Ludwig von Bertalanffy (1900-1972)

Nas páginas acima  as nossas  reflexões tiveram como linha orientadora as conclusões sobre a natureza de cientistas que também foram religiosos. Como não podia deixar de ser, suas conclusões sobre a origem, a evolução e o destino final do universo ao alcance dos métodos das ciências experimentais, tiveram como fio condutor subliminar, o compromisso com postulados filosóficos e teológicos inegociáveis. Fizeram de tudo para que a seriedade e a credibilidade da pesquisa dos objetos específicos de cada um não fosse viciado pela filiação doutrinária. Na formulação das sínteses parciais e, de modo especial, nas globais esse comprometimento teve uma importância decisiva, na condição de pano de fundo, que serviu de moldura. Foi assim com Erich Wassmann, Teilhard de Chardin e de maneira mais flagrante com Balduino Rambo. Discreta ou  declaradamente adeptos do criacionismo, a lógica dos dados científicos que foram identificando em suas especialidades, foram-se alinhando para uma concepção holística, unitária e sintética da natureza.  Nas páginas que seguem pretendemos identificar a partir de resultados obtidos por autoridades, de referência mundial  em suas especialidades, como também eles concluíram pela unidade da natureza, possível somente quando as Ciências Naturais, as Ciências Humanas e as Letras e as  Artes se complementam mutuamente. Selecionamos os nomes dentre as maiores autoridades em Biologia: Ludwig von Bertalanffy, em Genética: Thedosius Dobschansky e Francis Collins, em Zoologia: Edward Wilson. Somamos aos cientistas o Filósofo da Esperança: Ernst Bloch.
Ludwig von Bertalanffy é mais um desses representantes emblemáticos que empenharam o melhor dos seus esforços e talentos no sentido de encontrar na natureza algo mais do que elementos  justapostos, leis  físicas e processos biológicos atuando fortuitamente, sem vinculações a nível de causas e efeitos. Nasceu na época em que as Leis de Mendel foram por assim dizer redescobertas e fizeram sua entrada triunfal na galeria das descobertas mais revolucionárias da biologia. A sua entrada no mundo das Ciências Naturais e da Filosofia como adolescente na universidade de Innsbruck, coincidiu com os famosos debates que se travavam entre Ernst Haeckel e seus admiradores, os profetas do monismo materialistas e Hans Driesch, Erich Wassamnn, Carl von Baer, Oscar Hertwig, Teilhard de Chardin, defensores de uma compreensão holística da natureza. Ludwig von Bertalanffy consolidou e formulou a sua proposta organísmico-sistêmica do mundo e da natureza, na mesma época, nas décadas de 1920 a 1950, em que Teilhard de Chardin concebeu  a sua grandiosa visão do universo, da natureza e do homem e Balduino Rambo deixou em seu diário os fundamentos para  uma síntese não menos ousada entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Mas as coincidências não se limitam ao período cronológico em que os nomes citados consolidaram as suas concepções. Identificam-se também pela formação que lhes serviu de plataforma para ousarem enfrentar tamanhos desafios.
É supérfluo insistir que Nicolau de Cusa dispunha de excelente formação filosófica e teológica e, a partir dessas perspectivas formulou a sua cosmovisão do mundo, sintetizada  na afirmação “ex partibus omnibus  ellucet totum”. Na mesma linha situa-se Erich Wassmann ao dar forma à sua visão científico-filosófica do universo e da natureza. Na condição de padre jesuíta vinha munido com a formação clássica, filosófica e teológica que a ordem exigia dos seus membros na época, isto é, segunda metade do século XIX e primeira do século XX. Sobre esse pano de fundo soube harmonizar perfeitamente sólidos conhecimentos de Ciências Naturais em suas pesquisas pioneiras sobre a vida nas colônias de formigas e térmites. Somente uma formação tão abrangente habilitou-o a propor uma ponte, à primeira vista talvez muito simples, mas, de tão simples, supunha uma compreensão na qual as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, tem condições reais de celebrar um encontro que leva a compreender a unidade na pluralidade de formas e a origem e natureza da complexidade dos processos que operam na natureza. Wassmann ensina que cabe ao Cientista, munido com seus instrumentos de trabalho e os métodos apropriados, as abordagens empíricas, apresentar o “Weltbild”, o retrato, a representação do mundo. Este vai sendo retocado, redesenhado e atualizado na medida e no ritmo em que os cientistas e a ciência descobrem novos dados. Munidos com eles  reformulam ou abandonam afirmações ultrapassadas e atropeladas por novas descobertas que levam à proposição de novas teorias e hipóteses. Por natureza, portanto, o “Weltbild” é tão dinâmico quanto é dinâmica a própria Ciência.
