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[ Reflexões ]

A revolução agrícola

Simultaneamente no espaço e no tempo à “Revolução Pastoril” aconteceu a “Revolução Agrícola. Darcy Ribeiro chamou as duas “revoluções” como a “Revolução dos Alimentos”. A revolução agrícola começou a tornar-se possível a partir do momento em que os coletores da pré-história perceberam que determinadas espécies de plantas que lhes forneciam sementes, raízes, tubérculos e frutos comestíveis, podiam ser cultivadas, tornando-se mais produtivas e as colheitas mais seguras e previsíveis. O manejo controlado das plantas teve, ao lado do potencial incalculável de novas perspectivas na provisão das necessidades básicas de sobrevivência, uma profunda revolução na relação do homem com seu entorno natural. Da condição de total dependência dos caprichos da natureza os povos agricultores passaram a valer-se cada vez de mais e melhores tecnologias, melhorando os métodos de plantio, identificando mais espécies de plantas passíveis de manejo e, desde muito cedo, manipulando pela seleção e o cruzamento diversas variedades nativas, obtendo híbridos mais produtivos. O homem e a natureza selaram, por assim dizer, uma aliança e solidificaram uma relação de mutualidade que serviu de trampolim para um salto de qualidade sem precedentes: A Revolução dos Alimentos. Foi o ponto de largada para a simbiose entre a ação cultural do homem e o entorno geográfico. Os resultados dessa parceria do agricultor com seu chão fizeram-se sentir de muitas formas. Sem privilegiar uma ou outra, destaquemos algumas.

O preparo da terra, a semeadura, o cuidado com o desenvolvimento das plantas, a colheita e o recomeço de um novo ciclo agrícola, determinaram o fim da vida itinerante exigida pela coleta. Os agricultores tornaram-se sedentários, instalaram moradias em aldeias permanentes.  O chão preferido pelos povos agrícolas primitivos foram as terras planas ao longo dos grandes rios da África, Oriente Médio e Próximo, Índia e China. Assim, a partir do momento em que dispomos de dados históricos mais precisos, encontramos o vale do Nilo, do Eufrates e Tigre, do Indo, do Ganges, do Yankze, do Hoango e outros, cobertos por uma mosaico de terras plantadas e pontilhados por inúmeras aldeias. Em pontos estratégicos centros urbanos de porte polarizavam as atividades de regiões maiores. O gigantesco potencial de progresso desse processo de humanização que se desencadeou desde a “domesticação” das primeiras plantas úteis no Neolítico, ainda não está esgotado. Das várzeas dos grandes rios a agricultura avançou sobre as encostas de montanhas, tomou o lugar das florestas, transformou em grande parte estepes, savanas e pradarias, impulsionada por sempre novas tecnologias de manejo do solo e espécies de plantas. Em regiões inteiras reduziu a curiosidades ecológicas as relíquias da paisagem original. Acontece que a primeira necessidade do homem de 15000 ou 20000 anos passados e do começo do terceiro milênio, tem em comum a necessidade de alimentar-se. E quem fornece os alimentos são, ainda hoje, os criadores de animais e os agricultores, amparados pelas descobertas científicas e a maior eficiência das tecnologias de produção. E com isso o processo de humanização acelera-se e vai-se impondo cada vez mais sobre as últimas paisagens naturais. Em não poucos casos os métodos empregados e a ausência de critérios, tornam evidente que se chegou a um limite crítico. Continuando nesta direção corre-se o risco de quebrar o equilíbrio da simbiose entre cultura e meio ambiente.

Dispensam-se teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto dessa afirmação. Entre os agricultores, o sol, a lua com seus ciclos regulares tornaram-se referência da própria dinâmica da História. E em torno do nascer de do ocaso do sol, alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o agricultor foi elaborando e consolidando todo um universo simbólico, um universo de costumes, hábitos, valores, crenças, cultos e rituais. O sol definindo os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento o florescimento, a maturação das colheitas e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer os fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos e climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade étnica e cultural. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida e juventude, o verão a plenitude do vigor adulto, o outono a colheita dos bons ou maus frutos, o inverno o declínio e finalmente a morte, para, em seguida, germinar nova vida e recomeçar o eterno vir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e os ciclos da vida terminaram confundindo-se simbolicamente numa única e a mesma dinâmica. É neste sentido que se fala em primavera da vida ou vida contada em primaveras. Pela sua importância o sol e a lua, foram adorados como divindades por não poucos povos. 

