Continuação do relato de Maria
Rohde
Finalmente
começou a clarear o dia. Espiei para fora e observei por toda a parte figuras
se mexendo e espreguiçando. Com o sinistro da noite foram-se também os
fantasmas assustadores da noite. Quando clareou o dia os soldados vinham
voltando do arroio. Lavados e penteados inspiravam maior confiança. Pelo que o
pequeno retalho de céu visível na clareira indicava, o dia prometia ser bonito.
Sem o percebermos, havíamos avançado um bom trecho para dentro da floresta
virgem. Na época, as estradas que cruzavam a floresta eram novas e muito
estreita. Exigiam toda a atenção para não tirar a atenção do que vinha oela
frente e desviar raízes de árvores e buracos e assim contrabalançar os
solavancos. Tomado ao pé da letra, “de tanta árvore não percebemos a floresta”. De mais a mais, nosso ânimo não
estava lá muito interessado em observações da natureza.
A
continuação da viagem deixou-nos numa longa expetativa. Mas com aparecimento do
sol os ânimos se reavivaram. Depois de cavalgar a noite toda, acabara de chegar
um agrimensor vindo de Porto Feliz. Dele soubemos pelo menos algumas
informações. Não estava a par de detalhes de Porto Novo, mas conhecia meu
marido e era de opinião que, assim como
os outros moradores, deve ter passado por maus bocados. Falou em saques. Mas
todos escaparam com vida. Segundo ele, depois do assalto a Porto Novo, os
revolucionários fugiram para Barracão. De momento o perigo tinha passado e se
quiséssemos seguir viagem, não convinha esperar, ou esperar em Barril a chegada
dos caminhões que voltavam com
militares. Ainda conforme o informante, se a viagem transcorresse
normalmente, alcançaríamos “a tempo” o local da travessia. Chegados lá era
preciso esperar os caminhões que vinha do lado oposto, para que passassem por nós, utilizando um pequeno
desvio no mato. Em hipótese nenhuma
continuar a viagem, senão “estão todos ralados”.
Tudo
isso eu entendi de verdade quando apertados no caminhão ele forçava lentamente
a passagem pela estrada na floresta. Enrolamos a lona para enxergar e ouvir melhor.
Já que a luz do sol não penetrava pelas copas das árvores, reinava
permanentemente penumbra. A estrada era
assustadoramente estreita. De ambos os lados, galhos de árvore e arbustos
castigavam os rostos. O traçado das estradas pela floresta, segue geralmente
pelo alto das elevações, para evitar as muitas subidas e descidas. Com isso
ladeiam muitas vezes declives e barrancos assustadores, enquanto do outro lado
sobe a encosta. Nessas passagens escutava-se o eco vindo de quatro a cinco
direções, parecendo meia dúzia de caminhões de carga vindo da direção oposta,
para encontrar-nos antes da chegada ao ponto da travessia, causando apreensão e
expectativa. Uma ultrapassagem num local desses era algo impensável.
A
firma Klufke que na época cuidava do transporte para Porto Feliz, mantinha uma
programação das viaturas que iam e vinham. Mas nós éramos novatos e estávamos
apenas informados sobre aquilo que o agrimensor nos falara. Como eco do motor
de um veículo faz perceber com mais nitidez a aproximação de um outro caminhão,
paramos para discutir o que fazer. Mas quando o ruído cessou nos demos conta de
que fora eco do nosso motor. Aliviados continuamos a viagem e chegamos no local
do desvio, propositadamente construído junto a um idílico arroio. Nas
circunstâncias da época fazia o papel de uma verdadeira estação de espera, onde
os caminhões que vinham e iam, tinham condições de cruzarem uns pelos outros.
Mais
tarde quando o tráfego de veículos se intensificou, foi preciso abrir mais
clareiras na floresta para oferecer mais locais de ultrapassagem, mas as
viagens continuaram tendo suas dificuldades. Quando o encontro não se dava
próximo a um desses locais não restava outra saída a não ser o veículo com o trecho mais favorável atrás de si, dar
um ré. Em muitos casos a distância entre dois locais de ultrapassagem era
considerável. Por sorte a consciência de camaradagem na floresta era bem grande
e a ajuda mútua algo evidente. Em ocasiões em que um colega de estrada enfrentava
dificuldades, podia contar com certeza com a colaboração dos demais.