Segundo Wassmann, a tarefa do Filósofo consiste em, a partir dos dados fornecidos pela Ciência e a forma  peculiar de processá-los do ponto de vista das reflexões intelectuais que sugerem, conceber a “Weltauffassung”,  a cosmovisão. Fica claro, portanto, que para entender cada variável em particular que entra na composição da natureza e o conjunto delas formando um todo, requer-se o esforço solidário do cientista e do filósofo. Não há condições de, a partir de uma abordagem unilateral oferecer respostas conclusivas sobre a natureza dos fenômenos naturais, as leis e os processos que os comandam e, de modo especial, que tipo de totalidade, de todo ou unidade que   formam, além das causas  que explicam a sua origem e a teleologia que determina o seu rumo. Conclui-se que  o caminho para a compreensão do universo e da natureza precisa ser trilhado num esforço  solidário pelas Ciências  Naturais e as Ciências do Espírito. Trata-se de uma missão a ser cumprida a muitas  mãos sob pena de deixar para trás graves lacunas que prejudicam tanto um quanto o outro lado. Conclui-se ainda que é de uma vantagem difícil de avaliar se o cientista vem munido com uma sólida bagagem de conhecimentos humanísticos com destaque para a Filosofia e o filósofo de posse de informações científicas amplas e profundas. Sob este aspecto Ludwig von Bertalanffy vem a ser um exemplo clássico. Começou a sua formação em História da Arte e Filosofia na universidade de Innsbruck concluindo-a na universidade de Viena. Os conhecimentos de matemática, física, química, ciências naturais e humanas, indispensáveis para a sua visão organísmica e sistêmica da natureza, adquiriu-as sobre essa base. Mas tentemos condensar a cosmovisão de Bertalanffy. 
Bertalanffy  conquistou definitivamente um nome respeitado entre os pensadores e cientistas do século XX por apontar ao cientista, ao filósofo e ao teólogo um caminho para superar as dificuldades de diálogo que se tinham instalado entre essas diversas áreas do conhecimento. Na evolução do pensamento de Bertalanffy observam-se dois momentos de amadurecimento. O primeiro aconteceu no final da década de 1940 e princípios de 1950. Em 1949 saiu pela Edit. Franke o “Biologisches Weltbild” e em 1951 pela mesma editora a obra em dois volumes da “Theoretische Biologie”. No primeiro, um volume relativamente modesto, o autor expõe a concepção “organísmica” do ser vivo. “Theoretische Biologie” em dois alentados volumes, reúne por assim dizer, os dados empíricos que forneceram as bases científicas para o “Biologisches Weltbild.” O segundo momento  do amadurecimento e consolidação do pensamento de von Bertalanffy, situa-se no final da década de 1960. Culmina com a publicação da “General Theory of Systems”, publicado em 1968, traduzida para o português  com o titulo “Teoria Geral dos Sistemas”, editado pela “Vozes de Petrópolis”.
