Chegara
o momento que eu queria ser informada como se dera o assalto dos
revolucionários.
“As
coisas aconteceram com muita simplicidade e muita rapidez. Não houve prelúdio”,
começou o Emílio. Aqui no mato não se enxerga nem se ouve nada. O Leonel cuidou
para que ninguém nos alertasse. Pelo que parece fez a travessia com seus homens
no Pepery e entrou na colônia da Sociedade União Popular. Como lá não se
encontram colonos, apenas caboclos e mateiros de procedência duvidosa, morando
em ranchos miseráveis, a marcha não encontrou problemas. Nas colônias e
chácaras em volta da futura sede de Porto Novo, moravam alguns colonos. Também
no barranco do rio e nas picadas mais próximas alguns lotes estavam ocupadas.
Cada um dos colonos viveu à sua maneira a surpresa. Ainda antes do clarear do
dia os primeiros foram surpreendidos com “mãos ao alto” venham conosco! Não havia
lugar para um “quando” e “para onde”. As armas ameaçadoras falavam por si. E o
que um indivíduo isolado poderia fazer? Portanto, para frente, os encarregados
da observação movimentava-se na frente, à direita e à esquerda da estrada
principal. Não teria sido tão ruim o fato de o bando esfomeado que passara
pelos matos, se ter adonado de tudo que encontrava em termos de alimento. Além
disso Leonel Rocha demonstrara uma boa dose de civilidade. Explicou que se via
forçado a aprisionar as pessoas para evitar uma traição ou um comunicado de sua
marcha a Porto Feliz.
A
nós eles surpreenderam de uma maneira muito safada, continuou o Emilio,
enquanto meu marido sorria sentado do meu lado, sem dizer uma palavra. “Rhode
voltara na noite anterior de uma viagem para fora, morto de cansado. Comprara
em Neu Württember grande quantidade de provisões, entre gêneros alimentícios e
utensílios. Acondicionamos uma boa parte da carga na construção nova. O melhor
de tudo foi a excelente linguiça e o pão que nos prometia não pouca alegria
para a manhã seguinte. Fazia muito tempo que não víamos esse luxo. Resumindo,
continuou o Emílio, naquela noite subimos, mortos de cansaço com o trabalho e
as peripécias, a escada que levava até o sótão, já que em baixo faltava ainda o
assoalho. Lá em cima estavam acomodados as nossas malas, as roupas e todos os
nossos pertences. Não dispúnhamos de cofres de ferro, por isso éramos obrigados
a levar conosco durante o dia, relógios, dinheiro e demais artigos de valor, ou
os escondíamos em algum lugar. Cachorro
para vigiar a casa não havia. Na época um bom cão de guarda era uma
raridade cara. Jogamo-nos nos colchões sobre o assoalho. Dinheiro, relógio e
revólver sob o travesseiro, as roupas penduradas em pregos nas tabuinhas do
telhado. Dormíamos o sono dos justos quando, ao amanhecer, ainda escuro, uma
cabeça subiu pelo alçapão e acima dela emergiu o cano de um revólver. Uma voz
grossa arrancou-nos do sono. Nanu, o que vinha a ser isso? E, antes de enxergar
bem e antes de entender o que estava acontecendo, estávamos presos. Fomos
obrigados a nos vestir com diante das armas apontadas e descer quietinhos como
um cordeiro os degraus da escada. Rohde fez um esforço desesperado para levar
escondido o relógio e a carteira com o dinheiro, com o pretexto de calçar as
botas. Não lhe foi permitido. Os senhores tinham pressa. Mais acima na estrada
encontravam-se reunidos e vigiados, como prisioneiros, os outros moradores.
Nem
a idade o bando respeitou. Enxergamos entre os prisioneiros o idoso senhor
Flach com sua barba branca – uma das nossas figuras de pioneiro mais marcantes
e comprometidas. Em companhia dos demais já vencera um bom trecho de estrada.
Por meio de olhares entendemo-nos no sentido de conservar a calma e
permanecermos solidários, no que desse ou viesse. Cada um de nós recebeu a sua
tarefa. Coube-nos seguir com a mula, a metralhadora e a munição, para render os
outros. Como todos os outros estávamos precariamente vestidos e calçando
chinelos, A ordem foi continuar pela trilha irregular no meio do mato. Durante
a marcha acresceram mais alguns
prisioneiros.
Rohde
conseguiu falar pessoalmente com Leonel, o comandante dos revolucionários.