Aguardávamos
a chegada dos caminhões que vinha do lado contrário. Não demoraram. Relaxamos
junto ao arroio. Aproveitamos a ocasião para nos lavar e fazer a higiene e
recuperar o que não fora possível no acampamento dos militares. Não passamos
fome porque provisões havia suficientes, já que o apetite se fora com as incertezas por que passamos.
Os
três caminhões que pararam em intervalos e depois seguiram viagem, estavam lotados
com militares. O motorista alemão de um deles assegurou-nos que poderíamos
viajar sem problema até o rio Uruguai; que a ordem fora restabelecida; que o
grosso dos militares estava voltando; que ficara apenas um destacamento
encarregado da vigilância. Ele assegurou que de agora em diante a defesa ficava
por conta dos moradores; que eles tinham criado um sistema de autodefesa e
estavam em alerta. O mesmo acontecia em Porto Novo e que naquela manhã uma
gasolina descera até Porto Novo, para levar gêneros alimentícios para os
moradores na floresta. Essas breves informações serviram de grande alívio e
consegui superar um tanto o peso que sentia na alma.
Enquanto
os pensamentos estão ocupados demais com um futuro preocupante, a gente se
esquece do que se passa em volta e as coisas mais evidentes recuam para um
segundo plano. Com os ânimos refeitos seguimos por floresta e mais floresta.
Aos poucos a estrada começou a descer, bastante íngreme em alguns lugares. Cada passo alguma cutia ou lebre cruzava pela nossa
frente. Observamos bem de perto dois
veados e um tatú parou debaixo das rodas – coitado do animalzinho. Mas de
tigres e outras feras, por enquanto, nada. Encontramos os animais quase sempre
perto de córregos ou arroios, a procura do líquido benfazejo
no calor de dezembro.
Não
percebemos nada do sol ardente de dezembro. Bem no final da tarde começamos uma
descida mais íngreme e passamos pela clareira por onde penetraram os primeiros
raios do sol. Mais alguns quilômetros para alcançar o rio. Depois de mais
algumas curvas, fomos saudados pela forte claridade que não tínhamos visto o
dia todo. Mais alguns metros e o caminhão parou. Diante de nós espraiava-se o
Uruguai.
Graças
a Deus! Finalmente chegamos! Ao descermos do caminhão ouviram-se de todas as
gargantas profundos suspiros de alívio. O motorista gritou para o barqueiro na
outra margem “vem-nos atravessar!” Estupefatos contemplamos o espetáculo na
nossa frente. Os últimos raios do sol
perto do horizonte rebrilhavam na superfície esverdeada do rio. Não demorou o
vermelho e o ouro mergulharam a paisagem toda num púrpura real. Tudo passou
para uma mescla de verde e ouro. Nosso olhar não se cansava. Diante de nós o
majestoso caudal, refletindo em suas águas tranquilas ambas as margens. Lá na
encosta da outra margem a sede da colônia de Porto Feliz. Identificamos
nitidamente as simpáticas moradias com seus estilos de construção, que faziam
uma boa impressão em nós. A clareira na floresta era bem ampla e a nossa
estupefação não tinha limites.
Neste
meio tempo encostou a barca. Contra toda a nossa expectativa, a travessia
aconteceu sem qualquer incidente. No meio do caudal, de onde a vista alcançava
mais longe, fomos dominados pela sensação de uma paisagem de tamanho
impressionante. Tínhamos a impressão de nos encontrarmos frente a uma natureza
de dimensões telúricas, oferecendo terra e espaço suficiente no qual as futuras
gerações encontrariam condições para crescer e multiplicar-se ilimitadamente.
