Fronteiras de colonização - XI

Chegara o momento que eu queria ser informada como se dera o assalto dos revolucionários.
“As coisas aconteceram com muita simplicidade e muita rapidez. Não houve prelúdio”, começou o Emílio. Aqui no mato não se enxerga nem se ouve nada. O Leonel cuidou para que ninguém nos alertasse. Pelo que parece fez a travessia com seus homens no Pepery e entrou na colônia da Sociedade União Popular. Como lá não se encontram colonos, apenas caboclos e mateiros de procedência duvidosa, morando em ranchos miseráveis, a marcha não encontrou problemas. Nas colônias e chácaras em volta da futura sede de Porto Novo, moravam alguns colonos. Também no barranco do rio e nas picadas mais próximas alguns lotes estavam ocupadas. Cada um dos colonos viveu à sua maneira a surpresa. Ainda antes do clarear do dia os primeiros foram  surpreendidos  com “mãos ao alto” venham conosco! Não havia lugar para um “quando” e “para onde”. As armas ameaçadoras falavam por si. E o que um indivíduo isolado poderia fazer? Portanto, para frente, os encarregados da observação movimentava-se na frente, à direita e à esquerda da estrada principal. Não teria sido tão ruim o fato de o bando esfomeado que passara pelos matos, se ter adonado de tudo que encontrava em termos de alimento. Além disso Leonel Rocha demonstrara uma boa dose de civilidade. Explicou que se via forçado a aprisionar as pessoas para evitar uma traição ou um comunicado de sua marcha a Porto Feliz.

A nós eles surpreenderam de uma maneira muito safada, continuou o Emilio, enquanto meu marido sorria sentado do meu lado, sem dizer uma palavra. “Rhode voltara na noite anterior de uma viagem para fora, morto de cansado. Comprara em Neu Württember grande quantidade de provisões, entre gêneros alimentícios e utensílios. Acondicionamos uma boa parte da carga na construção nova. O melhor de tudo foi a excelente linguiça e o pão que nos prometia não pouca alegria para a manhã seguinte. Fazia muito tempo que não víamos esse luxo. Resumindo, continuou o Emílio, naquela noite subimos, mortos de cansaço com o trabalho e as peripécias, a escada que levava até o sótão, já que em baixo faltava ainda o assoalho. Lá em cima estavam acomodados as nossas malas, as roupas e todos os nossos pertences. Não dispúnhamos de cofres de ferro, por isso éramos obrigados a levar conosco durante o dia, relógios, dinheiro e demais artigos de valor, ou os escondíamos em algum lugar. Cachorro  para vigiar a casa não havia. Na época um bom cão de guarda era uma raridade cara. Jogamo-nos nos colchões sobre o assoalho. Dinheiro, relógio e revólver sob o travesseiro, as roupas penduradas em pregos nas tabuinhas do telhado. Dormíamos o sono dos justos quando, ao amanhecer, ainda escuro, uma cabeça subiu pelo alçapão e acima dela emergiu o cano de um revólver. Uma voz grossa arrancou-nos do sono. Nanu, o que vinha a ser isso? E, antes de enxergar bem e antes de entender o que estava acontecendo, estávamos presos. Fomos obrigados a nos vestir com diante das armas apontadas e descer quietinhos como um cordeiro os degraus da escada. Rohde fez um esforço desesperado para levar escondido o relógio e a carteira com o dinheiro, com o pretexto de calçar as botas. Não lhe foi permitido. Os senhores tinham pressa. Mais acima na estrada encontravam-se reunidos e vigiados, como prisioneiros, os outros moradores.

Nem a idade o bando respeitou. Enxergamos entre os prisioneiros o idoso senhor Flach com sua barba branca – uma das nossas figuras de pioneiro mais marcantes e comprometidas. Em companhia dos demais já vencera um bom trecho de estrada. Por meio de olhares entendemo-nos no sentido de conservar a calma e permanecermos solidários, no que desse ou viesse. Cada um de nós recebeu a sua tarefa. Coube-nos seguir com a mula, a metralhadora e a munição, para render os outros. Como todos os outros estávamos precariamente vestidos e calçando chinelos, A ordem foi continuar pela trilha irregular no meio do mato. Durante a marcha acresceram mais  alguns prisioneiros. 