Preocupava-o a propriedade que ficara para trás e a casa desprotegida. Leonel
parecia sensato e prometeu liberar todos os prisioneiros, logo que atingissem o
Catres e tivessem uma boa dianteira. Assegurou que não eram nem salteadores nem
praticavam pilhagens e seus homens eram disciplinados. O receio pela
propriedade era supérfluo. Que ele não tolerava roubo. E pelo visto, quis
demonstrar isso na prática pois, chegados ao Macuco, na propriedade do sr.
Mayntzhusen, este aproximou-se de nós, também como prisioneiro, e queixou-se ao
Rohde, que a vanguarda fizera serviço pesado na sua propriedade. Até seu
precioso instrumento de medição tinham levado, sem o qual não tinha como
continuar seu trabalho. Os dois levaram suas preocupações a Leonel. Este ficou
furioso ao saber que seus homens “tão confiáveis”, como ele afirmara, tinham
cometido tamanho ato de indisciplina. Imediatamente mandou proceder a uma
sindicância e ameaçou fuzilar na nossa
presença aquele com quem o roube fosse encontrado. Nós naturalmente
protestamos, pois ninguém de nós estava a fim de futuramente se expor à
vingança dessa gentalha. Além disso não queríamos justiça sumária, mas apenas
de volta os objetos roubados do sr. Mayntzhusen. Foram vasculhados todos os
sacos e não deu outra. Apareceram além do medidor, um aparelho fotográfico e outros objetos.
Os
objetos encontrados foram devolvidos para demonstrar que Leonel agia sempre com
correção. Os responsáveis passaram por uma violenta descompostura. Estávamos
satisfeitos pela descoberta e a devolução dos objetos e a marcha seguiu em
direção a Catres. Lá nos liberaram e voltamos para casa, porque entre Catres e
Porto Feliz não havia moradores que pudessem denunciar a passagem do bando.
Para nós o grosso veio no fim.
Emilio
olhou para meu marido como que perguntando se contaria o resto ainda naquela
noite.
E
“o grosso”? perguntei ansiosa. Emílio não tinha mais nada a dizer. “E o grosso?
, insisti.
“Amanhã,
tu mesma vais verificar”, concluiu meu
marido. “Pois ao voltarmos da longa caminhada que me rendeu as bolhas mais
incômodas, observamos a situação em casa. Enquanto ajudamos o Mayntzhusen a
salvar as suas coisas, a retaguarda fez o diabo em nossa casa. Simplesmente não
sobrou nada: dinheiro, relógio, roupas, cobertas, ponchos, armas, utensílios
além de todo estoque de mantimentos destinados aos colonos. Restou-nos o que
tínhamos no corpo”.
“Mais
alguma coisa”, interrompeu o Emílio. “Na minha mala ficou um pouco de papel em
branco. Os sujeitos não souberam o que fazer com ele. Do resto não sobrou nada.
Como lembrança deixaram para trás um poncho todo puído e alguns sacos velhos e
um facão imprestável. Em compensação levaram uma caixa inteira deles,
destinados para a venda aos colonos.
Escutei
tudo com toda a frieza possível, mas internamente agradeci a Deus, que apenas
coisas foram perdidas e não vidas humanas. Nem consegui lamentar o prejuízo. Só
pensava nas semanas de incerteza e angústia que precederam. Tudo se recupera a
não ser vidas humanas. Considerei-me feliz, pois, ao meu lado estava aquele por
quem suportara todas essas preocupações. O restante recuperaríamos depois.
Muitos
que passaram por essas peripécias, intranquilidades e perturbações, tiveram a
mesma sensação que eu. Foi um excelente
aprendizado para nós. Já não nos deixaremos apanhar pela surpresa. Unindo as
forças era possível nos defendermos. Algumas pessoas mais temerosas achavam melhor adiar a colonização na florestas virgem para
tempos mais tranquilos. A grande maioria, entretanto, depois desse duro
aprendizado, decidiu defender o patrimônio recém adquirido. No mesmo dia foi
decidida a criação da auto defesa e imediatamente posta em prática. Disso tive
ocasião de certificar-me já naquela primeira noite. O Emílio observou a posição
da lua – na falta do relógio roubado – e pôs-se a caminho para fazer companhia
aos outros nas margens do arroio Victoria. Em todas as localidades e em todos
os cursos que permitiam a passagem de intrusos, os colonos montavam guarda em
regime de revezamento, naquelas semanas tumultuadas. Sendo assim pudemos
descansar com a certeza de estarmos em
segurança.