Fronteiras de colonização - IX

Continuação do relato de Maria Rohde
Finalmente começou a clarear o dia. Espiei para fora e observei por toda a parte figuras se mexendo e espreguiçando. Com o sinistro da noite foram-se também os fantasmas assustadores da noite. Quando clareou o dia os soldados vinham voltando do arroio. Lavados e penteados inspiravam maior confiança. Pelo que o pequeno retalho de céu visível na clareira indicava, o dia prometia ser bonito. Sem o percebermos, havíamos avançado um bom trecho para dentro da floresta virgem. Na época, as estradas que cruzavam a floresta eram novas e muito estreita. Exigiam toda a atenção para não tirar a atenção do que vinha oela frente e desviar raízes de árvores e buracos e assim contrabalançar os solavancos. Tomado ao pé da letra, “de tanta árvore não percebemos  a floresta”. De mais a mais, nosso ânimo não estava lá muito interessado em observações da natureza.

A continuação da viagem deixou-nos numa longa expetativa. Mas com aparecimento do sol os ânimos se reavivaram. Depois de cavalgar a noite toda, acabara de chegar um agrimensor vindo de Porto Feliz. Dele soubemos pelo menos algumas informações. Não estava a par de detalhes de Porto Novo, mas conhecia meu marido e era de opinião que, assim  como os outros moradores, deve ter passado por maus bocados. Falou em saques. Mas todos escaparam com vida. Segundo ele, depois do assalto a Porto Novo, os revolucionários fugiram para Barracão. De momento o perigo tinha passado e se quiséssemos seguir viagem, não convinha esperar, ou esperar em Barril a chegada dos caminhões que voltavam com  militares. Ainda conforme o informante, se a viagem transcorresse normalmente, alcançaríamos “a tempo” o local da travessia. Chegados lá era preciso esperar os caminhões que vinha do lado oposto, para que  passassem por nós, utilizando um pequeno desvio no mato.  Em hipótese nenhuma continuar a viagem, senão “estão todos ralados”.

Tudo isso eu entendi de verdade quando apertados no caminhão ele forçava lentamente a passagem pela estrada na floresta. Enrolamos a lona para enxergar e ouvir melhor. Já que a luz do sol não penetrava pelas copas das árvores, reinava permanentemente  penumbra. A estrada era assustadoramente estreita. De ambos os lados, galhos de árvore e arbustos castigavam os rostos. O traçado das estradas pela floresta, segue geralmente pelo alto das elevações, para evitar as muitas subidas e descidas. Com isso ladeiam muitas vezes declives e barrancos assustadores, enquanto do outro lado sobe a encosta. Nessas passagens escutava-se o eco vindo de quatro a cinco direções, parecendo meia dúzia de caminhões de carga vindo da direção oposta, para encontrar-nos antes da chegada ao ponto da travessia, causando apreensão e expectativa. Uma ultrapassagem num local desses era algo impensável.

A firma Klufke que na época cuidava do transporte para Porto Feliz, mantinha uma programação das viaturas que iam e vinham. Mas nós éramos novatos e estávamos apenas informados sobre aquilo que o agrimensor nos falara. Como eco do motor de um veículo faz perceber com mais nitidez a aproximação de um outro caminhão, paramos para discutir o que fazer. Mas quando o ruído cessou nos demos conta de que fora eco do nosso motor. Aliviados continuamos a viagem e chegamos no local do desvio, propositadamente construído junto a um idílico arroio. Nas circunstâncias da época fazia o papel de uma verdadeira estação de espera, onde os caminhões que vinham e iam, tinham condições de cruzarem uns pelos outros.

Mais tarde quando o tráfego de veículos se intensificou, foi preciso abrir mais clareiras na floresta para oferecer mais locais de ultrapassagem, mas as viagens continuaram tendo suas dificuldades. Quando o encontro não se dava próximo a um desses locais não restava outra saída a não ser o veículo  com o trecho mais favorável atrás de si, dar um ré. Em muitos casos a distância entre dois locais de ultrapassagem era considerável. Por sorte a consciência de camaradagem na floresta era bem grande e a ajuda mútua algo evidente. Em ocasiões em que um colega de estrada enfrentava dificuldades, podia contar com certeza com a colaboração dos demais.

