Fronteiras de colonização - X - A nova querência

Continua o relato de Maria Rohde
Primeiro descemos pela margem do rio no lado de Santa Catarina, por onde se espalhavam os assentamentos  da Colonização da Empresa Xapecó, Pepery Ltda. Aqui e acolá observavam-se clareiras ocupadas com plantações novas. Passamos seguidas vezes por casas de colonos, maiores e menores, com aparência bastante primitiva. Pelo fato de se encontrarem perto do rio davam uma impressão idílica e destacavam-se da exuberante floresta verde, deixando uma impressão jovial. De vez em quanto ouvíamos o latido de um cachorro, alertado pelo barulho do motor. Nada, porém, de seres humanos, embora nesta parte da colonização de Porto Feliz, muitos colonos já tivessem ocupado a sua terra. Ao nosso lado estendia-se por toda a largura do rio e na frente sua gigantesca superfície avançava até onde a vista alcançava.

Estávamos acomodados no fundo da canoa e deixamos que o poderoso espetáculo nos impressionasse. As crianças, que nunca tinham visto algo maior do que o Taquari, estavam fora de si diante da grandeza do caudal. Mil coisas ocupavam suas atenções. Ora eram os peixes que davam ousados saltos perto da canoa, ora era a vegetação romanticamente selvagem nos barrancos, ora árvores desconhecidas e, somado a tudo isso, a paisagem que se ampliava a cada curva do rio. A impressão avassaladora do conjunto, fez com que nessa primeira viagem pelo Uruguai não guardasse a lembrança de nenhum detalhe. Só enxergava o grande todo dessa gigantesca paisagem da mata virgem. Até onde alcançava a vista sucediam-se as ondas que se elevavam e baixavam, formadas pela floresta sempre verde e por ela fluía, tranquila e alegre, a lâmina prateada do grande rio.

Como era grande e sem fronteiras a magnífica criação de Deus! Aqui não se percebiam limites. Por toda a parte a floresta barrava o horizonte. Espontaneamente flagrei-me diante dos contrários. Como filha da metrópole que conhecia de vista os arranha-céus de New York e  as metrópoles densamente habitadas da América, quase não conseguia entender  que na mesma terra, lá as pessoas  são obrigadas a privar-se do chão debaixo dos pés e viver amontoadas em edifícios de muitos andares. Aqui disponível uma espaço sem fim, a gigantesca e livre natureza, intacta guarda todos os seus tesouros e aguarda apenas que a mão do homem se sirva deles.

O peito parecia-me pequeno para respirar tanta amplidão e tanta liberdade. De qualquer forma o que se estendia diante de mim, não era sonho. Era real e verdadeiro. O principal e o fundamental resumia-se: havia chão e solos em abundância e em tamanha exuberância que não deixava nenhuma dúvida. Quem aqui conquista o seu chão e sabe vencer as dificuldades oferecidas pelo começo, garante o futuro para si, seus filhos e filhos dos filhos. Foram essas as reflexões que me ocuparam a mente durante essa primeira e impactante viagem sobre Uruguai.

Depois de algumas horas de uma  tranquila viagem rio abaixo, escutamos ruídos misturados com o ronco do motor. Em seguida entraremos nas “corredeiras” avisou o capitão e direcionou o barco para a  outra margem, no lado do Rio Grande do Sul. Lá, segundo explicou, o canal era mais largo e menos perigoso, com o atual nível da água. As corredeiras são formações rochosas debaixo da água que, em período de nível baixo, se transformam em correntes velozes que esguicham, espumam e produzem um ruído todo característico. São perigosas para navegadores inexperiente. Mas o nosso capitão conhecia as manhas, sabia onde se encontravam o pontos mais perigosos, assim como os canais através dos quais nos pilotou sãos e salvos. Em pé na canoa, seu ajudante, o caboclo segurava uma vara grossa e comprida e com ela esquiva a canoa, ao passar pelas rochas, quando a aproximação era demasiada. Não me sentia lá muito à vontade quando, em algum momento, o  fundo do barco dava um encontrão na rocha. Mas o Mathias, o caboclo, tinha prática em evitar os encontros mais sérios. Passamos por duas dessas corredeiras. As de Catres foram as últimas, como nos tranquilizou  o capitão. Até o nosso ponto de desembarque não havia mais nenhuma.

