O Catolicismo social

Os projetos sociais concebidos e postos em prática pela Associação Rio-Grandense de Agricultores e pela Sociedade União Popular, objeto das postagens anteriores, apostaram no êxito de suas propostas, inspiradas no compromisso solidário dos seus associados. “Viribus Unitis” – “Com a união das forças”, simbolizada no “feixe de varas” da Bíblia, foi o símbolo e o Lema da Associação dos Agricultores; o lema da Sociedade União Popular veio a ser o apelo “Omnibus Omnia – Tudo por todos” de São Paulo. Não passam de formulações da mesma concepção do homem e da sociedade a partir de pontos de vista diferentes. A metáfora do “feixe de varas”, tão antigo quanto a Bíblia e, possivelmente, tão antigo quanto a própria humanidade, contém os elementos que permitem  entender um pouco mais os pressupostos, os caminhos que levam à realização do homem como indivíduo vivendo em sociedade. Por sua natureza, o indivíduo, a “vara isolada”, não dispõe das ferramentas suficientes e indispensáveis para a sua realização, tanto material quanto espiritual. Para tanto é preciso que se associe e comprometa com outras “varas”, o maior número possível, num “feixe”, que será tanto mais sólido, quanto maior for o número  e, principalmente, quanto mais bem “amarrado” estiver. As varas, obviamente, representam os indivíduos e a amarração, o elo, isto é, as motivações que as une num feixe. Quanto mais pessoas se reunirem para, num compromisso solidário, empenharem-se na realização dos indivíduos como pessoas e da comunidade como um todo, tanto mais sólidos e duradouros serão os resultados. Essa condição humana tem como pressuposto o fato de que, embora cada individualidade seja única e original ela, ao mesmo tempo, é social. O homem é social por natureza já ensinou Aristóteles, não por convenção ou por contrato, como pregava Cicero na antiguidade e Hobbes e Rousseau nos tempos modernos. O homem é social por natureza pelo fato de ser naturalmente “indigente”, isto é, limitado na realização plena tanto no plano material, quanto no espiritual. As potencialidades inatas no homem só encontram seu pleno desdobramento, em outras palavras, darão fruto, se estimulados pelo convívio social, numa atmosfera fecundada pelo compromisso solidário no seio de uma comunidade. Acontece que, pela sua natureza e a priori, o convívio em sociedade e/ou em grupos organizados, não proporciona os meios suficientes e adequados, para a realização do indivíduo como pessoa. A simples união por convenção ou por contrato social não garante, por si só, um compromisso solidário, ético e moral de reconhecimento, aceitação e respeito ao direito do outro a se realizar plenamente. As condições para uma realização desta natureza encontram-se na inserção numa comunidade solidária. É inegável que, também nos grupos com fundamento nesta base social, há necessidade de um mínimo de convencional e contratual,  pois referências e regras mínimas são indispensáveis para o bom funcionamento de uma comunidade ou uma organização solidária. Mas entre este o tipo de convívio e, o por simples contrato, verifica-se uma enorme diferença. As regras e regulamentos são formulados a partir das próprias bases interessadas. Não são elaborados por indivíduos ou comissões estranhas e depois impostos. Resultam do acerto entre pessoas envolvidas na iniciativa e animadas pelo espírito expresso no “um por todos e todos por um”. Há uma diferença de fundo entre uma forma de organização imposta de cima para baixo, inspirada na ideologia ou nos interesses de um grupo eventualmente no poder, e aquela que brota espontaneamente das bases comunitárias.