Aguardávamos a chegada dos caminhões que vinha do lado contrário. Não demoraram. Relaxamos junto ao arroio. Aproveitamos a ocasião para nos lavar e fazer a higiene e recuperar o que não fora possível no acampamento dos militares. Não passamos fome porque provisões havia suficientes, já que o apetite se fora com  as incertezas por que passamos.

Os três caminhões que pararam em intervalos e depois seguiram viagem, estavam lotados com militares. O motorista alemão de um deles assegurou-nos que poderíamos viajar sem problema até o rio Uruguai; que a ordem fora restabelecida; que o grosso dos militares estava voltando; que ficara apenas um destacamento encarregado da vigilância. Ele assegurou que de agora em diante a defesa ficava por conta dos moradores; que eles tinham criado um sistema de autodefesa e estavam em alerta. O mesmo acontecia em Porto Novo e que naquela manhã uma gasolina descera até Porto Novo, para levar gêneros alimentícios para os moradores na floresta. Essas breves informações serviram de grande alívio e consegui superar um tanto o peso que sentia na alma.

Enquanto os pensamentos estão ocupados demais com um futuro preocupante, a gente se esquece do que se passa em volta e as coisas mais evidentes recuam para um segundo plano. Com os ânimos refeitos seguimos por floresta e mais floresta. Aos poucos a estrada começou a descer, bastante íngreme em alguns lugares.  Cada passo alguma cutia ou lebre cruzava pela nossa frente. Observamos  bem de perto dois veados e um tatú parou debaixo das rodas – coitado do animalzinho. Mas de tigres e outras feras, por enquanto, nada. Encontramos os animais quase sempre perto de córregos ou arroios, a procura do líquido  benfazejo  no calor de dezembro.

Não percebemos nada do sol ardente de dezembro. Bem no final da tarde começamos uma descida mais íngreme e passamos pela clareira por onde penetraram os primeiros raios do sol. Mais alguns quilômetros para alcançar o rio. Depois de mais algumas curvas, fomos saudados pela forte claridade que não tínhamos visto o dia todo. Mais alguns metros e o caminhão parou. Diante de nós espraiava-se o Uruguai.

Graças a Deus! Finalmente chegamos! Ao descermos do caminhão ouviram-se de todas as gargantas profundos suspiros de alívio. O motorista gritou para o barqueiro na outra margem “vem-nos atravessar!” Estupefatos contemplamos o espetáculo na nossa frente.  Os últimos raios do sol perto do horizonte rebrilhavam na superfície esverdeada do rio. Não demorou o vermelho e o ouro mergulharam a paisagem toda num púrpura real. Tudo passou para uma mescla de verde e ouro. Nosso olhar não se cansava. Diante de nós o majestoso caudal, refletindo em suas águas tranquilas ambas as margens. Lá na encosta da outra margem a sede da colônia de Porto Feliz. Identificamos nitidamente as simpáticas moradias com seus estilos de construção, que faziam uma boa impressão em nós. A clareira na floresta era bem ampla e a nossa estupefação não tinha limites.

Neste meio tempo encostou a barca. Contra toda a nossa expectativa, a travessia aconteceu sem qualquer incidente. No meio do caudal, de onde a vista alcançava mais longe, fomos dominados pela sensação de uma paisagem de tamanho impressionante. Tínhamos a impressão de nos encontrarmos frente a uma natureza de dimensões telúricas, oferecendo terra e espaço suficiente no qual as futuras gerações encontrariam condições para crescer e multiplicar-se ilimitadamente.