Em Catres avistamos o primeiro telhado maior perto da margem do rio. Mathias informou-nos que lá fora instalada uma serraria e mais adiante onde se avistava uma clareira, morava seu patrão, o agrimensor Mayntzhusen. Acrescentou que era um lugar muito bonito e lá cresciam magníficas bananeiras e laranjeiras. E para completar explicou-nos o capitão que naquele ponto o pequeno rio Macuco desembocava no Uruguai, marcando a fronteira entre os empreendimentos de colonização  de Porto Feliz dos evangélicos e Porto Novo dos católicos. O caboclo pretendia desembarcar no Macuco, mas a pedido do capitão continuou de boa vontade conosco.

Observei pela primeira vez uma caboclo, pois, essa estirpe de gente, era pouco conhecida na região do Alto Taquari, onde antes morávamos. De qualquer forma o Mathias parecia ser um sujeito muito serviçal e de boa índole. Para mim o mais simpático nele vinha a ser seu nome. Na minha cidade natal de Trier, em cada dez rapazes, um chama-se Mathias. No bairro de Skt. Mathias encontrava-se a minha casa paterna.  Fui batizada no túmulo do apóstolo. E agora    um caboclo, um mateiro de nome Mathias, pilota o nosso barco ao encontro da nova querência. Como chegou a esse nome? Não fazia diferença o Mathias agradava-me. Mais tarde empregou-se com meu cunhado, foi um homem estimado e nunca deixou de mostrar-se um trabalhador bem disposto e confiável.

Navegávamos, pois, em terras de Porto Novo, nossa nova querência. Depois de passar pelo Macuco e vencer a curva, Mathias embicou o barco para o meio do rio e contou-me que conhecia muito bem meu marido; que sabia como se passavam as coisas e contou-me ainda muito mais, que infelizmente não consegui entender direito por causa do meu português precário na época.

Passava bem do meio dia quando nos aproximamos da desembocadura do rio Pardo. De propósito o capitão fizera uma grande curva, a fim de nos proporcionar uma ampla visão sobre a clareira aberta.

“Olha lá adiante” e apontou com a mão. “É a linda casinha, construída pelo próprio Rohde”.

Imediatamente meus olhos captaram a visão e, no meu íntimo acrescentei: “construída para mim”. Será que ele suspeitava de que eu me encontrava tão próxima que, os olhos brilhando de felicidade, saboreava a visão do que seria a minha nova querência. Alvorocei-me a tal ponto que chorei de alegria. Aqui estávamos. Todas as peripécias tinham sido superadas e encontramos um sossego celestial e uma profunda paz. Não demoraria e eu abraçaria agradecida e assegurar-lhe, que neste momento entendia realmente as razões de seu encantamento por esta terra. Contemplando-a de longe, nunca imaginara que a minha primeira casinha na floresta virgem fosse tão simpática.

Já não conseguia dominar-me, pus-me em pé na canoa e com a mão na boca, mandei um sonoro “juhuuu” por cima do rio. Todos tínhamos o olhar preso para a bela casinha, que se erguia na encosta, cerca de 150 metros afastada do barranco. As crianças fizeram coro com os gritos e o júbilo. Percebemos perfeitamente que algumas pessoas se movimentavam na varanda, e nos imaginamos que viriam ao nosso encontro, já que a canoa tomara a direção da margem. Esperamos em vão por um bom tempo. O barranco alto impedia a vista. Não apareceu ninguém e eu não tinha noção de onde descarregar a minha bagagem. A terra dos Tim ficava  20 minutos  a jusante. Tinham que seguir viagem. Eu estavam agitada e angustiada, quando ninguém apareceu para dar as boas vindas. Não me restou outra saída do que desembarcar e verificar o que estava acontecendo. Com muito esforço alcancei a clareira e verifiquei a situação. Avançar para a frente, nem pensar, pois, o mato recém derrubado jazia no chão, numa confusão total, parecendo-me impenetrável. Subi num grosso tronco de árvore derrubada e angustiada gritei o meu “Huhuuu” e o nome do meu marido. Sacudi o guarda-chuva no ar, para assinalar o lugar onde me encontrava entre os galhos e os troncos caídos.

