Balduino Rambo - 5
Uma proposta de síntese
Numa reflexão anotada no diário de 17 de julho de 1946, Rambo deixou um
esboço da síntese abrangendo todos os campos do saber que se propunha a
elaborar. Assumia essa tarefa como a missão maior da sua vida. Conta que ele e
seu irmão de ordem Pe. Jorge Steiger, estavam elaborando o discurso que o recém
eleito cardeal D. Jaime de Barros Câmara pronunciaria na homenagem que os
intelectuais de Porto Alegre lhe fariam na ocasião. Conversa vai conversa vem e
o assunto só poderia ser algo de nível para os dois intelectuais que eram o Pe.
Rambo e
o Pe. Steiger. A certa altura este observou que a partir da Idade Média
não se formulou mais nenhuma síntese que abrangesse o conhecimento na sua
totalidade. O que Tomás de Aquino e
Alberto Magno foram para a Alta Idade Média algum sábio moderno deveria ser
para os tempos atuais. Essa observação despertou e pôs em ebulição todo um
universo de preocupações científicas, filosóficas e religiosas que, há anos,
formaram, por assim dizer, o eixo em torno do qual giravam as reflexões do Pe. Rambo e foram o motor a dar
sentido à sua atividade científica. Passar das reflexões sem compromisso
formal, para concretizar a formulação daquela abrangência, pressupunha em
primeiro lugar uma avaliação até que ponto a síntese elaborada por Tomás de
Aquino, Alberto Magno e demais pensadores e sábios da Idade Média não se
tronara obsoleta ou então até que ponto era preciso validá-la no cenário criado
pelas Ciências Naturais. Rambo chega questionar a utilidade do sistema
aristotélico-tomista como suporte para lidar com o novo cenário. Pergunta se
não convinha abandonar os dois sistemas e começar tudo de novo a partir de
Platão. Nesse caso o sistema aristotélico-tomista seria chamado a contribuir na
medida em que fosse necessário ou conveniente. Para ele o velho racionalismo
que é o cerne desse sistema não oferece potencial suficiente para entender
a complexidade da natureza. Permanece
útil apenas se enquadrado nas “leis perenes do pensamento humano”, pois
Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição, que não é
outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do
significado e da expressão imediata da
palavra, como do som subliminar que emite a ressonância que desperta. A essa
melodia concomitante da linguagem humana até hoje se prestou muito pouca atenção. Bem considerada,
ela não é um som secundário e sim a nota dominante no concerto musical do
espírito dinâmico do Homem. (Rambo, 1994, p. 265)
Bem interpretada essa afirmação leva à conclusão de que nem as
Ciências com sua capacidade analítica dos fenômenos naturais, nem Filosofia e a
Teologia com se poder análise sintética, são capazes de chegar ao cerne da
questão, isto é, oferecer o elemento, ou os elementos que fundem numa
mega-síntese os conhecimentos obtidos via analítica e sintética. Recorrendo a
uma metáfora. Qual é natureza do conhecimento, “ a pedra de fecho” que faz com
que estruturas convergentes se “fechem” num arco ou numa cúpula. Para Rambo
essa “pedra de fecho”, sem a qual não se completa a síntese universal é o
conhecimento adquirido pela intuição, pela percepção sensorial, levando ao
conhecimento condensado, é o que de fato permite falar em síntese.
A ideia força sobre a qual deve
fundamentar-se uma síntese global foi assim resumida por ele:
Uma verdadeira síntese das Ciências Naturais deve abranger o seguinte pensamento
universal: tudo que acontece na natureza é uma reversão para a unidade e para
Deus. Sugestivo em extremo se torna este pensamento, ao nos servirmos da
seguinte analogia: da multiplicidade máxima, a Natureza retorna à unidade
máxima no ser humano. E a Ciência Natural igualmente procura regredir da máxima
dispersão para a simplificação e a
unidade. (Rambo, 1994, o. 265)
É oportuno chamar a atenção para a semelhança senão uma outra
versão dessa concepção da natureza de Teilhard de Chardin. A metáfora dos
meridianos terrestres que partem do polo sul, do “alfa”, em direção ao equador,
para se multiplicarem e diversificarem e aparentemente se dispersarem, para
retornarem em busca da unidade no polo norte, o “ômega”. Não consta que os dois
cientistas e filósofos jesuítas contemporâneos, se tenham conhecido e
estavessem ao par do pensamento um do outro. O retorno à unidade é uma
tendência em todos os elementos da natureza, incluindo os elementos químicos
anorgânicos e orgânicos, as leis e os fenômenos físicos, todas as formas de
vida, a começar pelas arqueobactérias, até as formas mais complexas, tudo
comandado pela evolução. Esse poderia ser o conteúdo da primeira parte da obra sobre a Síntese proposta por
Rambo.