Entre a publicação do “Biologisches Weltbild” e “General Theory of Systems”, passaram-se 20 anos. Von Bertalanffy como pensador e cientista incansável foi ampliando e aprofundando as bases empíricas sobre as quais e a partir das quais terminaria formulando a “Teoria Geral dos Sistemas”. Essa obra por assim dizer, resume a caminhada científica e filosófica do autor, falecido em 1972. O fio condutor, o “Leitmotiv”, do esforço de três décadas de rigorosas investigações científicas, complementadas por reflexões de não menor profundidade, resultaram numa obra que não pode passar despercebida para aqueles que lidam com questões de fronteira entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. O ponto de partida parece ter sido uma aproximação da questão mais pelo lado filosófico do que pelo científico no sentido rigoroso do termo, pois, uma conferência de von Bertalanffy publicada em Viena em 1947, leva o titulo: “Vom Sinn und der Einheit der Naturwissenchaften” – “O Sentido e a Unidade das Ciências Naturais”. Dois anos mais tarde veio à luz o “Biolgisches Weltbild” no qual, apoiado em observações  empíricas, o organismo vivo é visto e descrito como um “sistema aberto”, que não pode ser entendido como simples soma das estruturas e funções  que o integram. Mas este é um assunto a ser aprofundado mais abaixo.
Estamos, portanto, diante de um filósofo-cientista que vai procurar na matemática, na física, na química e nos diversos campos da biologia, elementos e argumentos capazes de dar solidez ao seu edifício organísmico-sistêmico. Observa-se neste particular um parentesco não declarado entre o paradigma conceitual e o caminho para implementá-lo entre Bertalanffy e Erich Wassmann. Este atribui às Ciências Naturais o papel de desenhar o “Weltbild”, o quadro, o estado da arte momentâneo da natureza, sugerido pelos dados científicos disponíveis num determinado momento.  Bertalanffy vale-se do mesmo conceito com o mesmo sentido no livro “Biologisches Weltbild e o faz permear as páginas da “Teoria Geral dos Sistemas”. Não se vale do conceito de “Weltauffassung” com o destaque que lhe dá Wassmann, mas no último parágrafo da obra conclui com uma declaração inequívoca neste sentido.
A concepção mecanicista do mundo dominante no século passado relacionava-se estreitamente com o predomínio da máquina, a concepção teórica dos seres vivos como máquinas e a mecanização do próprio homem. Os conceitos cunhados pelos modernos  progressos científicos têm porém sua mais evidente exemplificação na própria vida. Assim há a esperança  de que o novo conceito do mundo estabelecido pela ciência seja a expressão de um progresso dirigido para um novo estágio da cultura humana. (Bertalanffy. Teoria Geral dos Sistemas. Op. Cit. p.333)

Depois dessas considerações  introdutórias sobre Ludwig von Bertalanffy, vamos dedicar aos conceitos de “Organismo e Sistema” o espaço necessário para entender o que o autor entende quando os enuncia.

A Natureza como Síntese #26

Balduino Rambo  - 6
A partir do momento em que a pesquisa científica com se método analítico foi iluminando  cada vez mais facetas do mundo natural,  o  Livro da Revelação de que fala São Paulo, foi abrindo suas páginas escritas em códigos  foram sendo interpretados na medida em que a Ciência progredia e penetrava cada vez mais fundo nos arcanos da natureza. Foi essa nova realidade que se encontra na base da revolução do pensamento no decorrer dos últimos 600 anos e que levou Rambo a fazer a observação.
Até hoje se levou pouco em consideração o fato  de que, com o início da era moderna, ter começado uma Revelação Divina toda nova. Refiro-me  à Revelação através da Natureza. Evidente que ela existiu desde o princípio. Entretanto,  só com o despontar da era das Ciências Naturais ela foi desvendada ao Homem. É também este um passo à frente na busca da globalidade e uma caminhada constante em direção à plenitude dos tempos. (Rambo, 1994, p. 266)
No esboço de proposta da  síntese que pretendia elaborar Rambo explica a necessidade de mostrar que a Escolástica parte, no seu conjunto, da unidade para a multiplicidade. As Ciências Naturais aproximam-se da questão pelo lado oposto, isto é, da multiplicidade para a unidade. Algo inteiramente novo impôs-se com a entrada para valer das Ciências Naturais. Embora as leis universais tenham permanecido as mesmas, seu significado abriu o horizonte para uma amplitude insuspeitada do significado  e da importância do conhecimento e da compreensão da Natureza.. (A humanidade foi alvo de uma nova Revelação do Universo, só que ela ainda não conseguiu acertar o passo para decifrá-la”. (Rambo, 1994, p. 266).
