O cenário histórico
As
iniciativas associativas no sul do Brasil foram inspiradas nas organizações
associativas católicas da Alemanha, Suíça e Áustria, como resposta às
circunstâncias sociais, políticas econômicas e religiosas hostis à Igreja, no
final do século XVIII. Foram criadas para fazer frente às correntes filosóficas
inovadoras e revolucionárias do iluminismo, do enciclopedismo, do racionalismo
e outras mais que tomavam conta da Europa culta da época e, partir das camadas
dirigentes instruídas, difundiram-se pela população em geral. A Revolução
Francesa, alimentada pelo apelo popular
por liberdade, igualdade e fraternidade. desferira o golpe de morte na
antiga ordem do Estado Absoluto. Da mesma forma acertara um golpe profundo à
Igreja. Seus bens foram expropriados, religiosos e sacerdotes sofreram
perseguições, e não poucos pagaram com a vida
na guilhotina sua fidelidade à Igreja.
Terminada
a Revolução propriamente dita, entrou em cena Napoleão. Suas guerras de
conquista prolongaram-se durante mais de 15 anos pela Europa inteira. Estados
foram varridos do mapa, enquanto outros foram divididos ou submetidos a uma
tutela que, de fato, os reduziu a uma submissão em que arbitrariedade do grande
corso ditava as regras. Neste cenário, a movimentação ininterrupta e tropas,
transformaram a Europa Central e do Norte, num vasto e permanente campo de
batalha. A situação resultou especialmente complicada na região do Reno. O
constante vaivém de exércitos fez da região uma terra de ninguém. As
consequências não podiam ter sido piores, provocando uma desorganização
generalizada das estruturas políticas, sociais, econômicas e eclesiásticas. A
Igreja, privada dos seus recursos organizacionais mais elementares, tanto
hierárquicos quanto materiais, chegara a um nível crítico. Ameaçava-a um
colapso total sem que os bispos, o clero e os fiéis encontrassem uma forma eficaz
de agir e, pior ainda, sem um apoio com que pudessem contar. Os ideários das
novas e revolucionárias correntes do pensamento espalhavam-se cada vez mais no
meio do povo, estigmatizando a Igreja como uma instituição retrógrada, obsoleta
e contrária aos novos tempos. O fervor e
a prática da religião sofreram uma diminuição assustadora, ao mesmo tempo em
que os candidatos ao sacerdócio e
]
vida religiosa escasseavam perigosamente, e sua formação era seriamente afetada
pelas novas ideias. A situação foi pintada com cores carregadas na revista
“Katholische Bewegung in Deutschand” -
“Movimento católico na Alemanha”, em 1869:
Vivemos num tempo em que,
diante dos fatos, as teorias nada nos têm a dizer. Não existe formação sem
educação sem moral e sem religião. Os
professores ensinam no deserto, porque uma mentalidade destituída de
inteligência prega que nas escolas não se deve ensinar religião. De dez anos
para cá o ensino é estéril. A educação é o fundamento para toda e qualquer
religião. A juventude está entregue ao ócio mais funesto. Não tem nenhuma noção
do que é divino. Os conceitos de justiça e injustiça são alheiros e como
consequência o embrutecimento e a barbárie nos costumes geraram um povo
selvagem. Se cotejarmos o ensino como está hoje com o que deveria ser, não se
pode deixar de deplorar a sorte que espera as gerações futuras.
O espírito do mal trazido
das profundezas da Revolução Francesa e pelos iluministas, alimentado e
difundido pela filosofia da época, tomou assustadoramente conta de todos os
cantões alemães. Tempestades
assustadoras irrompem com violência. Todas as instituições, dioceses, asilos e
conventos, que durante séculos tinham sido a bênção do povo, atuaram pelo bem
estar da Igreja e serviram de amparo aos pobres, foram extintos, destruídos e
reduzidos a escombros. Foi um tempo de perplexidades. Tudo parecia
desarticulado. Em parte alguma se encontrava qualquer baliza que pudesse
oferecer segurança. Em muitos a fé se apagara ou estava abalada e os costumes
deteriorados. Do coração de muitos desaparecera a fidelidade e o compromisso
para com a Igreja. Profetizava-se, enquanto se regozijava que, sem demora, as
ruínas dos conventos sepultariam o altar e o papado. (Katholische Bewegung in
Deutschland, 1869, p. 28)
O
momento histórico a que o texto se refere foi ano de 1803. Os novos governantes
instalados nos territórios alemães interferiam profundamente na vida e nos
negócios da Igreja. Seus alvos preferidos eram três questões de fundamental
importância para a Igreja. Primeiro, tratavam de diminuir ao máximo a
autoridade da hierarquia, subtraindo aos bispos a competência de prover os
postos eclesiásticos; segundo, desta forma a relação do clero com os bispos
estava comprometida: terceiro, a formação do clero sofreu uma forte influência
do laicismo em moda na época.