O pensamento central a orientar a segunda
parte da obra ocupar-se-ia com os diversos graus ou níveis que levam ao retorno
da unidade. Não se trata de avanços aleatórios, sem regra, mas de uma forma
organizada, talvez melhor, planejada, e por isso mesmo, conduzida por uma
teleologia. Partindo desse pressuposto foi composta a tábua periódica dos
elementos, a taxonomia no reino animal e vegetal e a sucessão das eras
geológicas. Nesse processo percebe-se de saída que se trata de uma dinâmica e
os diversos componentes avançam em ritmos diferentes, algumas ramificações
definham e morrem no meio do caminho, enquanto outras mais bem adaptadas se
robustecem e seguem vitoriosas até que a mudança das circunstâncias interfere
ao ponto de frear o dinamismo e até inviabilizar a continuidade da sua existência.
O responsável pela unidade das espécies vivas é o resultado da unidade na
direção ou, se preferirmos, pela teleologia que orienta o todo e as partes
individuais. Preserva-se assim a unidade na pluralidade e a pluralidade na
unidade que se constitui na tese dessa síntese universal. Acontece que a
teleologia que comanda o acontecer na natureza pressupõe, por sua vez, unidade
de origem.
Na época em que Rambo fez essas anotações
em seu diário, isto é, 1946, a genética e a biologia molecular fornecendo a prova
maior para a unidade de origem de todas as espécies vivas, estava apenas engatinhando com as pesquisas de
Thodosius Dobzhansky e outros especialistas na área. O que na época ninguém
punha mais em dúvida eram as leis de Mendel com sua validade universal, tanto
para animais quanto para vegetais. O grau de identidade do genoma, tanto na sua
composição química, quanto na sua importância na condução da evolução, no
sucesso das espécies vivas, no surgimento de novas e na eliminação de tantas outras, ficaria
evidente somente na seis décadas posteriores. Hoje 80 anos depois em que
dispomos de todas evidências científicas apontando para a unidade essencial do
genoma, desde as arqueobactérias até as formas de vida vegetal e animal mais
complexas e evoluídas, o autor provavelmente não escreveria mais que a unidade
tinha “provavelmente” (Rambo, 1994, p. 266), mas “evidentemente” ou mesmo “certamente”
um argumento sólido da “origem comum”.
Postas essas premissas seriam necessários os seguintes passos para a
formulação do corpo da síntese. Primeiro. A leitura e a compreensão das síntese
elaboradas pelos mestres do passado, com destaque para Platão, Santo Agostinho,
Aristóteles, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa, principalmente. O
importante nesse esforço deveria ser um encontro direto com esses sábios e suas
obras buscando compreendê-los no original, deixando de lado versões e
interpretações que ocupam estantes inteiras
em inúmeras bibliotecas. Neste
particular coloca-se obviamente um dos maiores desafios para quem se dispõe a
abraçar a tarefa de formular uma síntese compreensiva da natureza no seu todo.
Para começar pede-se um conhecimento profundo do espírito da língua grega e
latina, para arriscar uma compreensão o menos possível viciada pelas
idiosincracias pessoais dos tradutores e
intérpretes e mais próximas possíveis do entendimento objetivo dos autores. No
caso de Aristóteles o desafio torna-se praticamente insuperável pois, as
versões latinas de sua obra foram baseadas em traduções árabes do original grego. A leitura das obras
de Platão, Agostinho, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa podem ser
feitas no original e por isso oferecem dificuldades menores, sob a condição do
conhecimento profundo do grego e do latim. Em segundo lugar é preciso
inventariar os resultados das pesquisas e descobertas científicas que se
tornaram marcos referenciais, desde o final da Idade Média até hoje.
