Associativismo teuto-brasileiro - I – Origem na Alemanha

O cenário histórico
As iniciativas associativas no sul do Brasil foram inspiradas nas organizações associativas católicas da Alemanha, Suíça e Áustria, como resposta às circunstâncias sociais, políticas econômicas e religiosas hostis à Igreja, no final do século XVIII. Foram criadas para fazer frente às correntes filosóficas inovadoras e revolucionárias do iluminismo, do enciclopedismo, do racionalismo e outras mais que tomavam conta da Europa culta da época e, partir das camadas dirigentes instruídas, difundiram-se pela população em geral. A Revolução Francesa, alimentada pelo apelo popular  por liberdade, igualdade e fraternidade. desferira o golpe de morte na antiga ordem do Estado Absoluto. Da mesma forma acertara um golpe profundo à Igreja. Seus bens foram expropriados, religiosos e sacerdotes sofreram perseguições, e não poucos pagaram com a vida  na guilhotina sua fidelidade à Igreja.

Terminada a Revolução propriamente dita, entrou em cena Napoleão. Suas guerras de conquista prolongaram-se durante mais de 15 anos pela Europa inteira. Estados foram varridos do mapa, enquanto outros foram divididos ou submetidos a uma tutela que, de fato, os reduziu a uma submissão em que arbitrariedade do grande corso ditava as regras. Neste cenário, a movimentação ininterrupta e tropas, transformaram a Europa Central e do Norte, num vasto e permanente campo de batalha. A situação resultou especialmente complicada na região do Reno. O constante vaivém de exércitos fez da região uma terra de ninguém. As consequências não podiam ter sido piores, provocando uma desorganização generalizada das estruturas políticas, sociais, econômicas e eclesiásticas. A Igreja, privada dos seus recursos organizacionais mais elementares, tanto hierárquicos quanto materiais, chegara a um nível crítico. Ameaçava-a um colapso total sem que os bispos, o clero e os fiéis encontrassem uma forma eficaz de agir e, pior ainda, sem um apoio com que pudessem contar. Os ideários das novas e revolucionárias correntes do pensamento espalhavam-se cada vez mais no meio do povo, estigmatizando a Igreja como uma instituição retrógrada, obsoleta e contrária  aos novos tempos. O fervor e a prática da religião sofreram uma diminuição assustadora, ao mesmo tempo em que os candidatos ao sacerdócio e

] vida religiosa escasseavam perigosamente, e sua formação era seriamente afetada pelas novas ideias. A situação foi pintada com cores carregadas na revista “Katholische Bewegung in Deutschand”  - “Movimento católico na Alemanha”, em 1869:

Vivemos num tempo em que, diante dos fatos, as teorias nada nos têm a dizer. Não existe formação sem educação  sem moral e sem religião. Os professores ensinam no deserto, porque uma mentalidade destituída de inteligência prega que nas escolas não se deve ensinar religião. De dez anos para cá o ensino é estéril. A educação é o fundamento para toda e qualquer religião. A juventude está entregue ao ócio mais funesto. Não tem nenhuma noção do que é divino. Os conceitos de justiça e injustiça são alheiros e como consequência o embrutecimento e a barbárie nos costumes geraram um povo selvagem. Se cotejarmos o ensino como está hoje com o que deveria ser, não se pode deixar de deplorar a sorte que espera as gerações futuras.
O espírito do mal trazido das profundezas da Revolução Francesa e pelos iluministas, alimentado e difundido pela filosofia da época, tomou assustadoramente conta de todos os cantões alemães.  Tempestades assustadoras irrompem com violência. Todas as instituições, dioceses, asilos e conventos, que durante séculos tinham sido a bênção do povo, atuaram pelo bem estar da Igreja e serviram de amparo aos pobres, foram extintos, destruídos e reduzidos a escombros. Foi um tempo de perplexidades. Tudo parecia desarticulado. Em parte alguma se encontrava qualquer baliza que pudesse oferecer segurança. Em muitos a fé se apagara ou estava abalada e os costumes deteriorados. Do coração de muitos desaparecera a fidelidade e o compromisso para com a Igreja. Profetizava-se, enquanto se regozijava que, sem demora, as ruínas dos conventos sepultariam o altar e o papado. (Katholische Bewegung in Deutschland, 1869, p. 28)

O momento histórico a que o texto se refere foi ano de 1803. Os novos governantes instalados nos territórios alemães interferiam profundamente na vida e nos negócios da Igreja. Seus alvos preferidos eram três questões de fundamental importância para a Igreja. Primeiro, tratavam de diminuir ao máximo a autoridade da hierarquia, subtraindo aos bispos a competência de prover os postos eclesiásticos; segundo, desta forma a relação do clero com os bispos estava comprometida: terceiro, a formação do clero sofreu uma forte influência do laicismo em moda na época.

Em meio a esse cenário começou a esboçar-se a reação da Igreja alemã, tendo como porta-vozes uma série de bispos em dioceses de peso. O bispo de Würzburg Georg Karl von Fechenbach sugeriu um entendimento  entre os governantes e o papa, via concordata. Carl von Dalberg, bispo de Regensburg, propôs que a intermediação com o papa fosse feita pelo imperador da Áustria. As negociações nesse sentido envolveram ainda os bispos de Fulda, Eickstädt e Speyer. Não demorou para ficar evidente que a extensão e a gravidade da situação só se resolveria por meio de uma ação conjunta dos bispos, como ficou registrado na publicação já citada: ( ... ) já que um desfecho favorável para a Igreja alemã só seria possível somando a participação e o empenho de todos os bispos alemães”.  

O plano que visava a sensibilizar os governantes para assinar uma concordata com Roma, intermediada pelo imperador da Áustria não passou do nível das intenções.

Para complementar aquilo que se acaba de registrar, merece menção ainda o esforço individual do bispo de Würzburg, em negociações com o chanceler Dalberg. Em correspondência mantida com aquela autoridade, obteve a promessa de que o direito dos bispos seria assegurado na concordata a ser negociada com o núncio apostólico.

A frustração que tomou conta dos bispos alemães depois do fracasso das negociações ficou registrada numa carta pessimista do bispo de Speyer. Nela ressaltou os pontos principais que motivaram a sua sensação de não vislumbrar uma saída para a situação. Depois de analisar os esforços feitos em favor de uma solução aceitável para a Igreja alemã, apontou para as razões que inviabilizaram as negociações. O primeiro obstáculo encontrado foi o desinteresse do imperador da Áustria em chamar a si a intermediação nas negociações de uma concordata. Mais desalentador deve ter sido o conformismo do papa diante da situação, ao afirmar que só Deus poderia ajudar. A tudo isso somava-se a sombria perspectiva da falta de candidatos ao sacerdócio para o futuro.

