Os jesuítas e a imigração alemã – O projeto educacional #2

O ensino médio nos colégios
Na postagem anterior, constatamos que o nível de desenvolvimento dos imigrantes alemães no final da década de 1860, reclamava instituições de ensino mais avançadas. O Pe. Wilhelm Feldhaus, pároco de São Leopoldo, tomou a si a iniciativa  de dar andamento a tratativas para criar uma escola de ensino médio. Começou  pela busca de prédios apropriados  para as instalações da escola e a acomodação de professores e alunos. A escolha recaiu sobre o prédio de um antigo moinho de tanino desativado,  um curtume e  uma casa de moradia, localizados perto da igreja, próximos ao rio. A compra foi autorizada pelo Pe. Ponza, em visita à Missão, mandado pelo Superior da Província Romana, sob cuja jurisdição se encontravam os jesuítas alemães na ocasião. As escrituras de transferência de posse foram assinadas no dia 22 de junho de 1869. O colégio foi solenemente inaugurado no dia 12 de outubro do mesmo ano, por D. Sebastião Dias Laranjeira, bispo da dioceses do Rio Grande do Sul, com o nome de Colégio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo e abriu as portas para os primeiros 12 alunos. Naquela ocasião ninguém teria ousado prognosticar o importante papel que o Conceição, como seria carinhosamente chamado por alunos, ex-alunos e a a população em geral, desempenharia  nos 40 anos que se seguiram, formando uma influente elite intelectual para o Estado e o País, assim como a primeira geração de sacerdotes regulares e diocesanos, inclusive o primeiro titular da Arquidiocese de Porto Alegre. No final da década de 1930, o médico e botânico João Dutra, que fora aluno do Conceição, resumiu o conceito que o colégio conquistara, com as palavras: “Eu doaria todos os meus bens aos jesuítas, se fizessem funcionar novamente uma instituição de ensino como foi o Colégio Conceição”
No começo o Conceição fora pensado como Seminário para a formação de sacerdotes e como Seminário para formação de professores (escola normal), para atender as escolas das comunidades coloniais. Uma sequência de percalços, chegaram a comprometer seriamente a consolidação da obra. Ora foi a concorrência das escolas protestantes; ora a devastadora enchente  de 1873, forçando a interrupção temporária das atividades; ora o clima hostil ao clero, de modo especial aos jesuítas, durante o gabinete Rio Branco; ora o episódio “Mucker”; ora o susto motivado pela epidemia da cólera. A conveniência da continuidade da obra foi posta em dúvida. Mas houve também estímulos e incentivos como a visita do Presidente da Província acompanhado pelo bispo, por ocasião da pedra fundamental da ferrovia Porto Alegre-São Leopoldo. Mas um fator determinante para a continuação do Conceição foi a chegada de jesuítas de boa formação expulsos da Alemanha por Bismarck, durante o Kulturkampf.
Em 1877 o Conceição deixou de ser Seminário para concentrar-se na preparação dos alunos para os chamados “exames parcelados”, que habilitavam para o ingresso no ensino superior. Alunos de todo Estado começaram a afluir, sempre mais do universo luso-brasileiro urbano e filhos de estancieiros. A instituição consolidou-se durante a década de 1880. A fama do Conceição espalhara-se no começo de 1890, por todo o sul do País, despertando a atenção das autoridades federais. De todo o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e até do Paraná, afluíam alunos, filhos de fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais, funcionários graduados, militares,  magistrados, políticos e governantes para, na condição de internos, apropriarem-se de uma sólida formação acadêmica e plasmarem suas personalidades em meio a uma atmosfera de cultura e religiosidade de alto nível, de vida espartana e disciplina prussiana. Referindo-se ao apogeu do Conceição o Pe. Balduino Rambo escreveu em 1958:  “O Ginásio Conceição em São Leopoldo, então no apogeu da sua atuação, fora  originalmente pensado como seminário para a formação de professores para as colônias. Depois de pouco tempo abriu as portas à juventude de língua portuguesa. Conquistou rapidamente tamanha fama, que ainda hoje ecoa uma longínqua saga nos ouvidos dos alunos ainda vivos. Cavalgando durante semanas, acorriam os filhos dos fazendeiros ricos por 600 quilômetros de distância, vindos de todos os recantos do Estado e até de Santa Catarina. Em Porto Alegre e nas cidades vizinhas, era de bom tom que os rapazes estudassem em São Leopoldo”.
Aa esta altura faltava apenas o título máximo de reconhecimento do nível do Conceição, com a equiparação ao Colégio D.Pedro II. Essa conquista concretizou-se com o decreto assinado pelo Ministro, no dia 3 de fevereiro de 1890. A equiparação credenciava o Conceição a conceder o grau de bacharel aos seus alunos. Entre seus egressos consta toda uma elite de comerciantes, industrialistas, magistrados, médicos, dentistas, advogados, militares, professores, políticos, administradores públicos, governantes, diplomatas, sacerdotes e ocupantes de altos postos da hierarquia eclesiástica. Infelizmente a Lei Rivadavia privou, em  1912, o Conceição, de sua condição de equiparado. Este fato, somado ao deslocamento para Porto Alegre todo o peso econômico, político e cultural, levou ao encerramento das atividades do Conceição como educandário de nível médio.
As atividades educacionais dos jesuítas concentraram-se então no Colégio Anchieta, em Porto Alegre. A instituição enveredou por um caminho de formação sólida, que fez dos egressos de suas salas de aula, com poder de competição para conquistar as vagas oferecidas pelos cursos superiores então existentes. Além de cumprir  a missão de ensinar e educar, o Anchieta oferecia uma sólida formação da personalidade, tanto sob o aspecto humano, quanto religioso. As décadas de 1920, 1930 e 1940, podem-se consideradas  como as de maior sucesso do Anchieta, tanto no que diz respeito ao nível de formação profana, quanto ao que se refere à formação de um laicato católico, com destaque para uma elite de intelectuais de grande influência