Tanto o lema “unindo forças”, quanto “tudo para todos”, implica na avaliação do conceito de propriedade, seus limites e sua destinação. O bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler, definiu o significado  da propriedade, segundo a doutrina do “catolicismo social”, em dois memoráveis sermões pronunciados  em novembro e dezembro de  1848 na catedral daquela cidade. Ele ensina que o único proprietário de todos os bens é  Deus, seu Criador. Ele confia a administração dos bens aos homens para que os preservem, façam frutificar para cobrir as necessidades materiais e espirituais próprias e dos próximos. Sendo assim, a propriedade é relativa.  O proprietário responsabiliza-se pela correta administração, a fim de que a propriedade seja preservada, bem administrada e renda frutos que beneficiam a ele próprio e à coletividade em que está inserido. Trata-se, portanto, de uma posse no sentido legal, mas com uma destinação social. E, de outra parte, a simples e pura abolição da propriedade leva ao desinteresse, ao descompromisso, à alienação, pois subtrai às pessoas a sadia emulação para realizar-se, tanto material quanto espiritualmente. Traça-se, assim, o caminho alternativo entre a posse da propriedade sem restrições e a sua supressão pura e simples. Wilhelm von Ketteler traçou as linhas divisórias, no primeiro sermão sobre a propriedade, pronunciado na catedral de Mainz, no dia 9 de novembro de 1848. Segundo ele, afirmar de um lado que a propriedade não passa de um “pecado” contra a natureza das coisas, de outra parte, não reconhecer na natureza da propriedade uma finalidade social, uma destinação para o bem comum e, por isso, exigir que seja extinta, constitui-se no “pecado” do extremo oposto. Depois de estigmatizar  como “pecados contra a natureza”, tanto a doutrina que concede ao proprietário a posse sem restrições sobre os meios de produção e seus frutos, quanto a doutrina que prega a abolição pura e simples de qualquer tipo de propriedade em nome do bem comum, von Ketteler continua seu raciocínio. A doutrina social católica procura aproveitar o que há de bom em cada uma das compreensões da propriedade e harmonizá-las enquanto rejeita as suas mentiras. Dessa forma, não se postula qualquer tipo de propriedade incondicional que envolva os bens da terra, mas apenas o direito de dispor deles como prevê a ordem estabelecida por Deus. Defendemos o direito à propriedade na medida em que o condiciona à sua preservação e  gerência, até o ponto em que o interesse da ordem, da harmonia e da distribuição dos bens o exigem. E conclui o raciocínio com a afirmação: “sob essa ótica ela, a Igreja, santifica o comunismo, na medida em que prega que os frutos produzidos pela posse, pelo regime de propriedade, tenham como destino o bem comum”. (Ketteler, 1848, p. 12-13). Os sermões de von Ketteler foram pronunciados na catedral de Mainz no mesmo ano (1848) em que foi redigido o “Manifesto Comunista”, em meio a uma atmosfera social em extremo complicada e serviram como fundamento para a formulação da Doutrina Social da Igreja, tornada oficial nas encíclicas “Rerum Novarum” de Leão XIII, “Quadragesimo Anno” de Pio XI e “Mater et Magistra” de João XXIII.