O bispo manifestou ainda a suspeita de que Deus tivesse em mente a instauração de uma ordem mundial radicalmente nova, e concluiu suas considerações:

( ... ) os regentes de hoje junto com seus auxiliares são de uma cegueira e ignorância tão flagrante a ponto de eles mesmos contribuírem para a sua própria ruína. Têm consciência que todos balançam e eles próprios contribuem para acelerar o colapso, ao rejeitarem balizas seguras. [1] 

No ano de 1810, Wiedrich von Waldorf, bispo de Speyer deixou registrado um depoimento carregado de prognósticos sombrios.

Não destino nada para as instituições piedosas. O Deus todo-poderoso sabe que eu me tinha decidido legar para fins bons e piedosos, todos os meus bens pessoais, excluídas as joias e aqueles que possuo em comum com a família. Como, porém, nos tempos presentes da ilustração nada mais é sagrado e tudo o que é destinado para a glória de Deus, para o altar e o serviço do altar, não está seguro perante a destruição, o roubo e a apropriação sem escrúpulos, não passaria de uma insensatez, entregar o mínimo que fosse para tais fins.[2]  

Em meio a esse cenário inteiramente hostil à religião e à Igreja Católica, entrou em cena o bispo auxiliar de Würzburg entre 1801 e 1817. Foi o maior conhecedor  das circunstâncias  históricas da época e um homem com total devotamento à causa católica. Estudara a fundo as correntes do pensamento hostis à Igreja. Acompanhava sistematicamente o pensamento laico veiculado por meio de revistas e periódicos que o levavam até as camadas cultas e, de forma indireta, contaminava o povo em geral. A constatação dessa realidade despertou-lhe a ideia de combater o mal com as suas próprias armas. Propôs uma organização de leigos católicos dotados de um alto nível de formação. Caberia a eles analisar, discutir e avaliar o pensamento contrário à Igreja, contrapor-lhe a doutrina e o pensamento católico e fazer circular as conclusões numa publicação periódica. Em lugar de enfrentar o problema com manifestações de desânimo e desespero ou pela via política e diplomática da concordata, o caminho proposto pelo bispo foi o mesmo utilizado pelos adversários e inimigos da Igreja: o embate, o confronto de ideias. Assistimos aqui a gênese de um embrião de ação e estratégia da Igreja que foi assumindo uma importância cada vez mais decisiva, durante o século XIX e a primeira metade do século XX. Ideias, pensamentos, filosofias, cosmovisões, requerem análise, discussão, cotejo. De pouco  adianta combatê-los sem um mínimo de conhecimento de causa. É preciso enfrentar a situação no mesmo nível munido do conhecimento do ponto de vista  e das intenções dos adversários. O caminho mais curto e mais seguro consiste em somar os esforços em associações formadas por elites intelectuais, em condições de identificar e interpretar corretamente os sinais dos tempos.

Na época, início do século XIX, o bispo auxiliar de Speyer confiou a um grupo de elite intelectual a ser organizado, uma série de atribuições específicas, como missão a ser cumprida. Como já apareceu em outras manifestações citadas mais acima, havia uma grande preocupação para com o clero jovem. As instituições  em que recebia sua formação, ofereciam sérios riscos de contaminação pela atmosfera do pensamento laico. Urgia, pois, garantir a ortodoxia  doutrinária e zelar pela disciplina eclesiástica. E, para começar imediatamente com o movimento, o bispo propôs que se conquistasse para a causa o “Jornal de Literatura”, destinado aos professores.
Que houve iniciativas concretas para reunir uma elite pensante, tem a sua confirmação num esboço de organização constantes entre os escritos do bispo Zirkel:

Para salvar a religião e a Igreja, é preciso fundar uma associação para homens dotados de pureza

O mesmo bispo continuou reforçando a urgência de que sua proposta fosse concretizada. Segundo ele, circulava um livro que era mais nocivo do que aquele de Kant que versa sobre a religião e a Razão. Não identificou a respectiva obra.

Um segundo problema, representado pelo avanço da influência protestante,  afligia a Igreja e as lideranças católicas em geral. A nova ordem das coisas permitia a supremacia protestante nos governos e na administração pública. A sua histórica hostilidade para com a religião católica foi-se acentuando na mesma proporção em que crescia a sua influência no poder e evidentemente na administração pública. Em meio a esse cenário cada vez mais desfavorável e francamente hostil à Igreja, o catolicismo levava o estigma do anacronismo. Os bispos e o clero não passavam de agentes do atraso e o povo católico, uma massa de ignorantes e supersticiosos.

O Gabinete (Kabinett) dos príncipes mostrava-se flagrantemente hostil à Igreja e ao catolicismo. Várias razões subjaziam a essa atitude. Entre outras sobressaíam as seguintes.

A existência de uma hierarquia paralela forte e influente significava um contrapeso incômodo para os governos e o poder laico em geral. Além da concorrência no nível de poder e influência, a razão submissa à fé era tida como um poderoso obstáculo para a evolução do homem, da cultura e do saber, a grande ordem que ditava os rumos da história na época.

O bispo auxiliar de Speyer demorou-se ainda mais nas suas análises daquele período histórico tão hostil à Igreja. Os estragos feitos na França com a Revolução e a sua luta aberta contra a religião, o clero e as ordens e congregações religiosas estendera-se, de forma indireta, mas não menos perniciosa,  para o restante da Europa central e do norte. Os efeitos foram especialmente funestos com a  intromissão na autonomia da Igreja e na laicização da escola e da educação. Uma outra área muito sensível sofreu as investidas das doutrinas e do pensamento da época. Intrometeram-se ostensiva ou sorrateiramente nos estabelecimentos de ensino de formação religiosa, reduzindo a doutrina a cristã a um mero deísmo bíblico. A inconsequência e a superficialidade tomou conta das escolas de teologia. O pretexto de adaptar-se aos tempos  modernos e inserir-se no mundo novo para, dessa forma, simular uma roupagem atualizada ao catolicismo, resultou em superficialidade e ausência de  solidez doutrinária e, em não poucos casos, relaxamento da disciplina eclesiástica. Resultou daí um cenário em extremo complicado que levou ao desânimo e ao quase desespero os bispos, o clero e o próprio povo católico. Sem balizas confiáveis e referências seguras tateava-se  sem esperança, num mundo que relegara ao passado a segurança da fé, com apelo à esperança e a fé num mundo conturbado e sem rumo.