A ilha do Desterro, hoje Florianópolis, contou com a presença dos jesuítas desde 1622. Em 1747, o rei D. João de Portugal pediu aos jesuítas a criação de um colégio. Com a expulsão dos  jesuítas dos domínios de Portugal, em 1859, a instituição não passou da intenção. Depois da restauração da Ordem, em 1814,  não se passou muito tempo para que o Desterro acolhesse novamente jesuítas com a finalidade de fundar um colégio. Os jesuítas expulsos da Argentina pelo ditador Rosas transferiram-se para  a ilha em companhia de 80 alunos. A  estes foram-se somando, aos poucos, filhos de brasileiros. Entre 1850 e 1853 morreram sete padres de febre amarela, inviabilizando a continuação da obra. Em 1865 o governo imperial assinou um acordo com a Província Romana da Companhia de Jesus, no qual garantia um subsídio aos professores e aos jesuítas que se comprometessem a abrir um ginásio. Mas durante o gabinete Rio Branco, dominado pelos maçons, os subsídios foram suspensos e com isso inviabilizado novamente a continuidade da obra. A instituição foi fechada em 1870.
No começo do século XX, circunstâncias favoráveis terminaram por convencer os jesuítas alemães, então a serviço da Missão no sul do Brasil, da oportunidade de uma quarta tentativa de fundação de um colégio na ilha do Desterro. O governador do estado, Vidal Ramos, estudara no Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, assim como os filhos de uma série de famílias influentes da capital e do interior do estado de Santa Catarina. Desejavam contar com um colégio dos jesuítas na cidade. A tudo isso veio somar-se o bom relacionamento do Pe. Schuler com a população e o entusiasmo de monsenhor Topp, pároco da cidade. Em 1905, numa visita à Missão, o provincial Pe. Schäfer, convidado a visitar Florianópolis, ficou tão bem impressionado que determinou a fundação do colégio. Como o Conceição obteve também equiparação com o D. Pedro II. Por suas salas de aula passaram gerações de comerciantes, políticos, funcionários públicos, profissionais liberais, magistrados, governadores do estado, ministros e até um presidente da República interino. Como o seu congênere o Colégio Anchieta cumpriu, e continua cumprindo até hoje a missão que seus fundadores lhe confiaram há mais de 100 anos.
O Colégio Gonzaga, em Pelotas, surgiu de uma escola fundada pelos jesuítas em 1895. Sua evolução foi rápida ao ponto de em 1905 contar com 300 alunos. O crescimento acelerado  deve ser creditado  à equiparação ao  D. Pedro II e 1902. De menor duração do que o Gonzaga foi o Colégios Stella Maris de Rio Grande. Bem mais tarde na década de 1950 surgiu o Colégio Medianeira em Curitiba. Continua até hoje prestando bons serviços à educação na capital de um dos estados mais prósperos do País.

Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo -

Instituição de Ensino Médio mais antiga do sul do Brasil




Os jesuítas e a imigração alemã – O projeto educacional #1

A escola paroquial comunitária

Em agosto de 1849, desembarcaram em Porto Alegre os primeiros três jesuítas, dois padres e um irmão,  destinados para dar assistência regular aos imigrantes alemães. A metade católica dos imigrantes ficara os primeiros 25 anos sem assistência religiosa . Para, de alguma maneira compensar essa falta, os colonos organizaram comunidades polarizadas em torno de escolas e capelas. Compensavam a falta da missa com o culto dominical leigo, presidido por alguém da comunidade.  Na escola, além do aprendizado da escrita, da leitura, do cálculo, o ensino da religião ocupava um lugar de destaque. Supria de alguma forma a ausência de sacerdotes. Ao aqui chegarem, os padres encontraram, portanto, as comunidades organizadas, tendo como pontos fortes a escola e a capela. Desta maneira  encontraram as condições básicas para começar, sem perder tempo, o trabalho pastoral. O Pe.Lipinski em Dois Irmãos e o Pe. Sedlac em São José do Hortêncio, encontraram o campo preparado com 10 escolas em funcionamento, garantindo o mais essencial para manter um nível cultural e religioso mínimo. E os professores encarregados dessa missão, portanto, as figuras mais importantes nas comunidades,  automaticamente tornaram-se os aliados e parceiros dos padres na sua missão pastoral. Somando à tarefa de ensinar na escola, a função líder da comunidade, sacristão, regente do coral e “diácono leigo”, diríamos hoje, ministrava o batismo em casos de emergência, presidia o culto comunitário e os sepultamentos na ausência do padre. Além disso, socorria os colonos nas mais diversas situações de natureza material, familiar, social e religiosa. Pode-se afirmar que, nas comunidades fora da sedes paroquiais, o professor, sob muitos aspectos, foi mais importante no quotidiano  dos colonos do que o próprio padre.  Como consequência, consolidou-se neste contexto uma estreita colaboração entre a atividade pastoral propriamente dita e os professores nas escolas. Assim o binômio escola-capela, mais tarde escola-igreja, professor-padre, serviram de alicerce na construção do binômio educação-religião, os dois elementos que explicam, em última análise, a consolidação e o sucesso da obra colonizadora, protagonizada pelos imigrantes vindos da Europa do norte e central.
No mesmo ritmo da expansão e consolidação da infraestrutura eclesiástica, deu-se a multiplicação das escolas comunitárias. Entre 1824 e 1850 foram criadas 10 escolas católicas, Até 1875, acresceram mais 40. Ao terminar o século, o número subira para 150. O resultado desse  esforço no plano educacional é facilmente imaginável. Além de significar um poderoso aliado ao incentivo da religiosidade, evitou a instalação do analfabetismo entre os imigrantes alemães e seus descendentes. Paralelamente ao “projeto pastoral”, vai tomando forma  um projeto educacional, que iria marcar definitivamente a presença dos jesuítas no sul do Brasil.
Já na primeira e segunda décadas da sua presença aqui entre os imigrantes alemães e o contato om a realidade social, econômica e política da Província de São Pedro, os jesuítas perceberam que os núcleos  dos imigrantes se multiplicavam e consolidavam rapidamente. A dinâmica apontava para um  forte desenvolvimento quantitativo e qualitativo a curto prazo. A evolução de não  poucos desses núcleos para centros urbanos, oferecendo um comércio crescente, uma indústria incipiente e dotados de grande potencial de progresso, somado a uma sociedade em constante mudança motivada pela urbanização, ocupariam, em questão de uma ou duas gerações, o lugar das comunidades de colonos. E segundo lugar, estava mais do que evidente que, na Província de São Pedro, o poder político e a hegemonia econômica concentravam-se, exclusivamente, nas mãos dos estancieiros de origem lusa ou açoriana. Diante deste quadro, não restava dúvida de que os imigrantes e seus descendentes permaneceriam à margem e à mercê das grandes decisões políticas e econômicas por mais algumas décadas, caso não se tomassem medidas de inclusão social, política e econômica efetivas a longo prazo. Confinar e isolar as comunidades de colonos em suas linhas e picadas equivalia a condená-las à estagnação e ao insucesso. Uma avaliação objetiva mandava que se construíssem, o mais rapidamente possível, pontos capazes de superar a justaposição, no mesmo espaço geográfico e jurídico, de lusos, açorianos, alemães, italianos, poloneses e outros, pontes que permitissem o encontro, o mútuo conhecimento, a mútua aceitação e a colaboração. Só assim se tornaria possível, apesar das diferenças étnicas e culturais, a consciência do pertencimento a uma cidadania comum a serviço de uma mesma nação. Fazia-se inadiável a formação e a educação em instituições de ensino de nível mais adiantado.
Não havia dúvida de que as escolas comunitárias não tinham as necessárias condições de suprir essa demanda. Faziam-se necessárias  instituição de nível médio e superior, em condições de também receber os filhos das oligarquias estancieiras e oferecer-lhes uma formação compatível com o papel que lhes caberia cumprir na sociedade regional e nacional. Ao mesmo tempo, essas escolas deveriam formar as primeiras gerações de líderes civis e religiosos oriundos do meio dos imigrantes.