Em meio a esse cenário começou a
esboçar-se a reação da Igreja alemã, tendo como porta-vozes uma série de bispos
em dioceses de peso. O bispo de Würzburg Georg Karl von Fechenbach sugeriu um
entendimento entre os governantes e o
papa, via concordata. Carl von Dalberg, bispo de Regensburg, propôs que a
intermediação com o papa fosse feita pelo imperador da Áustria. As negociações
nesse sentido envolveram ainda os bispos de Fulda, Eickstädt e Speyer. Não
demorou para ficar evidente que a extensão e a gravidade da situação só se
resolveria por meio de uma ação conjunta dos bispos, como ficou registrado na
publicação já citada: ( ... ) já que um desfecho favorável para a Igreja alemã
só seria possível somando a participação e o empenho de todos os bispos
alemães”.
O plano que visava a
sensibilizar os governantes para assinar uma concordata com Roma, intermediada
pelo imperador da Áustria não passou do nível das intenções.
Para complementar aquilo que se
acaba de registrar, merece menção ainda o esforço individual do bispo de
Würzburg, em negociações com o chanceler Dalberg. Em correspondência mantida
com aquela autoridade, obteve a promessa de que o direito dos bispos seria
assegurado na concordata a ser negociada com o núncio apostólico.
A frustração que tomou conta dos
bispos alemães depois do fracasso das negociações ficou registrada numa carta
pessimista do bispo de Speyer. Nela ressaltou os pontos principais que
motivaram a sua sensação de não vislumbrar uma saída para a situação. Depois de
analisar os esforços feitos em favor de uma solução aceitável para a Igreja
alemã, apontou para as razões que inviabilizaram as negociações. O primeiro
obstáculo encontrado foi o desinteresse do imperador da Áustria em chamar a si
a intermediação nas negociações de uma concordata. Mais desalentador deve ter
sido o conformismo do papa diante da situação, ao afirmar que só Deus poderia
ajudar. A tudo isso somava-se a sombria perspectiva da falta de candidatos ao
sacerdócio para o futuro.
O bispo manifestou ainda a
suspeita de que Deus tivesse em mente a instauração de uma ordem mundial
radicalmente nova, e concluiu suas considerações:
( ... ) os
regentes de hoje junto com seus auxiliares são de uma cegueira e ignorância tão
flagrante a ponto de eles mesmos contribuírem para a sua própria ruína. Têm
consciência que todos balançam e eles próprios contribuem para acelerar o
colapso, ao rejeitarem balizas seguras. [1]
No ano de 1810, Wiedrich von
Waldorf, bispo de Speyer deixou registrado um depoimento carregado de
prognósticos sombrios.