A grande questão que se colocava resumia-se numa pergunta curta, mas óbvia: O que fazer e como fazer? A resposta foi dada  por uma personalidade do porte do bispo auxiliar de Speyer Wilderich von Waldesdorf. É preciso oferecer com urgência ao clero uma sólida formação teológica e filosófica. Em segundo lugar,  ao povo,  o autêntico espírito católico e, em terceiro lugar, devolver a verdadeira identidade  divina ao Deus da Bíblia. Essas tarefas e outras mais que se fazem indispensáveis só serão viáveis por meio de um esforço conjugado e comprometido.

Unidos em espírito é preciso haver também uma união externa, a fim de perseguir o objetivo de unir as forças. Nossa meta não pode ser outra a não ser a verdade católica, a guarda do sagrado fundamento da fé e a defesa da mesma dos falsos irmãos e dos ignorantes que a atacam sem o devido conhecimento. A finalidade da nossa associação literária consiste na preservação, fortalecimento e defesa da religião católica romana. O nosso objetivo volta-se  para a formação e o fortalecimento do clero jovem face aos erros do tempo e assim incrementar e apoiar fortemente o “Jornal Literário Felder  que circula na Baviera. [3] 

Como se pode concluir, o início do século XIX encontrou a Europa num clima de fim de época. As instituições tanto civis quanto eclesiásticas, estavam sendo questionadas pela base. O enciclopedismo, o iluminismo e outras correntes  renovadoras haviam colocado as velhas instituições na defensiva. Não só as forçaram a defender-se em condições de inferioridade, como também as minaram sistematicamente de dentro para fora. A laicização da escola de modo especial subtraiu à Igreja um dos  instrumentos mais eficazes para a realimentação doutrinária e disciplinar do povo. Setores importantes, preocupados em encontrar uma fórmula eficaz  no enfrentamento com o cenário inusitado, cobrou um preço muito alto. Valendo-se da tática certa de conhecer a fundo as armas utilizadas pelo inimigo para, dessa forma, lidar com ele com mais probabilidade de êxito, demonstrou-se uma faca de dois gumes. Facilitou a penetração das novas ideias nas instituições de formação do clero. Deturpou em não poucos casos a própria concepção teológica e filosófica das novas gerações de sacerdotes. O ideário defendido com o pressuposto da liberdade de pensamento minou as relações hierárquicas em todos as instâncias, começando pelos fundamentos doutrinários, passando pela disciplina eclesiástica para terminar na obediência devida aos superiores hierárquicos. Ao mesmo tempo, os governantes  tradicionais foram substituídos por uma geração afinada com a nova ordem e a nova cosmovisão. Hostis ou indiferentes à Igreja,  acompanhavam com indisfarçada satisfação o processo de desmonte da sua estrutura e, de modo especial, o corromper da base doutrinária e a disciplina que resistira a séculos de investidas. A tudo isso somaram-se as guerras napoleônicas e suas consequências como  complicadores porque resultaram na desorganização política, econômica e social da Europa.



[1] Die Katolische Bewegung in Deutschland. op. cit. p. 22.
[2] Die Katolische Bewegung in Deutschland. op. cit. p. 26.
[3] Die Katholische Bewegung in Deustland. op. cit.

Fronteiras de colonização - XI

Chegara o momento que eu queria ser informada como se dera o assalto dos revolucionários.
“As coisas aconteceram com muita simplicidade e muita rapidez. Não houve prelúdio”, começou o Emílio. Aqui no mato não se enxerga nem se ouve nada. O Leonel cuidou para que ninguém nos alertasse. Pelo que parece fez a travessia com seus homens no Pepery e entrou na colônia da Sociedade União Popular. Como lá não se encontram colonos, apenas caboclos e mateiros de procedência duvidosa, morando em ranchos miseráveis, a marcha não encontrou problemas. Nas colônias e chácaras em volta da futura sede de Porto Novo, moravam alguns colonos. Também no barranco do rio e nas picadas mais próximas alguns lotes estavam ocupadas. Cada um dos colonos viveu à sua maneira a surpresa. Ainda antes do clarear do dia os primeiros foram  surpreendidos  com “mãos ao alto” venham conosco! Não havia lugar para um “quando” e “para onde”. As armas ameaçadoras falavam por si. E o que um indivíduo isolado poderia fazer? Portanto, para frente, os encarregados da observação movimentava-se na frente, à direita e à esquerda da estrada principal. Não teria sido tão ruim o fato de o bando esfomeado que passara pelos matos, se ter adonado de tudo que encontrava em termos de alimento. Além disso Leonel Rocha demonstrara uma boa dose de civilidade. Explicou que se via forçado a aprisionar as pessoas para evitar uma traição ou um comunicado de sua marcha a Porto Feliz.

A nós eles surpreenderam de uma maneira muito safada, continuou o Emilio, enquanto meu marido sorria sentado do meu lado, sem dizer uma palavra. “Rhode voltara na noite anterior de uma viagem para fora, morto de cansado. Comprara em Neu Württember grande quantidade de provisões, entre gêneros alimentícios e utensílios. Acondicionamos uma boa parte da carga na construção nova. O melhor de tudo foi a excelente linguiça e o pão que nos prometia não pouca alegria para a manhã seguinte. Fazia muito tempo que não víamos esse luxo. Resumindo, continuou o Emílio, naquela noite subimos, mortos de cansaço com o trabalho e as peripécias, a escada que levava até o sótão, já que em baixo faltava ainda o assoalho. Lá em cima estavam acomodados as nossas malas, as roupas e todos os nossos pertences. Não dispúnhamos de cofres de ferro, por isso éramos obrigados a levar conosco durante o dia, relógios, dinheiro e demais artigos de valor, ou os escondíamos em algum lugar. Cachorro  para vigiar a casa não havia. Na época um bom cão de guarda era uma raridade cara. Jogamo-nos nos colchões sobre o assoalho. Dinheiro, relógio e revólver sob o travesseiro, as roupas penduradas em pregos nas tabuinhas do telhado. Dormíamos o sono dos justos quando, ao amanhecer, ainda escuro, uma cabeça subiu pelo alçapão e acima dela emergiu o cano de um revólver. Uma voz grossa arrancou-nos do sono. Nanu, o que vinha a ser isso? E, antes de enxergar bem e antes de entender o que estava acontecendo, estávamos presos. Fomos obrigados a nos vestir com diante das armas apontadas e descer quietinhos como um cordeiro os degraus da escada. Rohde fez um esforço desesperado para levar escondido o relógio e a carteira com o dinheiro, com o pretexto de calçar as botas. Não lhe foi permitido. Os senhores tinham pressa. Mais acima na estrada encontravam-se reunidos e vigiados, como prisioneiros, os outros moradores.