Capa da primeira cartilha impressa no                                                  Escola-capela construída em 1862 em
Rio Grande do Sul em 1832                                                                  Schneiderstal  -  Ivoti           
  

                               

O Catolicismo social

Os projetos sociais concebidos e postos em prática pela Associação Rio-Grandense de Agricultores e pela Sociedade União Popular, objeto das postagens anteriores, apostaram no êxito de suas propostas, inspiradas no compromisso solidário dos seus associados. “Viribus Unitis” – “Com a união das forças”, simbolizada no “feixe de varas” da Bíblia, foi o símbolo e o Lema da Associação dos Agricultores; o lema da Sociedade União Popular veio a ser o apelo “Omnibus Omnia – Tudo por todos” de São Paulo. Não passam de formulações da mesma concepção do homem e da sociedade a partir de pontos de vista diferentes. A metáfora do “feixe de varas”, tão antigo quanto a Bíblia e, possivelmente, tão antigo quanto a própria humanidade, contém os elementos que permitem  entender um pouco mais os pressupostos, os caminhos que levam à realização do homem como indivíduo vivendo em sociedade. Por sua natureza, o indivíduo, a “vara isolada”, não dispõe das ferramentas suficientes e indispensáveis para a sua realização, tanto material quanto espiritual. Para tanto é preciso que se associe e comprometa com outras “varas”, o maior número possível, num “feixe”, que será tanto mais sólido, quanto maior for o número  e, principalmente, quanto mais bem “amarrado” estiver. As varas, obviamente, representam os indivíduos e a amarração, o elo, isto é, as motivações que as une num feixe. Quanto mais pessoas se reunirem para, num compromisso solidário, empenharem-se na realização dos indivíduos como pessoas e da comunidade como um todo, tanto mais sólidos e duradouros serão os resultados. Essa condição humana tem como pressuposto o fato de que, embora cada individualidade seja única e original ela, ao mesmo tempo, é social. O homem é social por natureza já ensinou Aristóteles, não por convenção ou por contrato, como pregava Cicero na antiguidade e Hobbes e Rousseau nos tempos modernos. O homem é social por natureza pelo fato de ser naturalmente “indigente”, isto é, limitado na realização plena tanto no plano material, quanto no espiritual. As potencialidades inatas no homem só encontram seu pleno desdobramento, em outras palavras, darão fruto, se estimulados pelo convívio social, numa atmosfera fecundada pelo compromisso solidário no seio de uma comunidade. Acontece que, pela sua natureza e a priori, o convívio em sociedade e/ou em grupos organizados, não proporciona os meios suficientes e adequados, para a realização do indivíduo como pessoa. A simples união por convenção ou por contrato social não garante, por si só, um compromisso solidário, ético e moral de reconhecimento, aceitação e respeito ao direito do outro a se realizar plenamente. As condições para uma realização desta natureza encontram-se na inserção numa comunidade solidária. É inegável que, também nos grupos com fundamento nesta base social, há necessidade de um mínimo de convencional e contratual,  pois referências e regras mínimas são indispensáveis para o bom funcionamento de uma comunidade ou uma organização solidária. Mas entre este o tipo de convívio e, o por simples contrato, verifica-se uma enorme diferença. As regras e regulamentos são formulados a partir das próprias bases interessadas. Não são elaborados por indivíduos ou comissões estranhas e depois impostos. Resultam do acerto entre pessoas envolvidas na iniciativa e animadas pelo espírito expresso no “um por todos e todos por um”. Há uma diferença de fundo entre uma forma de organização imposta de cima para baixo, inspirada na ideologia ou nos interesses de um grupo eventualmente no poder, e aquela que brota espontaneamente das bases comunitárias.
Tanto o lema “unindo forças”, quanto “tudo para todos”, implica na avaliação do conceito de propriedade, seus limites e sua destinação. O bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler, definiu o significado  da propriedade, segundo a doutrina do “catolicismo social”, em dois memoráveis sermões pronunciados  em novembro e dezembro de  1848 na catedral daquela cidade. Ele ensina que o único proprietário de todos os bens é  Deus, seu Criador. Ele confia a administração dos bens aos homens para que os preservem, façam frutificar para cobrir as necessidades materiais e espirituais próprias e dos próximos. Sendo assim, a propriedade é relativa.  