Cerca de 60 metros separavam-me da casa permitindo-me observar tudo. De repente tudo começou a movimentar-se lá em cima. Escutei então o longamente esperado: Minha Nossa Senhora, minha mulher!” Aos saltos veio ao meu encontro pulando por cima de troncos de árvore caídos numa trilha, que eu não tinha percebido. Os minutos de tormento da espera de que além se manifestasse, pareceram uma eternidade e tiraram-me o ânimo. Cai chorando em seus braços  e não pensei mais em nada a não ser; “Finalment no destino, e em segurança”.

Carregou-me nos braços passando por cima dos troncos de árvore, trilha acima, em direção à casinha. Um bom número de curiosos estava reunido para saudar-me.

Soube então o motivo porque ninguém apareceu para nos dar as boas vindas. Ao  escutarem o barulho do motor desconfiaram que se tratasse de um novo assalto por parte dos revolucionários. A desconfiança aumentou ao escutarem a nossa confusão de gritos. Concluíram que não podia tratar-se de um frete regular, já que a gasolina descera até a parte inferior da colônia e ainda não retornara. Conclusão. Esconder e por em segurança o que era possível e, em meio a esse afã, meu marido reconheceu-me pela voz.

Obviamente a surpresa foi enorme, pois, nesses dias perturbados, ninguém se imaginou a nossa vinda. Para mim foi o dia mais feliz. Jamais o esquecerei. Para minha maior alegria notei duas jovens senhoras no meio do grupo. Sorrindo aproximaram-se de mim e apertaram-me a mão. Tratava das duas valentes “meninas Beuren”, que em companhia de seus jovens maridos, há pouco tinham realizado a viagem de núpcias para a florestas virgem para tomarem posse de suas glebas. A gasolina descarregara  gêneros alimentícios e elas se encontravam aí para abastecer-se do mais necessário. Somos de momento quase dez mulheres (Frauleut) na zona, comentaram elas, conceito que significava muito mais do que as simples palavras espremiam. Estávamos felizes por sabermos umas das outras, embora as distâncias que nos separavam não fossem pequenas.

Depois que os dois casais se despediram com seus alforjes recheados, ainda deu tempo para uma vistoria nas redondezas, antes que escurecesse. Hoje eu era hóspede aqui e deveria apenas olhar. Meu marido conduziu-me como uma criança pela mão para conhecer a simpática casinha.

“Minha intenção foi deixar tudo pronto até os últimos detalhes até a tua chegada, como fora planejado. Como te antecipaste tens que contentar-te com o que tem”. De qualquer forma ambos estávamos contentes porque as coisas tomaram esse rumo. A localização da casinha com a vista sobre o rio e a floresta virgem, era maravilhosa. Não sabia como me maravilhar de como tudo estava tão bem instalado e a arquitetura artística da casa. Tábuas de cedro aplainadas à mão forravam o quarto grande. As guarnições das portas e janelas já estavam colocadas. A porta e as janelas já cortadas, aguardavam sobre a banca de marceneiro feita à mão. Para já estariam prontas.

“Até lá vamos pendurar os velhos sacos nas aberturas durante a noite. Foi a única coisa que os bandidos não levaram”, observou sorrindo meu marido.

Ponchos, roupa de cama e demais roupas o bando levou. Levou-me depois para fora. Ao lado da casa, algumas tábuas apoiadas num gigantesco cepo de árvore formavam um telhado. A cozinha na livre natureza de Deus! O imprescindível panelão preto do feijão de três pés   pendia num arame. O arroz costumava ser cozinhado junto com o feijão. Meu marido aproveitou para encostar os cepos de lenha em brasa para requentar a janta enquanto, de mãos dadas, demos uma volta.

Atrás da casa, subindo a estrada principal subi a encosta. Corre paralela ao longo do rio por todos os 18 quilômetros das terras já medidas até a séde de Porto Novo. Acima da estrada erguia-se a floresta intocada e abaixo dela o mato derrubado e queimado por toda a largura da colônia. Ao redor da nossa casinha a limpeza já feita permitia a livre circulação.

Primeiro caminhamos por toda a largura da nossa colônia. Parecia-me tudo tão enorme a ponto de não parar de repetir a pergunta, se era verdade que tudo isso era nosso.

“Sim querida, tudo é nosso e sobra lugar para nossos filhos e netos”.