Nem a idade o bando respeitou. Enxergamos entre os prisioneiros o idoso senhor Flach com sua barba branca – uma das nossas figuras de pioneiro mais marcantes e comprometidas. Em companhia dos demais já vencera um bom trecho de estrada. Por meio de olhares entendemo-nos no sentido de conservar a calma e permanecermos solidários, no que desse ou viesse. Cada um de nós recebeu a sua tarefa. Coube-nos seguir com a mula, a metralhadora e a munição, para render os outros. Como todos os outros estávamos precariamente vestidos e calçando chinelos, A ordem foi continuar pela trilha irregular no meio do mato. Durante a marcha acresceram mais  alguns prisioneiros. 

Rohde conseguiu falar pessoalmente com Leonel, o comandante dos revolucionários. Preocupava-o a propriedade que ficara para trás e a casa desprotegida. Leonel parecia sensato e prometeu liberar todos os prisioneiros, logo que atingissem o Catres e tivessem uma boa dianteira. Assegurou que não eram nem salteadores nem praticavam pilhagens e seus homens eram disciplinados. O receio pela propriedade era supérfluo. Que ele não tolerava roubo. E pelo visto, quis demonstrar isso na prática pois, chegados ao Macuco, na propriedade do sr. Mayntzhusen, este aproximou-se de nós, também como prisioneiro, e queixou-se ao Rohde, que a vanguarda fizera serviço pesado na sua propriedade. Até seu precioso instrumento de medição tinham levado, sem o qual não tinha como continuar seu trabalho. Os dois levaram suas preocupações a Leonel. Este ficou furioso ao saber que seus homens “tão confiáveis”, como ele afirmara, tinham cometido tamanho ato de indisciplina. Imediatamente mandou proceder a uma sindicância e ameaçou fuzilar  na nossa presença aquele com quem o roube fosse encontrado. Nós naturalmente protestamos, pois ninguém de nós estava a fim de futuramente se expor à vingança dessa gentalha. Além disso não queríamos justiça sumária, mas apenas de volta os objetos roubados do sr. Mayntzhusen. Foram vasculhados todos os sacos e não deu outra. Apareceram além do medidor, um aparelho fotográfico e  outros objetos.

Os objetos encontrados foram devolvidos para demonstrar que Leonel agia sempre com correção. Os responsáveis passaram por uma violenta descompostura. Estávamos satisfeitos pela descoberta e a devolução dos objetos e a marcha seguiu em direção a Catres. Lá nos liberaram e voltamos para casa, porque entre Catres e Porto Feliz não havia moradores que pudessem denunciar a passagem do bando. Para nós o grosso veio no fim.

Emilio olhou para meu marido como que perguntando se contaria o resto ainda naquela noite.

E “o grosso”? perguntei ansiosa. Emílio não tinha mais nada a dizer. “E o grosso? , insisti.

“Amanhã, tu  mesma vais verificar”, concluiu meu marido. “Pois ao voltarmos da longa caminhada que me rendeu as bolhas mais incômodas, observamos a situação em casa. Enquanto ajudamos o Mayntzhusen a salvar as suas coisas, a retaguarda fez o diabo em nossa casa. Simplesmente não sobrou nada: dinheiro, relógio, roupas, cobertas, ponchos, armas, utensílios além de todo estoque de mantimentos destinados aos colonos. Restou-nos o que tínhamos no corpo”.

“Mais alguma coisa”, interrompeu o Emílio. “Na minha mala ficou um pouco de papel em branco. Os sujeitos não souberam o que fazer com ele. Do resto não sobrou nada. Como lembrança deixaram para trás um poncho todo puído e alguns sacos velhos e um facão imprestável. Em compensação levaram uma caixa inteira deles, destinados para a venda aos colonos.

Escutei tudo com toda a frieza possível, mas internamente agradeci a Deus, que apenas coisas foram perdidas e não vidas humanas. Nem consegui lamentar o prejuízo. Só pensava nas semanas de incerteza e angústia que precederam. Tudo se recupera a não ser vidas humanas. Considerei-me feliz, pois, ao meu lado estava aquele por quem suportara todas essas preocupações. O restante recuperaríamos  depois.


Muitos que passaram por essas peripécias, intranquilidades e perturbações, tiveram a mesma sensação  que eu. Foi um excelente aprendizado para nós. Já não nos deixaremos apanhar pela surpresa. Unindo as forças era possível nos defendermos. Algumas pessoas mais temerosas achavam melhor  adiar a colonização na florestas virgem para tempos mais tranquilos. A grande maioria, entretanto, depois desse duro aprendizado, decidiu defender o patrimônio recém adquirido. No mesmo dia foi decidida a criação da auto defesa e imediatamente posta em prática. Disso tive ocasião de certificar-me já naquela primeira noite. O Emílio observou a posição da lua – na falta do relógio roubado – e pôs-se a caminho para fazer companhia aos outros nas margens do arroio Victoria. Em todas as localidades e em todos os cursos que permitiam a passagem de intrusos, os colonos montavam guarda em regime de revezamento, naquelas semanas tumultuadas. Sendo assim pudemos descansar  com a certeza de estarmos em segurança.

Fronteiras de colonização - X - A nova querência

Continua o relato de Maria Rohde
Primeiro descemos pela margem do rio no lado de Santa Catarina, por onde se espalhavam os assentamentos  da Colonização da Empresa Xapecó, Pepery Ltda. Aqui e acolá observavam-se clareiras ocupadas com plantações novas. Passamos seguidas vezes por casas de colonos, maiores e menores, com aparência bastante primitiva. Pelo fato de se encontrarem perto do rio davam uma impressão idílica e destacavam-se da exuberante floresta verde, deixando uma impressão jovial. De vez em quanto ouvíamos o latido de um cachorro, alertado pelo barulho do motor. Nada, porém, de seres humanos, embora nesta parte da colonização de Porto Feliz, muitos colonos já tivessem ocupado a sua terra. Ao nosso lado estendia-se por toda a largura do rio e na frente sua gigantesca superfície avançava até onde a vista alcançava.

Estávamos acomodados no fundo da canoa e deixamos que o poderoso espetáculo nos impressionasse. As crianças, que nunca tinham visto algo maior do que o Taquari, estavam fora de si diante da grandeza do caudal. Mil coisas ocupavam suas atenções. Ora eram os peixes que davam ousados saltos perto da canoa, ora era a vegetação romanticamente selvagem nos barrancos, ora árvores desconhecidas e, somado a tudo isso, a paisagem que se ampliava a cada curva do rio. A impressão avassaladora do conjunto, fez com que nessa primeira viagem pelo Uruguai não guardasse a lembrança de nenhum detalhe. Só enxergava o grande todo dessa gigantesca paisagem da mata virgem. Até onde alcançava a vista sucediam-se as ondas que se elevavam e baixavam, formadas pela floresta sempre verde e por ela fluía, tranquila e alegre, a lâmina prateada do grande rio.