Vale aqui chamar a atenção de que se passaram 70 anos desde que a observação acima foi escrita. De lá para cá as conquistas da Ciência e a consequente compreensão de como funciona a Natureza, fez progressos gigantescos. Os resultados fruto do esforço honesto de legiões de pesquisadores avançando sempre mais sobre os fundamentos do mundo natural em centenas de laboratórios espalhados pelos cinco continentes, estão se aproximando das fronteiras que separam os conhecimentos conquistados pela aproximação sintético-dedutiva da Filosofia e os conhecimentos fruto da análise indutiva da parte da Ciência. Rambo registrou em seu diário entre 1944 e 1961  os conteúdos, os elementos  que deveriam compor a formulação da síntese que se propunha colocar no papel como resultado de suas pesquisas científicas e, principalmente, das  reflexões diárias durante as duas décadas. A sua intenção fora dedicar 20 anos de sua vida a essa obra. Infelizmente não lhe foi concedido esse tempo. Quando se punha a começar o trabalho sucumbiu inesperadamente a um aneurisma cerebral em 11 de setembro de 1961, com apenas 56 anos de idade. Deixou a matéria prima para a sonhada síntese como herança para alguém com coragem suficiente para enfrentar o desafio.
Entretanto, analisaremos as obras de alguns cientistas contemporâneos a Rambo que entre 1945 e 1970,  formularam sínteses na linha sonhada por ele. O primeiro foi Teilhard de Chardin, seu irmão de ordem. A síntese por ele proposta na sua obra clássica “O Fenômeno Humano” (1955) e o texto complementar com ênfase no papel do homem nesse cenário “O Lugar do Homem na Natureza”, (1950), serviram de base para o capítulo que precedeu ao presente. Contemporâneos foram também Ludwig von Bertalanffy e Thodosius Dobzhansky que serão os contemplados nos dois capítulos que seguem. Von Bertalanffy (1900-1972), partindo da Biologia e valendo-se de modelos matemáticos para trabalhar os dados publicou a “Teoria Geral dos Sistemas” em 1969. Remetemos a descrição e interpretação dessa síntese para o capítulo que segue. Theodosius Dobzhansky (1900-1974) objeto de análise de capítulo posterior, foi um dos geneticistas mais importantes da segunda metade do século XX. Entre os muitos artigos e livros que publicou sobre sua especialidade “A Herança e a Natureza do Homem (1964) é o que se ocupa com as questões de fronteira entre as Ciências Naturais com ênfase na genética, Ciências do Espírito e Ciências Humanas. Reservamos o penúltimo capítulo também a um geneticista, desta vez o Diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético humano, Francis Collins e seu livro que ainda está marcando época “A Linguagem de Deus” (2006). E para finalizar os nosso trabalho apresentamos o “livro “A Criação – como salvar a vida na terra” (2006) de Edward Wilson entre os maiores especialistas em Entomologia e estudioso dos ecossistemas naturais e humanizados e se auto-classificou como Humanista Secular.

Obviamente a lista de cientistas, teólogos, filósofos, humanistas, literatos e artistas que de alguma maneira se empenharam em trabalhar as fronteiras do conhecimento  nas respectivas especialidades somam muito mais. Dar a devida atenção a todos e às suas propostas, ultrapassa as nossa pretensões.