Em resumo temos três vias que concebem, cada uma à sua maneira e sobre fundamentos teóricos diferentes, senão opostos, a natureza dos  meios de produção, seu uso e o destino dos bens produzidos. O individualismo fundamenta-se no princípio de que o indivíduo, a individualidade rege e justifica qualquer atividade, com destaque para a econômica. E para que, no convívio com os demais, o indivíduo consiga realizar-se, pressupõe-se que goze de liberdade sem restrições. O individualismo não vê a sociedade como uma unidade real e ético-orgânica, visando um fim comum. Reduz a sociedade à mera soma dos entes separados, despojando-os do caráter de totalidade orgânica. O “homem livre”, sem restrições, é o ideal em que se fundamenta o “individualismo liberal”. Para ele, na verdade, a sociedade como é normalmente entendida, isto é, como um corpo organizado, não existe. A exagerada importância  atribuída ao indivíduo livre, reduz a sociedade a uma simples soma de indivíduos. Em nome da liberdade, permite-se praticamente tudo ao indivíduo. O coletivismo propõe o caminho oposto ao individualismo no que tange às relações  políticas do cidadão com o Estado, a concepção do próprio Estado e da coletividade ou sociedade. Restringindo e, em casos extremos, privando os indivíduos de toda a liberdade, representa o antípoda do individualismo. Bohnen e Ullmann na obra O Solidarismo. Edit. Unisinos, 1993, p. 117, sintetizaram o que é o coletivismo: “Em sentido lato, o coletivismo ou comunismo resume-se numa estatolatria, erigindo a sociedade em  valor supremo, com desconhecimento completo dos direitos humanos. A família, a pessoa, a cultura, a arte, a filosofia  são instrumentos do Estado com direitos sem limites. A consciência do indivíduo identifica-se com a do Estado, que tudo absorve, especialmente a autonomia da pessoa. O ser humano, produto do coletivo, deve servir à coletividade, na qual está imerso e para a qual vive. Na gigantesca engrenagem do sistema coletivista o ser humano nada mais é do que uma roda, ajudando a movimentar o imenso organismo. Sendo tudo matéria, também a sociedade é-lhe mero epifenômeno (Erscheinungsform), sem dimensão espiritual nem ética. Ético apresenta-se tudo quanto fomenta a luta de classes, para eliminar da face da terra o monstro do capitalismo”. O coletivismo apresenta-se de muitas versões, desde as mais extremadas, até as aparentemente inofensivas. Vai do comunismo clássico, passando pelas diversas formas de fascismos, nazismos, nacionalismos extremados, até formas aparentemente inofensivas em conceitos como brasilidade, germanidade, italianidade, lusitaneidade, latinidade e, por aí vai.

Para começar, o Solidarismo não consiste na sua essência de uma composição do que há de positivo, tanto no individualismo, quanto no coletivismo. Falamos de uma alternativa que se fundamenta em bases ontológicas radicalmente diversas das duas outras formas. O padre jesuíta Heinrich Pesch resumiu a essência do Solidarismo, afirmando  que se trata de  um “sistema que se interpõe – Vermittelndes System – entre o coletivismo e o individualismo. Segundo ele, não importa socializar a propriedade, mas socializar a mente do proprietário. Outro jesuíta, Gustav Gundlach, discípulo de Pesch apontou para a mesma direção, afirmando que o solidarismo se coloca como “terceira via” – uma “Linie der Mitte” -  entre os “ismos” que se lhe opõem. O cardeal Höffner  chamou a atenção de que o “princípio do Solidarismo não pode ser entendido como meio termo entre os diversos “ismos”, porque o princípio da solidariedade tem, ao mesmo tempo, como ponto de partida a dignidade da pessoa humana e a natureza essencialmente social do homem. A individualidade ontologicamente pessoal, vem dotada de uma dignidade que não lhe pode ser contestada por argumentos de qualquer espécie. De outra parte, a natureza pessoal, individual é, ao mesmo tempo, também pela sua natureza, social. Portanto, a realização plena do indivíduo está condicionada ao pertencimento a uma sociedade, a qual lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações em termos de realização pessoal. Define-se assim uma relação de todo diferente das pessoas para com a sociedade na qual estão inseridas. A sociedade não se origina a partir de um pacto acertado entre seus membros estabelecendo as regras, os ordenamentos e os dispositivos legais, com vistas à condução dos negócios de interesse comum. Tão pouco a sociedade é um ente inventado por alguma filosofia ou ideologia, na qual as individualidades são degradadas a peças que movimentam a máquina social em busca de uma utopia de igualdade impossível. O Catolicismo Social alimentou-se e alimenta-se ainda hoje nos fundamentos formulados pelo Solidarismo. Posto em prática na Associação Rio-Grandense de Agricultores e na Sociedade União Popular, foi um poderoso motor de progresso e desenvolvimento humano na primeira metade do século XX. E hoje, não poderia ser uma alternativa válida para sairmos do beco sem saída em estamos metidos?

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