Como era grande e sem fronteiras a magnífica criação de Deus! Aqui não se percebiam limites. Por toda a parte a floresta barrava o horizonte. Espontaneamente flagrei-me diante dos contrários. Como filha da metrópole que conhecia de vista os arranha-céus de New York e  as metrópoles densamente habitadas da América, quase não conseguia entender  que na mesma terra, lá as pessoas  são obrigadas a privar-se do chão debaixo dos pés e viver amontoadas em edifícios de muitos andares. Aqui disponível uma espaço sem fim, a gigantesca e livre natureza, intacta guarda todos os seus tesouros e aguarda apenas que a mão do homem se sirva deles.

O peito parecia-me pequeno para respirar tanta amplidão e tanta liberdade. De qualquer forma o que se estendia diante de mim, não era sonho. Era real e verdadeiro. O principal e o fundamental resumia-se: havia chão e solos em abundância e em tamanha exuberância que não deixava nenhuma dúvida. Quem aqui conquista o seu chão e sabe vencer as dificuldades oferecidas pelo começo, garante o futuro para si, seus filhos e filhos dos filhos. Foram essas as reflexões que me ocuparam a mente durante essa primeira e impactante viagem sobre Uruguai.

Depois de algumas horas de uma  tranquila viagem rio abaixo, escutamos ruídos misturados com o ronco do motor. Em seguida entraremos nas “corredeiras” avisou o capitão e direcionou o barco para a  outra margem, no lado do Rio Grande do Sul. Lá, segundo explicou, o canal era mais largo e menos perigoso, com o atual nível da água. As corredeiras são formações rochosas debaixo da água que, em período de nível baixo, se transformam em correntes velozes que esguicham, espumam e produzem um ruído todo característico. São perigosas para navegadores inexperiente. Mas o nosso capitão conhecia as manhas, sabia onde se encontravam o pontos mais perigosos, assim como os canais através dos quais nos pilotou sãos e salvos. Em pé na canoa, seu ajudante, o caboclo segurava uma vara grossa e comprida e com ela esquiva a canoa, ao passar pelas rochas, quando a aproximação era demasiada. Não me sentia lá muito à vontade quando, em algum momento, o  fundo do barco dava um encontrão na rocha. Mas o Mathias, o caboclo, tinha prática em evitar os encontros mais sérios. Passamos por duas dessas corredeiras. As de Catres foram as últimas, como nos tranquilizou  o capitão. Até o nosso ponto de desembarque não havia mais nenhuma.

Em Catres avistamos o primeiro telhado maior perto da margem do rio. Mathias informou-nos que lá fora instalada uma serraria e mais adiante onde se avistava uma clareira, morava seu patrão, o agrimensor Mayntzhusen. Acrescentou que era um lugar muito bonito e lá cresciam magníficas bananeiras e laranjeiras. E para completar explicou-nos o capitão que naquele ponto o pequeno rio Macuco desembocava no Uruguai, marcando a fronteira entre os empreendimentos de colonização  de Porto Feliz dos evangélicos e Porto Novo dos católicos. O caboclo pretendia desembarcar no Macuco, mas a pedido do capitão continuou de boa vontade conosco.

Observei pela primeira vez uma caboclo, pois, essa estirpe de gente, era pouco conhecida na região do Alto Taquari, onde antes morávamos. De qualquer forma o Mathias parecia ser um sujeito muito serviçal e de boa índole. Para mim o mais simpático nele vinha a ser seu nome. Na minha cidade natal de Trier, em cada dez rapazes, um chama-se Mathias. No bairro de Skt. Mathias encontrava-se a minha casa paterna.  Fui batizada no túmulo do apóstolo. E agora    um caboclo, um mateiro de nome Mathias, pilota o nosso barco ao encontro da nova querência. Como chegou a esse nome? Não fazia diferença o Mathias agradava-me. Mais tarde empregou-se com meu cunhado, foi um homem estimado e nunca deixou de mostrar-se um trabalhador bem disposto e confiável.

Navegávamos, pois, em terras de Porto Novo, nossa nova querência. Depois de passar pelo Macuco e vencer a curva, Mathias embicou o barco para o meio do rio e contou-me que conhecia muito bem meu marido; que sabia como se passavam as coisas e contou-me ainda muito mais, que infelizmente não consegui entender direito por causa do meu português precário na época.

Passava bem do meio dia quando nos aproximamos da desembocadura do rio Pardo. De propósito o capitão fizera uma grande curva, a fim de nos proporcionar uma ampla visão sobre a clareira aberta.

“Olha lá adiante” e apontou com a mão. “É a linda casinha, construída pelo próprio Rohde”.

Imediatamente meus olhos captaram a visão e, no meu íntimo acrescentei: “construída para mim”. Será que ele suspeitava de que eu me encontrava tão próxima que, os olhos brilhando de felicidade, saboreava a visão do que seria a minha nova querência. Alvorocei-me a tal ponto que chorei de alegria. Aqui estávamos. Todas as peripécias tinham sido superadas e encontramos um sossego celestial e uma profunda paz. Não demoraria e eu abraçaria agradecida e assegurar-lhe, que neste momento entendia realmente as razões de seu encantamento por esta terra. Contemplando-a de longe, nunca imaginara que a minha primeira casinha na floresta virgem fosse tão simpática.

Já não conseguia dominar-me, pus-me em pé na canoa e com a mão na boca, mandei um sonoro “juhuuu” por cima do rio. Todos tínhamos o olhar preso para a bela casinha, que se erguia na encosta, cerca de 150 metros afastada do barranco. As crianças fizeram coro com os gritos e o júbilo. Percebemos perfeitamente que algumas pessoas se movimentavam na varanda, e nos imaginamos que viriam ao nosso encontro, já que a canoa tomara a direção da margem. Esperamos em vão por um bom tempo. O barranco alto impedia a vista. Não apareceu ninguém e eu não tinha noção de onde descarregar a minha bagagem. A terra dos Tim ficava  20 minutos  a jusante. Tinham que seguir viagem. Eu estavam agitada e angustiada, quando ninguém apareceu para dar as boas vindas. Não me restou outra saída do que desembarcar e verificar o que estava acontecendo. Com muito esforço alcancei a clareira e verifiquei a situação. Avançar para a frente, nem pensar, pois, o mato recém derrubado jazia no chão, numa confusão total, parecendo-me impenetrável. Subi num grosso tronco de árvore derrubada e angustiada gritei o meu “Huhuuu” e o nome do meu marido. Sacudi o guarda-chuva no ar, para assinalar o lugar onde me encontrava entre os galhos e os troncos caídos.