A Natureza como Síntese #25

Balduino Rambo  - 5
Uma proposta de síntese
Numa reflexão anotada no diário de 17 de julho de 1946, Rambo deixou um esboço da síntese abrangendo todos os campos do saber que se propunha a elaborar. Assumia essa tarefa como a missão maior da sua vida. Conta que ele e seu irmão de ordem Pe. Jorge Steiger, estavam elaborando o discurso que o recém eleito cardeal D. Jaime de Barros Câmara pronunciaria na homenagem que os intelectuais de Porto Alegre lhe fariam na ocasião. Conversa vai conversa vem e o assunto só poderia ser algo de nível para os dois intelectuais que eram o Pe. Rambo  e  o Pe. Steiger. A certa altura este observou que a partir da Idade Média não se formulou mais nenhuma síntese que abrangesse o conhecimento na sua totalidade. O que Tomás de  Aquino e Alberto Magno foram para a Alta Idade Média algum sábio moderno deveria ser para os tempos atuais. Essa observação despertou e pôs em ebulição todo um universo de preocupações científicas, filosóficas e religiosas que, há anos, formaram, por assim dizer, o eixo em torno do qual giravam  as  reflexões do Pe. Rambo e foram o motor a dar sentido à sua atividade científica. Passar das reflexões sem compromisso formal, para concretizar a formulação daquela abrangência, pressupunha em primeiro lugar uma avaliação até que ponto a síntese elaborada por Tomás de Aquino, Alberto Magno e demais pensadores e sábios da Idade Média não se tronara obsoleta ou então até que ponto era preciso validá-la no cenário criado pelas Ciências Naturais. Rambo chega questionar a utilidade do sistema aristotélico-tomista como suporte para lidar com o novo cenário. Pergunta se não convinha abandonar os dois sistemas e começar tudo de novo a partir de Platão. Nesse caso o sistema aristotélico-tomista seria chamado a contribuir na medida em que fosse necessário ou conveniente. Para ele o velho racionalismo que é o cerne desse sistema não oferece potencial suficiente para entender a  complexidade da natureza. Permanece útil apenas se enquadrado nas “leis perenes do pensamento humano”, pois
Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata  da palavra, como do som subliminar que emite a ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se  prestou muito pouca atenção. Bem considerada, ela não é um som secundário e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do Homem. (Rambo, 1994, p. 265)
Bem interpretada  essa afirmação leva à conclusão de que nem as Ciências com sua capacidade analítica dos fenômenos naturais, nem Filosofia e a Teologia com se poder análise sintética, são capazes de chegar ao cerne da questão, isto é, oferecer o elemento, ou os elementos que fundem numa mega-síntese os conhecimentos obtidos via analítica e sintética. Recorrendo a uma metáfora. Qual é natureza do conhecimento, “ a pedra de fecho” que faz com que estruturas convergentes se “fechem” num arco ou numa cúpula. Para Rambo essa “pedra de fecho”, sem a qual não se completa a síntese universal é o conhecimento adquirido pela intuição, pela percepção sensorial, levando ao conhecimento condensado, é o que de fato permite falar em síntese.
A ideia força sobre a qual deve fundamentar-se uma síntese global foi assim resumida por ele:
Uma verdadeira síntese das Ciências Naturais deve abranger o seguinte pensamento universal: tudo que acontece na natureza é uma reversão para a unidade e para Deus. Sugestivo em extremo se torna este pensamento, ao nos servirmos da seguinte analogia: da multiplicidade máxima, a Natureza retorna à unidade máxima no ser humano. E a Ciência Natural igualmente procura regredir da máxima dispersão para a simplificação  e a unidade. (Rambo, 1994, o. 265)
É oportuno chamar  a atenção para a semelhança senão uma outra versão dessa concepção da natureza de Teilhard de Chardin. A metáfora dos meridianos terrestres que partem do polo sul, do “alfa”, em direção ao equador, para se multiplicarem e diversificarem e aparentemente se dispersarem, para retornarem em busca da unidade no polo norte, o “ômega”. Não consta que os dois cientistas e filósofos jesuítas contemporâneos, se tenham conhecido e estavessem ao par do pensamento um do outro. O retorno à unidade é uma tendência em todos os elementos da natureza, incluindo os elementos químicos anorgânicos e orgânicos, as leis e os fenômenos físicos, todas as formas de vida, a começar pelas arqueobactérias, até as formas mais complexas, tudo comandado pela evolução. Esse poderia ser o conteúdo da primeira  parte da obra sobre a Síntese proposta por Rambo.