Na introdução da segunda parte é
indispensável que se apresente o cenário criado pela dicotomia que resultou da
divisão do conhecimento pela Ciência de um lado e o da Fé, do outro ou, se
preferirmos, os conhecimentos fornecidos pelas Ciências Naturais, as Ciência do
Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. Nesse embate em que as
Ciências Naturais e as demais Ciências encastelaram-se cada qual no próprio casulo hermético,
reivindicando, num clima de fundamentalismo a exclusividade para dar respostas
conclusivas sobre a natureza do universo, da natureza e do homem. O clímax
desse dessa guerra que nunca foi necessária e na qual ambos arraiais saíram
perdendo, aconteceu na segunda metade do século XIX e no começo do século XX.
Salvo melhor juízo, os momentos de maior acirramento se concentraram nos anos
do Concílio Vaticano I, na década de 1870 e no pontificado d Pio X, nos
primeiros 15 anos do século passado. Depois, em começos do século XX começam a
perceber-se os primeiros sinais de armistício entre as duas partes. As descobertas
da leis fundamentais da hereditariedade pelo monge Gregor Mendel, as pesquisas
sobre o funcionamento das colônias de formigas e térmites, conduzidas com o
máximo rigor científico, do jesuíta
Erich Wassmann, a formulação da teoria do Vitalismo por Hans Driesch e outras
propostas nessa linha, foram os primeiros indícios de que, em pensando bem, o
radicalismo científico e o radicalismo
filosófico e teológico, com suas posições fundamentalistas, poderia ser superado.
A autoridade máxima da Igreja Católica faria o seu primeiro pronunciamento
oficial na Encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII de 1943 e, de modo
especial, ma Carta Encílcia “Humani
Generis” de 1950. Nesses documentos
oficiais da Igreja liberavam-se oficialmente os católicos e os religiosos a
falar e admitir teses cruciais vindas do lado das Ciências Naturais, como a
Evolução em geral e o Darwinismo em particular, obviamente no que se refere aos
processos biológicos. Questões teológicas como a Criação divina, a alma imortal
e outras questões desse nível permaneciam, no âmbito privativo da doutrina
oficial da Igreja. Dos seis sucessores
de Pio XII cinco ampliaram essa abertura em favor da legitimação e
consequentemente aceitação das conquistas da Ciência. O papa Francisco brindou em junho do presente ano cientistas, teólogos,
filósofos, ecólogistas e todos que de algum modo se ocupam e preocupam com o nosso planeta, ou a nossa “querência”
se preferirem, com magnífico e lúcido
documento que é a Carta Encíclica
“Laudato Si”. Nela reforça que os seus antecessores, desde Pio XII,
ensinaram sobre a relação da Ciência com os ensinamentos da Igreja Católica e
entrando fundo nas grandes questões que envolvem a compreensão da Natureza e
seus reflexos sobre a fé, sobre a relação existencial do homem com o meio
ambiente e obrigação moral de zelar pelo bem comum que é a Natureza.
É preciso também não perder de vista de
que a Filosofia Clássica e a Escolástica nascidas no contexto da Idade Média,
são essencialmente especulativas, descoladas do mundo real que a Ciência foi
descobrindo a partir da Renascença. A Filosofia Natural da antiguidade é de
natureza inteiramente especulativa. A Fé perpassava todo o pensamento da Idade
Média. Com isso passou despercebido que a multiplicação, a diversificação e o
aprofundamento das Ciências Naturais foram revelando uma dimensão do universo e
do mundo que não encontra lugar na tradição teológica e filosófica que
predominou absolutamente até o começo da Renascença. Nesse contexto a revelação
que contava era àquela transmitida pelas Escrituras Sagradas e interpretadas ao
pé da letra. O contexto em que foram escritas com suas particularidades
históricas e circunstanciais não admitia que essas narrativas viessem
carregadas de cacoetes histórico culturais inspirados na tradição judaico
cristã. Não se admitia na interpretação dos textos sagrados que a narrativa se valia de recursos literários como
metáforas, alegorias e outros mais. Encontrar nesses textos raízes e
influências como do Livro dos Mortos do Egito, ou Gulgamesh da Mesopotâmia, costumava
ser interpretado como heresia. Até a advertência de São Paulo na Carta aos
Romanos de que ninguém está escusado por não conhecer Deus porque a natureza é
o livro aberto que O revela a todos que souberem interpretá-la, parece que não
era levada muito a sério.