Cerca de 60 metros separavam-me da casa permitindo-me observar tudo. De repente tudo começou a movimentar-se lá em cima. Escutei então o longamente esperado: Minha Nossa Senhora, minha mulher!” Aos saltos veio ao meu encontro pulando por cima de troncos de árvore caídos numa trilha, que eu não tinha percebido. Os minutos de tormento da espera de que além se manifestasse, pareceram uma eternidade e tiraram-me o ânimo. Cai chorando em seus braços  e não pensei mais em nada a não ser; “Finalment no destino, e em segurança”.

Carregou-me nos braços passando por cima dos troncos de árvore, trilha acima, em direção à casinha. Um bom número de curiosos estava reunido para saudar-me.

Soube então o motivo porque ninguém apareceu para nos dar as boas vindas. Ao  escutarem o barulho do motor desconfiaram que se tratasse de um novo assalto por parte dos revolucionários. A desconfiança aumentou ao escutarem a nossa confusão de gritos. Concluíram que não podia tratar-se de um frete regular, já que a gasolina descera até a parte inferior da colônia e ainda não retornara. Conclusão. Esconder e por em segurança o que era possível e, em meio a esse afã, meu marido reconheceu-me pela voz.

Obviamente a surpresa foi enorme, pois, nesses dias perturbados, ninguém se imaginou a nossa vinda. Para mim foi o dia mais feliz. Jamais o esquecerei. Para minha maior alegria notei duas jovens senhoras no meio do grupo. Sorrindo aproximaram-se de mim e apertaram-me a mão. Tratava das duas valentes “meninas Beuren”, que em companhia de seus jovens maridos, há pouco tinham realizado a viagem de núpcias para a florestas virgem para tomarem posse de suas glebas. A gasolina descarregara  gêneros alimentícios e elas se encontravam aí para abastecer-se do mais necessário. Somos de momento quase dez mulheres (Frauleut) na zona, comentaram elas, conceito que significava muito mais do que as simples palavras espremiam. Estávamos felizes por sabermos umas das outras, embora as distâncias que nos separavam não fossem pequenas.

Depois que os dois casais se despediram com seus alforjes recheados, ainda deu tempo para uma vistoria nas redondezas, antes que escurecesse. Hoje eu era hóspede aqui e deveria apenas olhar. Meu marido conduziu-me como uma criança pela mão para conhecer a simpática casinha.

“Minha intenção foi deixar tudo pronto até os últimos detalhes até a tua chegada, como fora planejado. Como te antecipaste tens que contentar-te com o que tem”. De qualquer forma ambos estávamos contentes porque as coisas tomaram esse rumo. A localização da casinha com a vista sobre o rio e a floresta virgem, era maravilhosa. Não sabia como me maravilhar de como tudo estava tão bem instalado e a arquitetura artística da casa. Tábuas de cedro aplainadas à mão forravam o quarto grande. As guarnições das portas e janelas já estavam colocadas. A porta e as janelas já cortadas, aguardavam sobre a banca de marceneiro feita à mão. Para já estariam prontas.

“Até lá vamos pendurar os velhos sacos nas aberturas durante a noite. Foi a única coisa que os bandidos não levaram”, observou sorrindo meu marido.

Ponchos, roupa de cama e demais roupas o bando levou. Levou-me depois para fora. Ao lado da casa, algumas tábuas apoiadas num gigantesco cepo de árvore formavam um telhado. A cozinha na livre natureza de Deus! O imprescindível panelão preto do feijão de três pés   pendia num arame. O arroz costumava ser cozinhado junto com o feijão. Meu marido aproveitou para encostar os cepos de lenha em brasa para requentar a janta enquanto, de mãos dadas, demos uma volta.

Atrás da casa, subindo a estrada principal subi a encosta. Corre paralela ao longo do rio por todos os 18 quilômetros das terras já medidas até a séde de Porto Novo. Acima da estrada erguia-se a floresta intocada e abaixo dela o mato derrubado e queimado por toda a largura da colônia. Ao redor da nossa casinha a limpeza já feita permitia a livre circulação.

Primeiro caminhamos por toda a largura da nossa colônia. Parecia-me tudo tão enorme a ponto de não parar de repetir a pergunta, se era verdade que tudo isso era nosso.

“Sim querida, tudo é nosso e sobra lugar para nossos filhos e netos”.

Para mim, filha de cidade grande, parecia uma propriedade senhorial do tamanho que somente os cavaleiros tinham acesso na Europa. Um secreto orgulho apoderou-se de mim ao contemplarmos do alto de uma elevação a propriedade. Naquele momento eu não estava em condições quanto trabalho e quanto suor seriam ainda necessários para tornar aquela terra arável.

No dia seguinte eu conheceria o restante. Foi preciso pensar na janta e  no recolhimento para a noite antes que escurecesse, pois, não havia  iluminação. Os bandidos tinham levado  tudo. Fui então informado o que significava o “tudo”.

Mas isso tinha tempo até o dia seguinte. Meu marido não quis estragar a alegria do primeiro reencontro com coisas desagradáveis. O crepúsculo que tomava conta de tudo, guardaria por enquanto o silêncio sobre esses acontecimentos.

Quando voltamos “Eckhard”, o homem de confiança do meu marido, um homem querido e quieto, jovem e extremamente prático e que fizera sua primeira experiência de uma viagem na floresta virgem do Paraguai, acabara de aprontar a janta. Lá fora, no descampado, ao lado do tronco que o Emílio apelidou com a maior seriedade do mundo como “a nossa cozinha”, encontrava-se o primeiro e único móvel: a maciça mesa aprontada por ele, bem perto do que chamou de fogo de cozinha.

Percebia-se o odor de comida e não me faltava o apetite. Sugeri que afastássemos a mesa um pouco dos cepos em brasa, para escapar da fumaça. Neste momento aprendi a primeira lição. O Emílio explicou-me que o mais prático era assim. Em primeiro lugar a mesa tinha a sua iluminação para encontrar mais facilmente a boca e em segundo lugar, a fumaça era o melhor meio para manter as mutucas longe e assim comer com tranquilidade. Dois ou três cepos munidos com tábuas serviam como assentos. O cenário era de um romantismo assustador. Lembrava-me vivamente as nossas escursões nas férias de verão na América, nas quais costumávamos preparar, à maneira rústica dos escoteiros, as nossas refeições. Acontece que  numa situação permanente a coisa era diferente. De qualquer maneira admirei-me que as coisas me parecessem tão naturais e não sentia medo de animais selvagens, como antes na minha imaginação. E como era saboroso o feijão preto servido em pratos de folha, repetidas vezes abastecidos pelo Emílio. E para comemorar o dia ele, na condição de dono de casa, distribuiu para cada um  rolete de linguiça, salva do assalto dos revolucionários.