Envoltos
no magnífico vermelho púrpura do entardecer, que prenunciava um esplendoroso
dia seguinte, estacionamos em frente ao hotel. Quartos convidativos e camas
limpas foram-nos oferecidos e uma robusto café da tarde acenava, apesar dos
pedidos de desculpas, que estava tudo vazio nas vizinhanças e todas as
mercadorias vendidas, desde que as tropas ocuparam o lugar. Não se esqueça
também que o assalto dos revolucionários
deixara pouca coisas para trás. De
qualquer forma fomos bem servidos. Certamente muita coisa fora escondida
em locais secretos. O hoteleiro informou-nos que a única gasolina ( barco a
motor) disponível descera o rio para Porto Novo junto mantimentos. O transporte
anterior fora interceptado e pilhado pelos revolucionários. Deixou claro também
que nos preparássemos para alguns dias de repouso, visto que a gasolina
dificilmente retornaria antes de dois ou três dias. A informação em absoluto não
nos agradou, pois, exaustos da viagem,
pretendíamos chegar ao destino o mais rápido possível.
Pus-me
a caminho até a casa de comércio de Klufke para saber o que poderia ser feito.
No caminho tive ocasião de tomar contato mais de perto com a simpática
povoação. Os dias eram compridos e, no
crepúsculo, viam-se por toda a
parte as pessoas sentadas na frente das
casas. Cruzei por muitos pedestres que, pelo que pareciam fazer entender, foram
buscar notícias e correio, quando perceberam a
chegada do nosso caminhão. As simpáticas casinhas com seus jardins com
flores na frente, as cercas cuidadas, os caminhos limpos, tudo isso não
correspondia propriamente à imaginação que eu tinha da floresta virgem. Para
onde eu me dirigia escutava o melhor alemão erudito, coisa rara em outra parte
na colônia. As pessoas com quem conversei, evidentemente não eram colonos.
Soube
que uma parte dos moradores da cidade eram alemães, vindos da Europa depois da
Guerra Mundial. Fixaram-se na colônia, mas nem sempre foram bem sucedidos. Uma
parte deles voltou mais tarde para a Alemanha ou mudaram-se para as cidades. Faltava-lhes perseverança para acostumar-se
com a vida de sitiantes ou a sua formação recomendava outra atividade para
ganhar a vida.
Na
casa de comércio de Waldemar Klufke as pessoas admiravam-se muito pelo fato de
que nós nos tínhamos arriscado a viajar
em tempos tão perturbados. Fiquei sabendo também de detalhes sobre o assalto a
Porto Feliz. O sr. Klufke percebeu logo
que a nossa vontade era de descer, o mais rápido possível o rio, até Porto
Novo. Ele fez o melhor que pôde e empenhou-se para conseguir ocasião para
viajar na manhã seguinte, já que havia também carga para mandar.
Cumpriu
a palavra. Ainda durante a noite um velho motor foi posto a funcionar e
instalado numa canoa usada para transporte de emergência no Uruguai. Avisou que
esivéssemos de manhã cedo a postos no porto, já que a viagem com a água baixa
era lenta e consumiria a maior parte do dia. Cansados em extremo dormimos
naquela noite como marmotas. A natureza
reclamava seus direitos depois de uma viagem cheia de peripécias.
De
manhã cedo fomos tirados da cama. O café estava na mesa, os leitões dos Timm e
meus gatinhos servidos. Portanto, avante. O caminhão levou a mudança até o rio,
onde a canoa preparada estava à espera. A tripulação consistia de um antigo
marinheiro marítimo sabia lidar com o motor reumático. Um caboclo serviu de
ajudante e timoneiro. Sem demora tudo estava à bordo. O nosso “capitão” sabia
muito bem como garantir o equilíbrio. Estávamos prontos para a partida e ansiosos,
acomodados em caixas, sacos e pelegos. Cuidamos para sentirmo-nos tão à vontade
quanto isto era possível para a longa viagem pela água,. Um dia de céu amigo de
dezembro parecia sorrir sobre as nossas cabeças, no momento em que a nossa canoa começou a descer em direção a Porto Novo,
nossa futura querência.