scientific Affliliation” – associação que reúne cientistas que creem em Deus  - Além de muitas manifestações de cientistas de primeira grandeza e pensadores influentes.

Em grandes linhas os séculos XVII, XVIII e  XIX primaram pelo distanciamento e até a guerra declarada entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. O período mais tenso desse embate foi o que às vezes se chama o “grande século XIX” – 1750-1914. A consolidação dos fundamentos  teóricos e metodológicos das Ciências Naturais e Revolução do Pensamento com todas as ramificações, impulsionaram o distanciamento e forneceram o combustível para uma guerra declarada em que os dois lados saíram perdendo. Não menos responsabilidade nesse conflito cabe ao outro lado. O Pe. Rambo anotou no seu diário em 12 de agosto de 1960 em Koblenz na Alemanha, com rara precisão a situação. “É a velha maldição que desde o fim da alta Escolástica pesa sobre a ciência católica: Encantamo-nos com o papel de guardiães de um precioso tesouro do passado, que, entretanto, nos  atrapalha  na participação na ciência viva. Nós perdemos a afinidade com as Ciências Naturais e admiramo-nos que a Ciência ficou ateia”.

Hoje esse cenário de distanciamento e beligerância está sendo superado. Sobrevive ainda num formato mais ou menos fundamentalista em denominações religiosas e num número considerável de cientistas. Para a Ciência e os cientistas  sérios fica, a cada dia que passa, mais evidente que seus métodos e tecnologias tem  limites. Para os filósofos, teólogos e humanistas de espírito aberto não há como não tomar em conta os resultados e as conquistas da Ciência. Mais do que nunca faz sentido a observação de Eisntein: “Sem a Religião a Ciência é manca e sem  a Ciência a Religião  é cega”, ou a declaração de Kant: O que mais me impressiona é o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro. Cabe ainda a conclusão a que chegou Stephen Hawking,  na conclusão  da sua obra “Uma breve  História do Tempo”:  “Então, poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns participar sobre a questão do porque de nós  e o universo existirmos. Se encontrarmos um resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana pois, então conheceremos a mente de Deus”. (Hawking. 2015, p. 229). Na mesma direção vai a observação de  Eugen Wiegner: “Não seria nada além de um feliz acidente  ou refletiria alguma intuição profunda na natureza da realidade? Para quem deseja aceitar a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição na mente de Deus. Teriam Einstein, Heisenberg e outros encontrado o divino?”  (in Collins, 2007, p. 70).

Nos últimos decênios o enigma do “como” o universo e a natureza surgiram, intrigou especialmente  os astrônomos e astrofísicos. Os cientistas, convencidos dos limites dos seus métodos, ou se quisermos, intuindo ou “farejando” para além do alcance dos seus instrumentos, formulam questionamentos que já não cabem nem na física, nem na astronomia e nem mesmo nas  outras especialidades. Na sua obra “God and the astronomers”, 1992, Robert Jastrow, astrônomo e diretor da NASA, mostra como lida com esse tipo de desafio.

Neste momento, parece que a ciência nunca será capaz de erguer a cortina acerca do mistério da criação. Para o cientista que vive pela fé na força da razão, a história encerra como um sonho ruim. Ele escalou as montanhas da ignorância; vê-se prestes a conquistar o pico mais alto; à medida que se puxa para a rocha final, é saudado por um bando de teólogos que estiveram sentados ali durante séculos.  – Numa outra passagem da mesma obra observou – Agora vemos como a evidência astronômica conduziu a uma visão bíblica sobre a origem do mundo. Há diferenças nos detalhes, porém, os elementos essenciais e as considerações astronômicas e bíblicas sobre a origem são as mesmas; a cadeia de eventos conduzindo ao homem iniciou de modo repentino e preciso em um momento definido no tempo, em um brilho de luz e energia. (em Collins, 2007, p. 74-75)

Os desafios postos pela questão ecológica são de tal ordem que, para identificá-los, avaliá-los corretamente, o caminho certo a seguir, é o proposto pelo papa. Pelo visto, da parte da Ciência e dos cientistas existe a  disposição para um diálogo honesto e comprometido. Os cientistas que estamos citando fazem parte da elite de vanguarda da pesquisa de hoje. Mencionamos até aqui físicos, astrofísicos  e astrônomos. Pelo significado dos seus depoimentos merecem o reforço de outras especialidade científicas.

O apelo do papa para o diálogo foi precedido por um vindo de Edward Wilson, um dos maiores, senão o maior entomologista e conhecedor de ecossistemas naturais e humanizados. Sem filiação confessional, livre-pensador ele se auto classifica como “humanista secular”. A obra síntese  com as conclusões dos seus estudos sobre insetos e ecossistemas, leva o título sugestivo: “A Criação – como salvar a vida na terra”. Ela foi escrita no formato de uma carta na  qual faz um convite ao diálogo a um pastor fundamentalista, para encontrar um caminho comum para “salvar a vida na terra”. O prof. Wilson provavelmente deve ter tomado conhecimento da Encíclica do papa Francisco e pode-se concluir que tenha ficado feliz por ter encontrado um interlocutor à sua altura. Os frutos de um diálogo nesse nível não podem deixar de levar a resultados também de grande significado, como expresso nos últimos parágrafos da obra citada:

 O que devemos fazer? Esquecer as diferenças digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a condição da sua vida e da minha. Minha suposição é que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruísticas mais ou menos no mesmo grau. Somos produto de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade, santificar a vida humana. E, com certeza, compartilhamos o amor pela criação.
Ao encerrar esta carta, espero que o senhor não se tenha ofendido quando falei em rumo à natureza, e não para longe dela. Eu teria grande satisfação em saber que esse desejo, tal como o expliquei neste livro, é compatível com as suas crenças. Pois, seja como for que as tensões acabem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos, seja como for a ciência e a religião aumentem ou diminuam  de importância na mente dos homens, permanece o compromisso ao mesmo tempo humano e transcendental, nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2008, p. 188)



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