“Amanhã é dia de fazer pão”, foi a ordem. Onde e como era-me desconhecido. Felizmente a gasolina trouxera suprimentos. Também na minha bagagem encontrava-se o mais indispensável, pois, de roupas e utensílios nada sobrara.

Um leito simpático e macio para passar a noite foi armado sobre um monte de maravalha. Era verão e as noites quentes. Não sentia medo mesmo que  faltassem as portas e janelas, já que me garantiram que não havia tigres e cobras nas redondezas. E para o caso dos casos trouxera um revólver, de momento a única arma de fogo disponível, pois o bando Leonel Rocha carregara tudo que havia em armas, facões e demais utensílios que estavam pregados ou parafusados.

Nada percebi dos tigres selvagens que, apesar de tudo povoavam como fantasmas o meu inconsciente. Em compensação outros habitantes pouco desejados da mata virgem, fizeram-se sentir tanto mais. Falo das minúsculas mosquinhas e mutucas que passam por toda e qualquer fresta ou abertura. A fumaça é o único remédio para afugentá-las. Para ter paz o fiel Eckard acendeu fogueiras em ambos os lados da casa. A fumaça foi o mal menor na situação.


Por um bom tempo ficamos sentados sob o céu limpo e estrelado sobre o qual destacava-se o brilho da “estrela do natal”.  A luminosidade da lua, que não demorou em aparecer,  era tal que se enxergava muito bem sem iluminação. Nunca antes eu percebera tão claramente a beleza de uma noite estrelada e com luar. Quem sabe nunca a iluminação celeste nos caiu tanto em vista como, quando ainda faltava tudo que achávamos óbvio.

Fronteiras de colonização - IX

Continuação do relato de Maria Rohde
Finalmente começou a clarear o dia. Espiei para fora e observei por toda a parte figuras se mexendo e espreguiçando. Com o sinistro da noite foram-se também os fantasmas assustadores da noite. Quando clareou o dia os soldados vinham voltando do arroio. Lavados e penteados inspiravam maior confiança. Pelo que o pequeno retalho de céu visível na clareira indicava, o dia prometia ser bonito. Sem o percebermos, havíamos avançado um bom trecho para dentro da floresta virgem. Na época, as estradas que cruzavam a floresta eram novas e muito estreita. Exigiam toda a atenção para não tirar a atenção do que vinha oela frente e desviar raízes de árvores e buracos e assim contrabalançar os solavancos. Tomado ao pé da letra, “de tanta árvore não percebemos  a floresta”. De mais a mais, nosso ânimo não estava lá muito interessado em observações da natureza.

A continuação da viagem deixou-nos numa longa expetativa. Mas com aparecimento do sol os ânimos se reavivaram. Depois de cavalgar a noite toda, acabara de chegar um agrimensor vindo de Porto Feliz. Dele soubemos pelo menos algumas informações. Não estava a par de detalhes de Porto Novo, mas conhecia meu marido e era de opinião que, assim  como os outros moradores, deve ter passado por maus bocados. Falou em saques. Mas todos escaparam com vida. Segundo ele, depois do assalto a Porto Novo, os revolucionários fugiram para Barracão. De momento o perigo tinha passado e se quiséssemos seguir viagem, não convinha esperar, ou esperar em Barril a chegada dos caminhões que voltavam com  militares. Ainda conforme o informante, se a viagem transcorresse normalmente, alcançaríamos “a tempo” o local da travessia. Chegados lá era preciso esperar os caminhões que vinha do lado oposto, para que  passassem por nós, utilizando um pequeno desvio no mato.  Em hipótese nenhuma continuar a viagem, senão “estão todos ralados”.

Tudo isso eu entendi de verdade quando apertados no caminhão ele forçava lentamente a passagem pela estrada na floresta. Enrolamos a lona para enxergar e ouvir melhor. Já que a luz do sol não penetrava pelas copas das árvores, reinava permanentemente  penumbra. A estrada era assustadoramente estreita. De ambos os lados, galhos de árvore e arbustos castigavam os rostos. O traçado das estradas pela floresta, segue geralmente pelo alto das elevações, para evitar as muitas subidas e descidas. Com isso ladeiam muitas vezes declives e barrancos assustadores, enquanto do outro lado sobe a encosta. Nessas passagens escutava-se o eco vindo de quatro a cinco direções, parecendo meia dúzia de caminhões de carga vindo da direção oposta, para encontrar-nos antes da chegada ao ponto da travessia, causando apreensão e expectativa. Uma ultrapassagem num local desses era algo impensável.

A firma Klufke que na época cuidava do transporte para Porto Feliz, mantinha uma programação das viaturas que iam e vinham. Mas nós éramos novatos e estávamos apenas informados sobre aquilo que o agrimensor nos falara. Como eco do motor de um veículo faz perceber com mais nitidez a aproximação de um outro caminhão, paramos para discutir o que fazer. Mas quando o ruído cessou nos demos conta de que fora eco do nosso motor. Aliviados continuamos a viagem e chegamos no local do desvio, propositadamente construído junto a um idílico arroio. Nas circunstâncias da época fazia o papel de uma verdadeira estação de espera, onde os caminhões que vinham e iam, tinham condições de cruzarem uns pelos outros.

Mais tarde quando o tráfego de veículos se intensificou, foi preciso abrir mais clareiras na floresta para oferecer mais locais de ultrapassagem, mas as viagens continuaram tendo suas dificuldades. Quando o encontro não se dava próximo a um desses locais não restava outra saída a não ser o veículo  com o trecho mais favorável atrás de si, dar um ré. Em muitos casos a distância entre dois locais de ultrapassagem era considerável. Por sorte a consciência de camaradagem na floresta era bem grande e a ajuda mútua algo evidente. Em ocasiões em que um colega de estrada enfrentava dificuldades, podia contar com certeza com a colaboração dos demais.

Aguardávamos a chegada dos caminhões que vinha do lado contrário. Não demoraram. Relaxamos junto ao arroio. Aproveitamos a ocasião para nos lavar e fazer a higiene e recuperar o que não fora possível no acampamento dos militares. Não passamos fome porque provisões havia suficientes, já que o apetite se fora com  as incertezas por que passamos.

Os três caminhões que pararam em intervalos e depois seguiram viagem, estavam lotados com militares. O motorista alemão de um deles assegurou-nos que poderíamos viajar sem problema até o rio Uruguai; que a ordem fora restabelecida; que o grosso dos militares estava voltando; que ficara apenas um destacamento encarregado da vigilância. Ele assegurou que de agora em diante a defesa ficava por conta dos moradores; que eles tinham criado um sistema de autodefesa e estavam em alerta. O mesmo acontecia em Porto Novo e que naquela manhã uma gasolina descera até Porto Novo, para levar gêneros alimentícios para os moradores na floresta. Essas breves informações serviram de grande alívio e consegui superar um tanto o peso que sentia na alma.