Rohde conseguiu falar pessoalmente com Leonel, o comandante dos revolucionários. Preocupava-o a propriedade que ficara para trás e a casa desprotegida. Leonel parecia sensato e prometeu liberar todos os prisioneiros, logo que atingissem o Catres e tivessem uma boa dianteira. Assegurou que não eram nem salteadores nem praticavam pilhagens e seus homens eram disciplinados. O receio pela propriedade era supérfluo. Que ele não tolerava roubo. E pelo visto, quis demonstrar isso na prática pois, chegados ao Macuco, na propriedade do sr. Mayntzhusen, este aproximou-se de nós, também como prisioneiro, e queixou-se ao Rohde, que a vanguarda fizera serviço pesado na sua propriedade. Até seu precioso instrumento de medição tinham levado, sem o qual não tinha como continuar seu trabalho. Os dois levaram suas preocupações a Leonel. Este ficou furioso ao saber que seus homens “tão confiáveis”, como ele afirmara, tinham cometido tamanho ato de indisciplina. Imediatamente mandou proceder a uma sindicância e ameaçou fuzilar  na nossa presença aquele com quem o roube fosse encontrado. Nós naturalmente protestamos, pois ninguém de nós estava a fim de futuramente se expor à vingança dessa gentalha. Além disso não queríamos justiça sumária, mas apenas de volta os objetos roubados do sr. Mayntzhusen. Foram vasculhados todos os sacos e não deu outra. Apareceram além do medidor, um aparelho fotográfico e  outros objetos.

Os objetos encontrados foram devolvidos para demonstrar que Leonel agia sempre com correção. Os responsáveis passaram por uma violenta descompostura. Estávamos satisfeitos pela descoberta e a devolução dos objetos e a marcha seguiu em direção a Catres. Lá nos liberaram e voltamos para casa, porque entre Catres e Porto Feliz não havia moradores que pudessem denunciar a passagem do bando. Para nós o grosso veio no fim.

Emilio olhou para meu marido como que perguntando se contaria o resto ainda naquela noite.

E “o grosso”? perguntei ansiosa. Emílio não tinha mais nada a dizer. “E o grosso? , insisti.

“Amanhã, tu  mesma vais verificar”, concluiu meu marido. “Pois ao voltarmos da longa caminhada que me rendeu as bolhas mais incômodas, observamos a situação em casa. Enquanto ajudamos o Mayntzhusen a salvar as suas coisas, a retaguarda fez o diabo em nossa casa. Simplesmente não sobrou nada: dinheiro, relógio, roupas, cobertas, ponchos, armas, utensílios além de todo estoque de mantimentos destinados aos colonos. Restou-nos o que tínhamos no corpo”.

“Mais alguma coisa”, interrompeu o Emílio. “Na minha mala ficou um pouco de papel em branco. Os sujeitos não souberam o que fazer com ele. Do resto não sobrou nada. Como lembrança deixaram para trás um poncho todo puído e alguns sacos velhos e um facão imprestável. Em compensação levaram uma caixa inteira deles, destinados para a venda aos colonos.

Escutei tudo com toda a frieza possível, mas internamente agradeci a Deus, que apenas coisas foram perdidas e não vidas humanas. Nem consegui lamentar o prejuízo. Só pensava nas semanas de incerteza e angústia que precederam. Tudo se recupera a não ser vidas humanas. Considerei-me feliz, pois, ao meu lado estava aquele por quem suportara todas essas preocupações. O restante recuperaríamos  depois.


Muitos que passaram por essas peripécias, intranquilidades e perturbações, tiveram a mesma sensação  que eu. Foi um excelente aprendizado para nós. Já não nos deixaremos apanhar pela surpresa. Unindo as forças era possível nos defendermos. Algumas pessoas mais temerosas achavam melhor  adiar a colonização na florestas virgem para tempos mais tranquilos. A grande maioria, entretanto, depois desse duro aprendizado, decidiu defender o patrimônio recém adquirido. No mesmo dia foi decidida a criação da auto defesa e imediatamente posta em prática. Disso tive ocasião de certificar-me já naquela primeira noite. O Emílio observou a posição da lua – na falta do relógio roubado – e pôs-se a caminho para fazer companhia aos outros nas margens do arroio Victoria. Em todas as localidades e em todos os cursos que permitiam a passagem de intrusos, os colonos montavam guarda em regime de revezamento, naquelas semanas tumultuadas. Sendo assim pudemos descansar  com a certeza de estarmos em segurança.

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