Não destino
nada para as instituições piedosas. O Deus todo-poderoso sabe que eu me tinha
decidido legar para fins bons e piedosos, todos os meus bens pessoais,
excluídas as joias e aqueles que possuo em comum com a família. Como, porém,
nos tempos presentes da ilustração nada mais é sagrado e tudo o que é destinado
para a glória de Deus, para o altar e o serviço do altar, não está seguro
perante a destruição, o roubo e a apropriação sem escrúpulos, não passaria de
uma insensatez, entregar o mínimo que fosse para tais fins.[2]
Em meio a esse cenário
inteiramente hostil à religião e à Igreja Católica, entrou em cena o bispo
auxiliar de Würzburg entre 1801 e 1817. Foi o maior conhecedor das circunstâncias históricas da época e um homem com total
devotamento à causa católica. Estudara a fundo as correntes do pensamento
hostis à Igreja. Acompanhava sistematicamente o pensamento laico veiculado por
meio de revistas e periódicos que o levavam até as camadas cultas e, de forma
indireta, contaminava o povo em geral. A constatação dessa realidade
despertou-lhe a ideia de combater o mal com as suas próprias armas. Propôs uma
organização de leigos católicos dotados de um alto nível de formação. Caberia a
eles analisar, discutir e avaliar o pensamento contrário à Igreja, contrapor-lhe
a doutrina e o pensamento católico e fazer circular as conclusões numa
publicação periódica. Em lugar de enfrentar o problema com manifestações de
desânimo e desespero ou pela via política e diplomática da concordata, o
caminho proposto pelo bispo foi o mesmo utilizado pelos adversários e inimigos
da Igreja: o embate, o confronto de ideias. Assistimos aqui a gênese de um
embrião de ação e estratégia da Igreja que foi assumindo uma importância cada
vez mais decisiva, durante o século XIX e a primeira metade do século XX.
Ideias, pensamentos, filosofias, cosmovisões, requerem análise, discussão,
cotejo. De pouco adianta combatê-los sem
um mínimo de conhecimento de causa. É preciso enfrentar a situação no mesmo nível
munido do conhecimento do ponto de vista
e das intenções dos adversários. O caminho mais curto e mais seguro
consiste em somar os esforços em associações formadas por elites intelectuais,
em condições de identificar e interpretar corretamente os sinais dos tempos.
Na época, início do século XIX,
o bispo auxiliar de Speyer confiou a um grupo de elite intelectual a ser
organizado, uma série de atribuições específicas, como missão a ser cumprida.
Como já apareceu em outras manifestações citadas mais acima, havia uma grande
preocupação para com o clero jovem. As instituições em que recebia sua formação, ofereciam sérios
riscos de contaminação pela atmosfera do pensamento laico. Urgia, pois,
garantir a ortodoxia doutrinária e zelar
pela disciplina eclesiástica. E, para começar imediatamente com o movimento, o
bispo propôs que se conquistasse para a causa o “Jornal de Literatura”,
destinado aos professores.
Que houve iniciativas concretas
para reunir uma elite pensante, tem a sua confirmação num esboço de organização
constantes entre os escritos do bispo Zirkel:
Para salvar a
religião e a Igreja, é preciso fundar uma associação para homens dotados de
pureza
O mesmo bispo continuou
reforçando a urgência de que sua proposta fosse concretizada. Segundo ele,
circulava um livro que era mais nocivo do que aquele de Kant que versa sobre a
religião e a Razão. Não identificou a respectiva obra.
Um segundo problema,
representado pelo avanço da influência protestante, afligia a Igreja e as lideranças católicas em
geral. A nova ordem das coisas permitia a supremacia protestante nos governos e
na administração pública. A sua histórica hostilidade para com a religião
católica foi-se acentuando na mesma proporção em que crescia a sua influência
no poder e evidentemente na administração pública. Em meio a esse cenário cada
vez mais desfavorável e francamente hostil à Igreja, o catolicismo levava o
estigma do anacronismo. Os bispos e o clero não passavam de agentes do atraso e
o povo católico, uma massa de ignorantes e supersticiosos.
O Gabinete (Kabinett) dos
príncipes mostrava-se flagrantemente hostil à Igreja e ao catolicismo. Várias
razões subjaziam a essa atitude. Entre outras sobressaíam as seguintes.
A existência de uma hierarquia
paralela forte e influente significava um contrapeso incômodo para os governos
e o poder laico em geral. Além da concorrência no nível de poder e influência,
a razão submissa à fé era tida como um poderoso obstáculo para a evolução do
homem, da cultura e do saber, a grande ordem que ditava os rumos da história na
época.
O bispo auxiliar de Speyer
demorou-se ainda mais nas suas análises daquele período histórico tão hostil à
Igreja. Os estragos feitos na França com a Revolução e a sua luta aberta contra
a religião, o clero e as ordens e congregações religiosas estendera-se, de
forma indireta, mas não menos perniciosa,
para o restante da Europa central e do norte. Os efeitos foram
especialmente funestos com a intromissão
na autonomia da Igreja e na laicização da escola e da educação. Uma outra área
muito sensível sofreu as investidas das doutrinas e do pensamento da época.