O pensamento central a orientar a segunda parte da obra ocupar-se-ia com os diversos graus ou níveis que levam ao retorno da unidade. Não se trata de avanços aleatórios, sem regra, mas de uma forma organizada, talvez melhor, planejada, e por isso mesmo, conduzida por uma teleologia. Partindo desse pressuposto foi composta a tábua periódica dos elementos, a taxonomia no reino animal e vegetal e a sucessão das eras geológicas. Nesse processo percebe-se de saída que se trata de uma dinâmica e os diversos componentes avançam em ritmos diferentes, algumas ramificações definham e morrem no meio do caminho, enquanto outras mais bem adaptadas se robustecem e seguem vitoriosas até que a mudança das circunstâncias interfere ao ponto de frear o dinamismo e até inviabilizar a continuidade da sua existência. O responsável pela unidade das espécies vivas é o resultado da unidade na direção ou, se preferirmos, pela teleologia que orienta o todo e as partes individuais. Preserva-se assim a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade que se constitui na tese dessa síntese universal. Acontece que a teleologia que comanda o acontecer na natureza pressupõe, por sua vez, unidade de origem.
Na época em que Rambo fez essas anotações em seu diário, isto é, 1946, a genética e a biologia molecular fornecendo a prova maior para a unidade de origem de todas as espécies vivas, estava  apenas engatinhando com as pesquisas de Thodosius Dobzhansky e outros especialistas na área. O que na época ninguém punha mais em dúvida eram as leis de Mendel com sua validade universal, tanto para animais quanto para vegetais. O grau de identidade do genoma, tanto na sua composição química, quanto na sua importância na condução da evolução, no sucesso das espécies vivas, no surgimento de novas e  na eliminação de tantas outras, ficaria evidente somente na seis décadas posteriores. Hoje 80 anos depois em que dispomos de todas evidências científicas apontando para a unidade essencial do genoma, desde as arqueobactérias até as formas de vida vegetal e animal mais complexas e evoluídas, o autor provavelmente não escreveria mais que a unidade tinha “provavelmente” (Rambo, 1994, p. 266), mas “evidentemente” ou mesmo “certamente” um argumento sólido da “origem comum”.
Postas essas premissas  seriam necessários os seguintes passos para a formulação do corpo da síntese. Primeiro. A leitura e a compreensão das síntese elaboradas pelos mestres do passado, com destaque para Platão, Santo Agostinho, Aristóteles, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa, principalmente. O importante nesse esforço deveria ser um encontro direto com esses sábios e suas obras buscando compreendê-los no original, deixando de lado versões e interpretações  que ocupam estantes inteiras em inúmeras  bibliotecas. Neste particular coloca-se obviamente um dos maiores desafios para quem se dispõe a abraçar a tarefa de formular uma síntese compreensiva da natureza no seu todo. Para começar pede-se um conhecimento profundo do espírito da língua grega e latina, para arriscar uma compreensão o menos possível viciada pelas idiosincracias  pessoais dos tradutores e intérpretes e mais próximas possíveis do entendimento objetivo dos autores. No caso de Aristóteles o desafio torna-se praticamente insuperável pois, as versões latinas de sua obra foram baseadas em traduções  árabes do original grego. A leitura das obras de Platão, Agostinho, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa podem ser feitas no original e por isso oferecem dificuldades menores, sob a condição do conhecimento profundo do grego e do latim. Em segundo lugar é preciso inventariar os resultados das pesquisas e descobertas científicas que se tornaram marcos referenciais, desde o final da Idade Média até hoje.