O proprietário responsabiliza-se pela correta administração, a fim de que a propriedade seja preservada, bem administrada e renda frutos que beneficiam a ele próprio e à coletividade em que está inserido. Trata-se, portanto, de uma posse no sentido legal, mas com uma destinação social. E, de outra parte, a simples e pura abolição da propriedade leva ao desinteresse, ao descompromisso, à alienação, pois subtrai às pessoas a sadia emulação para realizar-se, tanto material quanto espiritualmente. Traça-se, assim, o caminho alternativo entre a posse da propriedade sem restrições e a sua supressão pura e simples. Wilhelm von Ketteler traçou as linhas divisórias, no primeiro sermão sobre a propriedade, pronunciado na catedral de Mainz, no dia 9 de novembro de 1848. Segundo ele, afirmar de um lado que a propriedade não passa de um “pecado” contra a natureza das coisas, de outra parte, não reconhecer na natureza da propriedade uma finalidade social, uma destinação para o bem comum e, por isso, exigir que seja extinta, constitui-se no “pecado” do extremo oposto. Depois de estigmatizar  como “pecados contra a natureza”, tanto a doutrina que concede ao proprietário a posse sem restrições sobre os meios de produção e seus frutos, quanto a doutrina que prega a abolição pura e simples de qualquer tipo de propriedade em nome do bem comum, von Ketteler continua seu raciocínio. A doutrina social católica procura aproveitar o que há de bom em cada uma das compreensões da propriedade e harmonizá-las enquanto rejeita as suas mentiras. Dessa forma, não se postula qualquer tipo de propriedade incondicional que envolva os bens da terra, mas apenas o direito de dispor deles como prevê a ordem estabelecida por Deus. Defendemos o direito à propriedade na medida em que o condiciona à sua preservação e  gerência, até o ponto em que o interesse da ordem, da harmonia e da distribuição dos bens o exigem. E conclui o raciocínio com a afirmação: “sob essa ótica ela, a Igreja, santifica o comunismo, na medida em que prega que os frutos produzidos pela posse, pelo regime de propriedade, tenham como destino o bem comum”. (Ketteler, 1848, p. 12-13). Os sermões de von Ketteler foram pronunciados na catedral de Mainz no mesmo ano (1848) em que foi redigido o “Manifesto Comunista”, em meio a uma atmosfera social em extremo complicada e serviram como fundamento para a formulação da Doutrina Social da Igreja, tornada oficial nas encíclicas “Rerum Novarum” de Leão XIII, “Quadragesimo Anno” de Pio XI e “Mater et Magistra” de João XXIII.
Em resumo temos três vias que concebem, cada uma à sua maneira e sobre fundamentos teóricos diferentes, senão opostos, a natureza dos  meios de produção, seu uso e o destino dos bens produzidos. O individualismo fundamenta-se no princípio de que o indivíduo, a individualidade rege e justifica qualquer atividade, com destaque para a econômica. E para que, no convívio com os demais, o indivíduo consiga realizar-se, pressupõe-se que goze de liberdade sem restrições. O individualismo não vê a sociedade como uma unidade real e ético-orgânica, visando um fim comum. Reduz a sociedade à mera soma dos entes separados, despojando-os do caráter de totalidade orgânica. O “homem livre”, sem restrições, é o ideal em que se fundamenta o “individualismo liberal”. Para ele, na verdade, a sociedade como é normalmente entendida, isto é, como um corpo organizado, não existe. A exagerada importância  atribuída ao indivíduo livre, reduz a sociedade a uma simples soma de indivíduos. Em nome da liberdade, permite-se praticamente tudo ao indivíduo. O coletivismo propõe o caminho oposto ao individualismo no que tange às relações  políticas do cidadão com o Estado, a concepção do próprio Estado e da coletividade ou sociedade. Restringindo e, em casos extremos, privando os indivíduos de toda a liberdade, representa o antípoda do individualismo. Bohnen e Ullmann na obra O Solidarismo. Edit. Unisinos, 1993, p. 117, sintetizaram o que é o coletivismo: “Em sentido lato, o coletivismo ou comunismo resume-se numa estatolatria, erigindo a sociedade em  valor supremo, com desconhecimento completo dos direitos humanos. A família, a pessoa, a cultura, a arte, a filosofia  são instrumentos do Estado com direitos sem limites. A consciência do indivíduo identifica-se com a do Estado, que tudo absorve, especialmente a autonomia da pessoa. O ser humano, produto do coletivo, deve servir à coletividade, na qual está imerso e para a qual vive. Na gigantesca engrenagem do sistema coletivista o ser humano nada mais é do que uma roda, ajudando a movimentar o imenso organismo. Sendo tudo matéria, também a sociedade é-lhe mero epifenômeno (Erscheinungsform), sem dimensão espiritual nem ética. Ético apresenta-se tudo quanto fomenta a luta de classes, para eliminar da face da terra o monstro do capitalismo”. O coletivismo apresenta-se de muitas versões, desde as mais extremadas, até as aparentemente inofensivas. Vai do comunismo clássico, passando pelas diversas formas de fascismos, nazismos, nacionalismos extremados, até formas aparentemente inofensivas em conceitos como brasilidade, germanidade, italianidade, lusitaneidade, latinidade e, por aí vai.