Intrometeram-se ostensiva ou sorrateiramente nos estabelecimentos de ensino de
formação religiosa, reduzindo a doutrina a cristã a um mero deísmo bíblico. A
inconsequência e a superficialidade tomou conta das escolas de teologia. O
pretexto de adaptar-se aos tempos modernos
e inserir-se no mundo novo para, dessa forma, simular uma roupagem atualizada
ao catolicismo, resultou em superficialidade e ausência de solidez doutrinária e, em não poucos casos,
relaxamento da disciplina eclesiástica. Resultou daí um cenário em extremo
complicado que levou ao desânimo e ao quase desespero os bispos, o clero e o
próprio povo católico. Sem balizas confiáveis e referências seguras tateava-se sem esperança, num mundo que relegara ao
passado a segurança da fé, com apelo à esperança e a fé num mundo conturbado e
sem rumo.
A grande questão que se colocava
resumia-se numa pergunta curta, mas óbvia: O que fazer e como fazer? A resposta
foi dada por uma personalidade do porte do
bispo auxiliar de Speyer Wilderich von Waldesdorf. É preciso oferecer com
urgência ao clero uma sólida formação teológica e filosófica. Em segundo
lugar, ao povo, o autêntico espírito católico e, em terceiro
lugar, devolver a verdadeira identidade
divina ao Deus da Bíblia. Essas tarefas e outras mais que se fazem
indispensáveis só serão viáveis por meio de um esforço conjugado e
comprometido.
Unidos em
espírito é preciso haver também uma união externa, a fim de perseguir o
objetivo de unir as forças. Nossa meta não pode ser outra a não ser a verdade
católica, a guarda do sagrado fundamento da fé e a defesa da mesma dos falsos
irmãos e dos ignorantes que a atacam sem o devido conhecimento. A finalidade da
nossa associação literária consiste na preservação, fortalecimento e defesa da
religião católica romana. O nosso objetivo volta-se para a formação e o fortalecimento do clero
jovem face aos erros do tempo e assim incrementar e apoiar fortemente o “Jornal
Literário Felder que circula na Baviera.
[3]
Como se pode concluir, o início
do século XIX encontrou a Europa num clima de fim de época. As instituições
tanto civis quanto eclesiásticas, estavam sendo questionadas pela base. O
enciclopedismo, o iluminismo e outras correntes
renovadoras haviam colocado as velhas instituições na defensiva. Não só
as forçaram a defender-se em condições de inferioridade, como também as minaram
sistematicamente de dentro para fora. A laicização da escola de modo especial
subtraiu à Igreja um dos instrumentos
mais eficazes para a realimentação doutrinária e disciplinar do povo. Setores
importantes, preocupados em encontrar uma fórmula eficaz no enfrentamento com o cenário inusitado,
cobrou um preço muito alto. Valendo-se da tática certa de conhecer a fundo as
armas utilizadas pelo inimigo para, dessa forma, lidar com ele com mais
probabilidade de êxito, demonstrou-se uma faca de dois gumes. Facilitou a
penetração das novas ideias nas instituições de formação do clero. Deturpou em
não poucos casos a própria concepção teológica e filosófica das novas gerações
de sacerdotes. O ideário defendido com o pressuposto da liberdade de pensamento
minou as relações hierárquicas em todos as instâncias, começando pelos
fundamentos doutrinários, passando pela disciplina eclesiástica para terminar
na obediência devida aos superiores hierárquicos. Ao mesmo tempo, os
governantes tradicionais foram
substituídos por uma geração afinada com a nova ordem e a nova cosmovisão.
Hostis ou indiferentes à Igreja,
acompanhavam com indisfarçada satisfação o processo de desmonte da sua
estrutura e, de modo especial, o corromper da base doutrinária e a disciplina
que resistira a séculos de investidas. A tudo isso somaram-se as guerras
napoleônicas e suas consequências como
complicadores porque resultaram na desorganização política, econômica e
social da Europa.