Envoltos no magnífico vermelho púrpura do entardecer, que prenunciava um esplendoroso dia seguinte, estacionamos em frente ao hotel. Quartos convidativos e camas limpas foram-nos oferecidos e uma robusto café da tarde acenava, apesar dos pedidos de desculpas, que estava tudo vazio nas vizinhanças e todas as mercadorias vendidas, desde que as tropas ocuparam o lugar. Não se esqueça também que  o assalto dos revolucionários deixara pouca coisas para trás. De  qualquer forma fomos bem servidos. Certamente muita coisa fora escondida em locais secretos. O hoteleiro informou-nos que a única gasolina ( barco a motor) disponível descera o rio para Porto Novo junto mantimentos. O transporte anterior fora interceptado e pilhado pelos revolucionários. Deixou claro também que nos preparássemos para alguns dias de repouso, visto que a gasolina dificilmente retornaria antes de dois ou três dias. A informação em absoluto não nos agradou, pois, exaustos da viagem,  pretendíamos chegar ao destino o mais rápido possível.

Pus-me a caminho até a casa de comércio de Klufke para saber o que poderia ser feito. No caminho tive ocasião de tomar contato mais de perto com a simpática povoação. Os  dias eram compridos e, no crepúsculo,  viam-se por toda a parte  as pessoas sentadas na frente das casas. Cruzei por muitos pedestres que, pelo que pareciam fazer entender, foram buscar notícias e correio, quando perceberam a  chegada do nosso caminhão. As simpáticas casinhas com seus jardins com flores na frente, as cercas cuidadas, os caminhos limpos, tudo isso não correspondia propriamente à imaginação que eu tinha da floresta virgem. Para onde eu me dirigia escutava o melhor alemão erudito, coisa rara em outra parte na colônia. As pessoas com quem conversei, evidentemente não eram colonos.

Soube que uma parte dos moradores da cidade eram alemães, vindos da Europa depois da Guerra Mundial. Fixaram-se na colônia, mas nem sempre foram bem sucedidos. Uma parte deles voltou mais tarde para a Alemanha ou mudaram-se para as  cidades. Faltava-lhes perseverança para acostumar-se com a vida de sitiantes ou a sua formação recomendava outra atividade para ganhar a vida.

Na casa de comércio de Waldemar Klufke as pessoas admiravam-se muito pelo fato de que nós nos tínhamos arriscado  a viajar em tempos tão perturbados. Fiquei sabendo também de detalhes sobre o assalto a Porto Feliz. O  sr. Klufke percebeu logo que a nossa vontade era de descer, o mais rápido possível o rio, até Porto Novo. Ele fez o melhor que pôde e empenhou-se para conseguir ocasião para viajar na manhã seguinte, já que havia também carga para mandar.

Cumpriu a palavra. Ainda durante a noite um velho motor foi posto a funcionar e instalado numa canoa usada para transporte de emergência no Uruguai. Avisou que esivéssemos de manhã cedo a postos no porto, já que a viagem com a água baixa era lenta e consumiria a maior parte do dia. Cansados em extremo dormimos naquela noite como  marmotas. A natureza reclamava seus direitos depois de uma viagem cheia de peripécias.


De manhã cedo fomos tirados da cama. O café estava na mesa, os leitões dos Timm e meus gatinhos servidos. Portanto, avante. O caminhão levou a mudança até o rio, onde a canoa preparada estava à espera. A tripulação consistia de um antigo marinheiro marítimo sabia lidar com o motor reumático. Um caboclo serviu de ajudante e timoneiro. Sem demora tudo estava à bordo. O nosso “capitão” sabia muito bem como garantir o equilíbrio. Estávamos prontos para a partida e ansiosos, acomodados em caixas, sacos e pelegos. Cuidamos para sentirmo-nos tão à vontade quanto isto era possível para a longa viagem pela água,. Um dia de céu amigo de dezembro parecia sorrir sobre as nossas cabeças, no momento em que a nossa canoa  começou a descer em direção a Porto Novo, nossa futura querência.

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