Para mim, filha de cidade grande, parecia uma propriedade senhorial do tamanho que somente os cavaleiros tinham acesso na Europa. Um secreto orgulho apoderou-se de mim ao contemplarmos do alto de uma elevação a propriedade. Naquele momento eu não estava em condições quanto trabalho e quanto suor seriam ainda necessários para tornar aquela terra arável.

No dia seguinte eu conheceria o restante. Foi preciso pensar na janta e  no recolhimento para a noite antes que escurecesse, pois, não havia  iluminação. Os bandidos tinham levado  tudo. Fui então informado o que significava o “tudo”.

Mas isso tinha tempo até o dia seguinte. Meu marido não quis estragar a alegria do primeiro reencontro com coisas desagradáveis. O crepúsculo que tomava conta de tudo, guardaria por enquanto o silêncio sobre esses acontecimentos.

Quando voltamos “Eckhard”, o homem de confiança do meu marido, um homem querido e quieto, jovem e extremamente prático e que fizera sua primeira experiência de uma viagem na floresta virgem do Paraguai, acabara de aprontar a janta. Lá fora, no descampado, ao lado do tronco que o Emílio apelidou com a maior seriedade do mundo como “a nossa cozinha”, encontrava-se o primeiro e único móvel: a maciça mesa aprontada por ele, bem perto do que chamou de fogo de cozinha.

Percebia-se o odor de comida e não me faltava o apetite. Sugeri que afastássemos a mesa um pouco dos cepos em brasa, para escapar da fumaça. Neste momento aprendi a primeira lição. O Emílio explicou-me que o mais prático era assim. Em primeiro lugar a mesa tinha a sua iluminação para encontrar mais facilmente a boca e em segundo lugar, a fumaça era o melhor meio para manter as mutucas longe e assim comer com tranquilidade. Dois ou três cepos munidos com tábuas serviam como assentos. O cenário era de um romantismo assustador. Lembrava-me vivamente as nossas escursões nas férias de verão na América, nas quais costumávamos preparar, à maneira rústica dos escoteiros, as nossas refeições. Acontece que  numa situação permanente a coisa era diferente. De qualquer maneira admirei-me que as coisas me parecessem tão naturais e não sentia medo de animais selvagens, como antes na minha imaginação. E como era saboroso o feijão preto servido em pratos de folha, repetidas vezes abastecidos pelo Emílio. E para comemorar o dia ele, na condição de dono de casa, distribuiu para cada um  rolete de linguiça, salva do assalto dos revolucionários.

“Amanhã é dia de fazer pão”, foi a ordem. Onde e como era-me desconhecido. Felizmente a gasolina trouxera suprimentos. Também na minha bagagem encontrava-se o mais indispensável, pois, de roupas e utensílios nada sobrara.

Um leito simpático e macio para passar a noite foi armado sobre um monte de maravalha. Era verão e as noites quentes. Não sentia medo mesmo que  faltassem as portas e janelas, já que me garantiram que não havia tigres e cobras nas redondezas. E para o caso dos casos trouxera um revólver, de momento a única arma de fogo disponível, pois o bando Leonel Rocha carregara tudo que havia em armas, facões e demais utensílios que estavam pregados ou parafusados.

Nada percebi dos tigres selvagens que, apesar de tudo povoavam como fantasmas o meu inconsciente. Em compensação outros habitantes pouco desejados da mata virgem, fizeram-se sentir tanto mais. Falo das minúsculas mosquinhas e mutucas que passam por toda e qualquer fresta ou abertura. A fumaça é o único remédio para afugentá-las. Para ter paz o fiel Eckard acendeu fogueiras em ambos os lados da casa. A fumaça foi o mal menor na situação.


Por um bom tempo ficamos sentados sob o céu limpo e estrelado sobre o qual destacava-se o brilho da “estrela do natal”.  A luminosidade da lua, que não demorou em aparecer,  era tal que se enxergava muito bem sem iluminação. Nunca antes eu percebera tão claramente a beleza de uma noite estrelada e com luar. Quem sabe nunca a iluminação celeste nos caiu tanto em vista como, quando ainda faltava tudo que achávamos óbvio.

This entry was posted on segunda-feira, 5 de janeiro de 2015. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.