Na introdução da segunda parte é indispensável que se apresente o cenário criado pela dicotomia que resultou da divisão do conhecimento pela Ciência de um lado e o da Fé, do outro ou, se preferirmos, os conhecimentos fornecidos pelas Ciências Naturais, as Ciência do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. Nesse embate em que as Ciências Naturais e as demais Ciências encastelaram-se cada  qual no próprio casulo hermético, reivindicando, num clima de fundamentalismo a exclusividade para dar respostas conclusivas sobre a natureza do universo, da natureza e do homem. O clímax desse dessa guerra que nunca foi necessária e na qual ambos arraiais saíram perdendo, aconteceu na segunda metade do século XIX e no começo do século XX. Salvo melhor juízo, os momentos de maior acirramento se concentraram nos anos do Concílio Vaticano I, na década de 1870 e no pontificado d Pio X, nos primeiros 15 anos do século passado. Depois, em começos do século XX começam a perceber-se os primeiros sinais de armistício entre as duas partes. As descobertas da leis fundamentais da hereditariedade pelo monge Gregor Mendel, as pesquisas sobre o funcionamento das colônias de formigas e térmites, conduzidas com o máximo  rigor científico, do jesuíta Erich Wassmann, a formulação da teoria do Vitalismo por Hans Driesch e outras propostas nessa linha, foram os primeiros indícios de que, em pensando bem, o radicalismo  científico e o radicalismo filosófico e teológico, com suas posições fundamentalistas, poderia ser superado. A autoridade máxima da Igreja Católica faria o seu primeiro pronunciamento oficial na Encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII de 1943 e, de modo especial,  ma Carta Encílcia “Humani Generis” de 1950. Nesses  documentos oficiais da Igreja liberavam-se oficialmente os católicos e os religiosos a falar e admitir teses cruciais vindas do lado das Ciências Naturais, como a Evolução em geral e o Darwinismo em particular, obviamente no que se refere aos processos biológicos. Questões teológicas como a Criação divina, a alma imortal e outras questões desse nível permaneciam, no âmbito privativo da doutrina oficial da Igreja. Dos  seis sucessores de Pio XII cinco ampliaram essa abertura em favor da legitimação e consequentemente aceitação das conquistas da Ciência. O papa Francisco brindou  em junho do presente ano cientistas, teólogos, filósofos, ecólogistas e todos que de algum modo se ocupam e preocupam  com o nosso planeta, ou a nossa “querência” se preferirem,  com magnífico e lúcido documento que é a Carta Encíclica  “Laudato Si”. Nela reforça que os seus antecessores, desde Pio XII, ensinaram sobre a relação da Ciência com os ensinamentos da Igreja Católica e entrando fundo nas grandes questões que envolvem a compreensão da Natureza e seus reflexos sobre a fé, sobre a relação existencial do homem com o meio ambiente e obrigação moral de zelar pelo bem comum que é a Natureza.

É preciso também não perder de vista de que a Filosofia Clássica e a Escolástica nascidas no contexto da Idade Média, são essencialmente especulativas, descoladas do mundo real que a Ciência foi descobrindo a partir da Renascença. A Filosofia Natural da antiguidade é de natureza inteiramente especulativa. A Fé perpassava todo o pensamento da Idade Média. Com isso passou despercebido que  a multiplicação, a diversificação e o aprofundamento das Ciências Naturais foram revelando uma dimensão do universo e do mundo que não encontra lugar na tradição teológica e filosófica que predominou absolutamente até o começo da Renascença. Nesse contexto a revelação que contava era àquela transmitida pelas Escrituras Sagradas e interpretadas ao pé da letra. O contexto em que foram escritas com suas particularidades históricas e circunstanciais não admitia que essas narrativas viessem carregadas de cacoetes histórico culturais inspirados na tradição judaico cristã. Não se admitia na interpretação dos textos sagrados que a narrativa  se valia de recursos literários como metáforas, alegorias e outros mais. Encontrar nesses textos raízes e influências como do Livro dos Mortos do Egito, ou Gulgamesh da Mesopotâmia, costumava ser interpretado como heresia. Até a advertência de São Paulo na Carta aos Romanos de que ninguém está escusado por não conhecer Deus porque a natureza é o livro aberto que O revela a todos que souberem interpretá-la, parece que não era levada muito a sério.

A Natureza como Síntese #24

Balduino Rambo  - 4

Seria um grande engano pensar que o Pe. Rambo dava vazão à compreensão do Mundo e da Natureza e à relação  existencial que cultivava com ela, quando em contato com cenários que nunca tinha visto de perto. Por ocasião da sua permanência no Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da coleção “De Angelis” na Biblioteca Nacional desenhou num intervalo, a paisagem das montanhas que formam o anfiteatro da cidade.
Ai sentava eu, creio que foi na tarde de sábado santo, junto à janela e alongava o olhar em direção ao Corcovado. Pouco antes tinha chovido, mas agora o ofuscante sol tropical brilhava sobre rochas, matos e cidade. As listas de água que pouco antes tinham desabado, precipitavam-se em forma de furiosos regatos outeiros abaixo, deslizando agora como feixes de metal faiscantes por entre a ramagem rasteira num colorido verde-claro. As palmeiras ao pé dos rochedos e o vale alcantilado balançavam silenciosas os seus leques na brisa, que soprava em direção à planície. Qual tapete de alfombras com centenas de matizes de verde estendia-se a mata virgem por sobre as colinas oblíquas, diluindo-se  à distância no firmamento cerúleo. Bem lá no alto serpejava um manto azulado de neblina e de sol doirado, em volta da imagem do Cristo Redentor da montanha.