Para começar, o Solidarismo não consiste na sua essência de uma composição do que há de positivo, tanto no individualismo, quanto no coletivismo. Falamos de uma alternativa que se fundamenta em bases ontológicas radicalmente diversas das duas outras formas. O padre jesuíta Heinrich Pesch resumiu a essência do Solidarismo, afirmando  que se trata de  um “sistema que se interpõe – Vermittelndes System – entre o coletivismo e o individualismo. Segundo ele, não importa socializar a propriedade, mas socializar a mente do proprietário. Outro jesuíta, Gustav Gundlach, discípulo de Pesch apontou para a mesma direção, afirmando que o solidarismo se coloca como “terceira via” – uma “Linie der Mitte” -  entre os “ismos” que se lhe opõem. O cardeal Höffner  chamou a atenção de que o “princípio do Solidarismo não pode ser entendido como meio termo entre os diversos “ismos”, porque o princípio da solidariedade tem, ao mesmo tempo, como ponto de partida a dignidade da pessoa humana e a natureza essencialmente social do homem. A individualidade ontologicamente pessoal, vem dotada de uma dignidade que não lhe pode ser contestada por argumentos de qualquer espécie. De outra parte, a natureza pessoal, individual é, ao mesmo tempo, também pela sua natureza, social. Portanto, a realização plena do indivíduo está condicionada ao pertencimento a uma sociedade, a qual lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações em termos de realização pessoal. Define-se assim uma relação de todo diferente das pessoas para com a sociedade na qual estão inseridas. A sociedade não se origina a partir de um pacto acertado entre seus membros estabelecendo as regras, os ordenamentos e os dispositivos legais, com vistas à condução dos negócios de interesse comum. Tão pouco a sociedade é um ente inventado por alguma filosofia ou ideologia, na qual as individualidades são degradadas a peças que movimentam a máquina social em busca de uma utopia de igualdade impossível. O Catolicismo Social alimentou-se e alimenta-se ainda hoje nos fundamentos formulados pelo Solidarismo. Posto em prática na Associação Rio-Grandense de Agricultores e na Sociedade União Popular, foi um poderoso motor de progresso e desenvolvimento humano na primeira metade do século XX. E hoje, não poderia ser uma alternativa válida para sairmos do beco sem saída em estamos metidos?