Enquanto os pensamentos estão ocupados demais com um futuro preocupante, a gente se esquece do que se passa em volta e as coisas mais evidentes recuam para um segundo plano. Com os ânimos refeitos seguimos por floresta e mais floresta. Aos poucos a estrada começou a descer, bastante íngreme em alguns lugares.  Cada passo alguma cutia ou lebre cruzava pela nossa frente. Observamos  bem de perto dois veados e um tatú parou debaixo das rodas – coitado do animalzinho. Mas de tigres e outras feras, por enquanto, nada. Encontramos os animais quase sempre perto de córregos ou arroios, a procura do líquido  benfazejo  no calor de dezembro.

Não percebemos nada do sol ardente de dezembro. Bem no final da tarde começamos uma descida mais íngreme e passamos pela clareira por onde penetraram os primeiros raios do sol. Mais alguns quilômetros para alcançar o rio. Depois de mais algumas curvas, fomos saudados pela forte claridade que não tínhamos visto o dia todo. Mais alguns metros e o caminhão parou. Diante de nós espraiava-se o Uruguai.

Graças a Deus! Finalmente chegamos! Ao descermos do caminhão ouviram-se de todas as gargantas profundos suspiros de alívio. O motorista gritou para o barqueiro na outra margem “vem-nos atravessar!” Estupefatos contemplamos o espetáculo na nossa frente.  Os últimos raios do sol perto do horizonte rebrilhavam na superfície esverdeada do rio. Não demorou o vermelho e o ouro mergulharam a paisagem toda num púrpura real. Tudo passou para uma mescla de verde e ouro. Nosso olhar não se cansava. Diante de nós o majestoso caudal, refletindo em suas águas tranquilas ambas as margens. Lá na encosta da outra margem a sede da colônia de Porto Feliz. Identificamos nitidamente as simpáticas moradias com seus estilos de construção, que faziam uma boa impressão em nós. A clareira na floresta era bem ampla e a nossa estupefação não tinha limites.

Neste meio tempo encostou a barca. Contra toda a nossa expectativa, a travessia aconteceu sem qualquer incidente. No meio do caudal, de onde a vista alcançava mais longe, fomos dominados pela sensação de uma paisagem de tamanho impressionante. Tínhamos a impressão de nos encontrarmos frente a uma natureza de dimensões telúricas, oferecendo terra e espaço suficiente no qual as futuras gerações encontrariam condições para crescer e multiplicar-se ilimitadamente.

Envoltos no magnífico vermelho púrpura do entardecer, que prenunciava um esplendoroso dia seguinte, estacionamos em frente ao hotel. Quartos convidativos e camas limpas foram-nos oferecidos e uma robusto café da tarde acenava, apesar dos pedidos de desculpas, que estava tudo vazio nas vizinhanças e todas as mercadorias vendidas, desde que as tropas ocuparam o lugar. Não se esqueça também que  o assalto dos revolucionários deixara pouca coisas para trás. De  qualquer forma fomos bem servidos. Certamente muita coisa fora escondida em locais secretos. O hoteleiro informou-nos que a única gasolina ( barco a motor) disponível descera o rio para Porto Novo junto mantimentos. O transporte anterior fora interceptado e pilhado pelos revolucionários. Deixou claro também que nos preparássemos para alguns dias de repouso, visto que a gasolina dificilmente retornaria antes de dois ou três dias. A informação em absoluto não nos agradou, pois, exaustos da viagem,  pretendíamos chegar ao destino o mais rápido possível.

Pus-me a caminho até a casa de comércio de Klufke para saber o que poderia ser feito. No caminho tive ocasião de tomar contato mais de perto com a simpática povoação. Os  dias eram compridos e, no crepúsculo,  viam-se por toda a parte  as pessoas sentadas na frente das casas. Cruzei por muitos pedestres que, pelo que pareciam fazer entender, foram buscar notícias e correio, quando perceberam a  chegada do nosso caminhão. As simpáticas casinhas com seus jardins com flores na frente, as cercas cuidadas, os caminhos limpos, tudo isso não correspondia propriamente à imaginação que eu tinha da floresta virgem. Para onde eu me dirigia escutava o melhor alemão erudito, coisa rara em outra parte na colônia. As pessoas com quem conversei, evidentemente não eram colonos.

Soube que uma parte dos moradores da cidade eram alemães, vindos da Europa depois da Guerra Mundial. Fixaram-se na colônia, mas nem sempre foram bem sucedidos. Uma parte deles voltou mais tarde para a Alemanha ou mudaram-se para as  cidades. Faltava-lhes perseverança para acostumar-se com a vida de sitiantes ou a sua formação recomendava outra atividade para ganhar a vida.

Na casa de comércio de Waldemar Klufke as pessoas admiravam-se muito pelo fato de que nós nos tínhamos arriscado  a viajar em tempos tão perturbados. Fiquei sabendo também de detalhes sobre o assalto a Porto Feliz. O  sr. Klufke percebeu logo que a nossa vontade era de descer, o mais rápido possível o rio, até Porto Novo. Ele fez o melhor que pôde e empenhou-se para conseguir ocasião para viajar na manhã seguinte, já que havia também carga para mandar.

Cumpriu a palavra. Ainda durante a noite um velho motor foi posto a funcionar e instalado numa canoa usada para transporte de emergência no Uruguai. Avisou que esivéssemos de manhã cedo a postos no porto, já que a viagem com a água baixa era lenta e consumiria a maior parte do dia. Cansados em extremo dormimos naquela noite como  marmotas. A natureza reclamava seus direitos depois de uma viagem cheia de peripécias.


De manhã cedo fomos tirados da cama. O café estava na mesa, os leitões dos Timm e meus gatinhos servidos. Portanto, avante. O caminhão levou a mudança até o rio, onde a canoa preparada estava à espera. A tripulação consistia de um antigo marinheiro marítimo sabia lidar com o motor reumático. Um caboclo serviu de ajudante e timoneiro. Sem demora tudo estava à bordo. O nosso “capitão” sabia muito bem como garantir o equilíbrio. Estávamos prontos para a partida e ansiosos, acomodados em caixas, sacos e pelegos. Cuidamos para sentirmo-nos tão à vontade quanto isto era possível para a longa viagem pela água,. Um dia de céu amigo de dezembro parecia sorrir sobre as nossas cabeças, no momento em que a nossa canoa  começou a descer em direção a Porto Novo, nossa futura querência.