Balduino
Rambo - 4
Seria um grande engano pensar que o Pe.
Rambo dava vazão à compreensão do Mundo e da Natureza e à relação existencial que cultivava com ela, quando em
contato com cenários que nunca tinha visto de perto. Por ocasião da sua permanência
no Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da coleção
“De Angelis” na Biblioteca Nacional desenhou num intervalo, a paisagem das
montanhas que formam o anfiteatro da cidade.
Ai sentava eu, creio que foi na tarde de
sábado santo, junto à janela e alongava o olhar em direção ao Corcovado. Pouco
antes tinha chovido, mas agora o ofuscante sol tropical brilhava sobre rochas,
matos e cidade. As listas de água que pouco antes tinham desabado,
precipitavam-se em forma de furiosos regatos outeiros abaixo, deslizando agora
como feixes de metal faiscantes por entre a ramagem rasteira num colorido
verde-claro. As palmeiras ao pé dos rochedos e o vale alcantilado balançavam
silenciosas os seus leques na brisa, que soprava em direção à planície. Qual
tapete de alfombras com centenas de matizes de verde estendia-se a mata virgem
por sobre as colinas oblíquas, diluindo-se
à distância no firmamento cerúleo. Bem lá no alto serpejava um manto
azulado de neblina e de sol doirado, em volta da imagem do Cristo Redentor da
montanha.
Longas horas eu sentava ali abismado com a
imponência da selva tropical. Sentia imensa nostalgia dos tempos de antanho,
quando me era dado apanhar, sem mais, as imagens contempladas nas malhas da
linguagem escrita e entretecê-las com os pensamentos mais sublimes de minha
alma, como reluzente e preciosa pedraria. Parecia-me então ser indigno de mim
deixar-me afogar no trabalho externo, enquanto a melhor parte da minha
humanidade estiolava e se deteriorava. Parecia-me que todo o esforço para a
aquisição de novos conhecimentos não compensava o preço elevado que todo o dia eu pagava por isso;
que eu devia chamar de volta os espíritos amistosos dos tempos idos, quando
então buscava com menos afã a erudição fria, sentindo-me, no entanto, bem
mais enriquecido de coração, mais rico
em criatividade, mais rico em Deus. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)
A paisagem com a qual, consolidou, desde o
final dos anos de 1930 até o seu falecimento, uma relação existencial tão
profunda que a chamou de “minha pátria na terra”, foi o planalto do Rio Grande
do Sul, com seus campos, capões, matas, pinheirais, canyons, escarpas e
precipícios. Cambará e arredores são o
ponto de referência e convergência desse cenário. As anotações que deixou foram
extraídas do diário que escreveu durante uma estadia, durante os meses de
janeiro e fevereiro de 1948, naquela região.
Essas caminhadas pela neblina, essas
noites com seu leve prurido de chuva junto à janela, as gotas continuamente
estalando nas árvores, chamam para a interioridade. Então a alma liberta-se dos
fogos fátuos do dia resplandecente, e ela entra em silêncio no seu mundo mais
íntimo, no reino do ser envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes
e vozes se perdem em seu eco e migram através desta terra espiritual carregada
de pressentimentos. Alguém caminha na névoa da noite com passos tão leves como
o murmúrio da neblina. Ele é único e chama meu nome nesta terra solitária. Ó
tu, noite silenciosa e santa solidão.
A orla oriental é constituída pela vista
panorâmica para as maiores distâncias, pela sinuosidade brusca das formas perto
da planície e com a força perene da névoa em efervescência.
São únicas as pinturas da natureza na bela
terra de Deus, como as da garganta da Pedra Branca. Poderia chamar-se o quadro de precipícios
perpendiculares e de cataratas troantes, de névoas efervescentes e trovoadas
uivantes, de mata silente e escolhos altos, cheios de clarividências pétreas,
de pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de
força e simplicidade que nunca para de rolar para a frente. Alguém mora nessas
profundezas que sussurram, alguém observa nesta torre solitária de vigia. Ele
chama o eco, apascenta a névoa, brinca com o raio e o trovão nos lugares solitários.
Na ampla baixada, os lagos refulgentes e o
mar-oceano aos sussurros ficam depois desta paisagem. Ao olhar ao longe da
parede anterior, há pressentimento das distâncias infinitas. O sentir
predominante é o da preeminência sobre o vapor, a poeira, o calor e a
fastidiosa multidão humana. Rochas cinzentas, mata verde, água murmurante e
correntes estagnadas, amplas planícies, nuvens migrantes e, finalmente, o mar
insondável: também isso é solidão da alma com Deus! O espírito de Deus sopra em
toda a parte. Quem ergue o chão de sua alma na solidão de Deus há de levar esse
sentimento mesmo em meio à multidão insana.
Nunca esquecerei minha despedida da orla oriental. Meu cavalo
avançou à vontade pelo campo florido. Atrás de mim as névoas condensadas, vindas
do precipício rolavam pelo campo. É o atrito da planura inferior que faz surgir
esse verdadeiro rolar e rodar. Essas neblina fria rodou sobre mim e me
envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Era a saudade de
épocas geológicas distantes, dos irmãos
do Chile e dos parentes de muito além do Oceano Atlântico, nas ilhas solitárias
do Mar do Sul.
Agradeço a Deus e levo saudades desta
terra hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e
sereno à sombra dos pinheirais. (Rambo, Balduidno. Diário. 09 de fevereiro de
1948).