Os jesuítas e a imigração alemã – O projeto social #3

Assim como a Associação Rio-Grandense de Agricultores fora fundada por ocasião de um Congresso dos Católicos, em 1899, assim também a Sociedade União Popular resultou de uma proposta no nono Congresso, em 1912,  em Venâncio Aires. O tema central do Congresso contemplava a situação cultural, educacional, religiosa e econômica das comunidades teuto-brasileiras católicas. Chegara-se ao ponto em se tornara inadiável a realização de um diagnóstico realista da situação, identificar os principais problemas, partir para um ambicioso projeto de promoção humana de médio e longo prazo, apostar em soluções e escolher os meios e as estratégias de ação apropriadas. No evento destacaram-se duas lideranças que alertaram os congressistas sobre a magnitude da problemática colonial. O Pe. Theodor Amstad representou os religiosos e o Sr. Hugo Metzler, como diretor do jornal Deutsches Volksblatt, os leigos.
Em seu discurso sobre “Os interesses culturais dos alemães católicos do Rio Grande do Sul”, mostrou aos presentes o quanto o nível cultural dos católicos se encontrava em desvantagem em relação aos protestantes. Em vez de uma melhoria presenciava uma piora na situação. Esse fato deixava os alemães em evidente desvantagem no comércio, na indústria, no acesso às profissões liberais e funções públicas, à hierarquia militar, na competição para concorrer a representação política, etc., etc. A maioria das associações recreativas e culturais encontravam-se em mãos de protestantes assim como a maioria dos seus associados. Responsabilizou por este panorama o baixo nível cultural dos alemães católicos. Urgia, pois reverter esse quadro, atacando o mal pela raiz.
Concluído o discurso de Hugo Metzler, o Pe. Amstad ocupou a tribuna. Reforçou as palavras do orador que o precedeu, insistiu na urgência de um esforço comum para enfrentar os grandes desafios com que os teuto católicos se defrontavam. Propôs  como solução a fundação de uma Sociedade União Popular – um Volksverein, aos moldes das associações similares que estavam rendendo bons resultados na Alemanha, Suíça e Áustria. E, para não ficar em palavras e boas intenções, apresentou à assembleia um esboço de estatuto, a partir do qual, explicou aos presentes a natureza, os objetivos, a abrangência e as estratégias da  organização. No documento apresentado, previam-se como objetivos gerais: promover o bem-estar material e espiritual dos católicos de descendência alemã no Rio Grande do Sul. O alemão seria a língua oficial da associação. Qualquer católico, tendo completado 18 anos podia filiar-se como sócio. Como áreas de prioritárias atuação, estavam previstas: 1. Por em prática as resoluções das assembleias gerais dos católicos; 2. preocupar-se com novas colonizações para católicos; 3. Desenvolver iniciativas católicas de beneficência e assistência, concretizadas na medida em que a necessidade o aconselhar; 4. um constante e geral incentivo às escolas paroquiais católicas; 5. Difusão da boa imprensa e da boa leitura, assim como a edição e distribuição gratuita aos associados de uma publicação periódica; 6. A formação do povo  mediante palestras e conversações; 7. A intermediação de empregos e informações; 8. A assistência jurídica aos associados.
Como se pode concluir, a Sociedade União Popular foi uma iniciativa eminentemente confessional e étnica. Comparando a Sociedade União Popular com a Associação Rio-Grandense de Agricultores que a precedeu e a inspirou, fica uma sensação de um tal ou qual desapontamento. Depois da experiência interconfessional e inter-étnica da segunda, entre 1899 e 1910, voltou-se a uma organização declaradamente confessional católica e étnica alemã. O mesmo vale para o novo projeto dos protestantes com a fundação da Liga União Colonial. Tanto no projeto católico, quanto no protestante, percebe-se a preocupação das respectivas Igrejas com suas instituições, doutrina e disciplina. Já os italianos, todos católicos, fundaram seus Comitatti, com objetivos mais pragmáticos de desenvolvimento econômico e social de suas comunidades.
Uma das maiores, senão a maior das preocupações da Sociedade União Popular, encontrava-se na pressão por novos espaços para serem colonizados. As altas taxas de natalidade, somada a uma mortalidade infantil relativamente baixa  para a época, mais o afluxo de novos imigrantes, agravado pelo pequeno tamanho dos lotes coloniais, tornaram-se fatores de permanente pressão populacional. Buscar novas áreas para desafogar a tensão transformou-se numa das prioridades desde o começo do século XX. A Associação Rio-Grandense de Agricultores patrocinara a colonização de Serro Azul, hoje Cerro Largo e Santo Cristo, a partir de 1902. Na década de 1920 já não havia áreas suficientemente extensas no Rio Grande do Sul, para atender à demanda crescente de novas terras. A Sociedade União Popular optou então (a partir de 1926),  para um projeto de colonização no extremo oeste de Santa Catarina, conhecido historicamente como Porto Novo. Hoje compreende os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis. Um projeto similar deveria ser implantado no oeste do Paraná na década de 1950. Por empecilhos diversos não foi implementado. (detalhes na bibliografia indicada).