Longas horas eu sentava ali abismado com a imponência da selva tropical. Sentia imensa nostalgia dos tempos de antanho, quando me era dado apanhar, sem mais, as imagens contempladas nas malhas da linguagem escrita e entretecê-las com os pensamentos mais sublimes de minha alma, como reluzente e preciosa pedraria. Parecia-me então ser indigno de mim deixar-me afogar no trabalho externo, enquanto a melhor parte da minha humanidade estiolava e se deteriorava. Parecia-me que todo o esforço para a aquisição de novos conhecimentos não compensava o preço  elevado que todo o dia eu pagava por isso; que eu devia chamar de volta os espíritos amistosos dos tempos idos, quando então buscava com menos afã a erudição fria, sentindo-me, no entanto, bem mais  enriquecido de coração, mais rico em criatividade, mais rico em Deus. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)
A paisagem com a qual, consolidou, desde o final dos anos de 1930 até o seu falecimento, uma relação existencial tão profunda que a chamou de “minha pátria na terra”, foi o planalto do Rio Grande do Sul, com seus campos, capões, matas, pinheirais, canyons, escarpas e precipícios. Cambará e arredores são  o ponto de referência e convergência desse cenário. As anotações que deixou foram extraídas do diário que escreveu durante uma estadia, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1948, naquela região.
Essas caminhadas pela neblina, essas noites com seu leve prurido de chuva junto à janela, as gotas continuamente estalando nas árvores, chamam para a interioridade. Então a alma liberta-se dos fogos fátuos do dia resplandecente, e ela entra em silêncio no seu mundo mais íntimo, no reino do ser envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes se perdem em seu eco e migram através desta terra espiritual carregada de pressentimentos. Alguém caminha na névoa da noite com passos tão leves como o murmúrio da neblina. Ele é único e chama meu nome nesta terra solitária. Ó tu, noite silenciosa e santa solidão.
A orla oriental é constituída pela vista panorâmica para as maiores distâncias, pela sinuosidade brusca das formas perto da planície e com a força perene da névoa em efervescência.
São únicas as pinturas da natureza na bela terra de Deus, como as da garganta da Pedra Branca.  Poderia chamar-se o quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas troantes, de névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata silente e escolhos altos, cheios de clarividências pétreas, de pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para a frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, alguém observa nesta torre solitária de vigia. Ele chama o eco, apascenta a névoa, brinca com o raio e o trovão nos lugares solitários.
Na ampla baixada, os lagos refulgentes e o mar-oceano aos sussurros ficam depois desta paisagem. Ao olhar ao longe da parede anterior, há pressentimento das distâncias infinitas. O sentir predominante é o da preeminência sobre o vapor, a poeira, o calor e a fastidiosa multidão humana. Rochas cinzentas, mata verde, água murmurante e correntes estagnadas, amplas planícies, nuvens migrantes e, finalmente, o mar insondável: também isso é solidão da alma com Deus! O espírito de Deus sopra em toda a parte. Quem ergue o chão de sua alma na solidão de Deus há de levar esse sentimento mesmo em meio à multidão insana.
Nunca esquecerei  minha despedida da orla oriental. Meu cavalo avançou à vontade pelo campo florido. Atrás de mim as névoas condensadas, vindas do precipício rolavam pelo campo. É o atrito da planura inferior que faz surgir esse verdadeiro rolar e rodar. Essas neblina fria rodou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Era a saudade de épocas  geológicas distantes, dos irmãos do Chile e dos parentes de muito além do Oceano Atlântico, nas ilhas solitárias do Mar do Sul.

Agradeço a Deus e levo saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e sereno à sombra dos pinheirais. (Rambo, Balduidno. Diário. 09 de fevereiro de 1948).