Desde os primeiros Congressos Católicos, no final do século XIX a preocupação pelo meio ambiente foi um tema recorrente, no período da Associação Rio-Grandense de Agricultores e depois na Sociedade União Popular. É um tema que será tratado numa outra postagem desta série.
No esboço dos estatutos  da Sociedade União Popular, entre as áreas de atuação prioritárias, “desenvolver  iniciativas católicas de beneficência e assistência”. Além de uma preocupação mais genérica pela saúde, higiene e alimentação, destacavam-se, na época, quatro pontos críticos que reclamavam uma atenção mais específica:  hospitais, asilos, orfanatos e sanatórios. No começo do século XX, o acesso a serviços médicos e hospitalares por parte das comunidades coloniais, era muito problemático. Em situações mais graves o recurso – praticamente o único – era Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre. Para chegar até  lá os meios de locomoção resumiam-se em cavalos, carroças, macas improvisadas  e o transporte fluvial até a capital. Com o correr do tempo foram surgindo hospitais e casas de saúde em comunidades maiores e centros urbanos emergentes. Hospitais foram construídos em Montenegro, Feliz, Estrela, Lajeado, Santa Cruz do Sul, Bom Princípio, etc. No mesmo ritmo fixaram-se médicos junto a essas casas de saúde. Foi neste contexto que a Sociedade União Popular decidiu construir um hospital de referência regional, junto ao asilo para idosos já existente desde 1917, em São Sebastião do Caí.
Depois da Primeira Grande Guerra, começaram a multiplicar-se casos de lepra na região de Santa Cruz, Venâncio Aires, Monte Alverne e Arredores. Sabendo da omissão do Estado em relação ao problema,  a Sociedade União Popular chamou a si o enfrentamento da questão.  Uma comissão liderada pelo Pe. Johannes Rick, cuidou dos trâmites legais e práticos. Depois de  encontros com o Presidente do Estado, Borges de Medeiros e autoridades públicas da saúde, o Pe. Rick assessorado pelo médico Dr. Primio Beck escolheu Itapuã como lugar para instalar uma colônia para acolher os leprosos e junto a ela o Amparo Santa Cruz, um orfanato para acolher as crianças pequenas de mães internadas. Todo o empreendimento foi bancado pela Central das Caixas Rurais da Sociedade União Popular, já que o Estado não disponibilizou um centavo.
A pesquisadora Gisela B. Lermen, em sua tese de doutorado sobre a mulher na imigração alemã, deixou registrado: ”A mortalidade materna em consequência do parto, é um dos capítulos mais obscuros da história da colônia”. Os alarmantes dados sobre a mortalidade materna em consequência da precária assistência às parturientes, reclamava medidas urgentes. O dr. Gabriel Schlatter, médico em Estrela e profundo conhecedor da situação da mulher na colônia, levou o problema para o Congresso dos Católicos. O resultado foi a criação, em Estrela, de uma escola para treinar moças da colônia como parteiras. Parteiras treinadas naquela escola ou formadas em outras, circulavam pela colônia como personalidades indispensáveis e respeitadas por todos. Eram conhecidas pelo nome carinhoso de “tia” ou “tia cegonha”, (“Storchentante”).
A escola e a educação mereceu uma atenção toda especial da parte da Sociedade União Popular, por meio da atuação da Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul, fundada em 1898. Não se celebrava um Congresso sem que o tema escola e educação ocupasse um espaço considerável para avaliar a situação do setor. O feito mais vistoso neste sentido foi a fundação da “Escola Normal” para a formação de professores das escolas comunitárias, conhecido como “Lehrer Seminar”, em 1923. E, para concluir este resumo, não pode ser omitido o fato de a Sociedade União Popular ter resolvido reunir numa central as caixas rurais, ou cooperativas de poupança e empréstimo, dispersas pelas localidades mais diversas, independentes e carecendo de uma orientação central. Esta decisão municiou a Sociedade com os recursos indispensáveis para financiar projetos de colonização, como Porto Novo, hospitais e asilos, como São Sebastião do Caí e a colônia de leprosos de Itapuã.

Os personagens mais significativos da Sociedade União Popular

Pe. Theodor Amstad    Pe. Johannes Rick  -  Pe. Max v. Lassberg     Sr. Hugo Metzler