As observações feitas acima mostram como a identidade étnica e cultual dos caçadores e coletores da pré-história e a dos criadores de animais e agricultores, já no limiar dos tempos históricos, foi o resultado da simbiose entre o entorno geográfico e a satisfação das necessidades materiais e espirituais do homem. Alguém poderia objetar que há um exagero em tudo isso. A insistência no papel do meio ambiente poderia levar à falsa compreensão de que as culturas, pelo menos aquelas rotuladas como “primitivas”, não passam de um produto do entorno físico-geográfico. É verdade que quanto mais se recua na História tanto mais visível fica essa impressão. Há, contudo, uma diferença essencial entre deixar marcas definitivas no quotidiano do homem e o determinismo geográfico puro e simples. Tanto o exagero em minimizar ou até ignorar as circunstâncias geográficas, quanto o de atribuir-lhes um papel além do devido pela própria natureza das coisas, leva a uma avaliação distorcida da gênese e moldagem da cultura. No esforço de identificar o perfil das culturas nos seus estágios mais antigos de evolução e as identidades étnicas que imprimiram nos respectivos povos, não se pode esquecer que a individualidade étnica tem a sua raiz na inteligência reflexa, privilégio exclusivo do homem. Ela responde de forma original e criativa aos estímulos que vem do meio geográfico. É neste particular que reside a sua enorme importância. O cenário geográfico oferece o palco sobre o qual se tornou possível a representação da História do homem. Como ele é capaz de dar respostas alternativas aos estímulos que variam de ambiente para ambiente, as identidades étnicas exibem as marcas dos traços deixados pela paisagem na qual foram moldados. Disfarçados ou flagrantes permeiam e iluminam a complexa urdidura da trama de   que é responsável pela identidade étnica. E do outro lado, a intervenção criativa do homem no seu entorno geográfico, fez dele muito mais do que um fornecedor dos meios de subsistência. Instrumentos, ferramentas, utensílios, armas, enfim, o aperfeiçoamento, a diversificação e especialização de tecnologias, permitiu ao homem intervir sempre mais profundamente no seu entorno, imprimindo-lhe uma feição cada vez mais humanizada. Lentamente aconteceu, assim a simbiose, a síntese entre a paisagem e a alma do homem e, desta relação do homem com o seu chão, floresceram no decurso dos milênios as culturas e moldaram-se as identidades étnicas. O Pe. Balduino Rambo, diante da riqueza de peças arqueológicas pré-históricas no museu de Filadelfia, registrou a seguinte reflexão:

“O homem que, como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pelas florestas e estepes, de forma alguma era meio ou três quartos animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que hoje se fabrica de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, fritar, refogar, cozinhar e, com isso, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente a cozinheiros e cozinheiras, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o poder do fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor dos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, o devemos, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda de um raio, na erupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo com a fricção de madeiras ou batendo um fragmento de sílex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, dos punhais e lanças. Sorte sua que não descobriu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade teria perecido já nos tempos primigênios. Foi inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas agulhas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nu por aí como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem  
menos confortáveis que nossos arranha-céus e palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas comemos até saciar”. (Rambo, Balduino. Três meses na América, p. 400).

[ Reflexões ]

A revolução pastoril

No decorrer do Mesolítico, período de transição entre o Paleolítico e o Neolítico muitos caçadores e coletores deram um passo revolucionário no suprimento de suas necessidades de sobrevivência. O convívio com os animais e a observação dos seus hábitos, deixaram claro que havia uma grande diferença entre as muitas espécies que conviviam nos mesmos territórios com o homem. Uns agrediam, outros evitavam a presença do homem, outros ainda eram em extremo ariscos. Havia-os também que se acostumaram com a presença dos acampamentos de caçadores e coletores e, com o tempo também com os humanos. E neste convívio, de observação em observação, de tentativa em tentativa, algumas espécies, úteis sob diversos aspectos, passaram a fazer parte da rotina do cotidiano. Foi mais do que natural que nesse relacionamento o homem fosse identificando as melhores forma para lidar com diversas espécies, experimentasse influir no seu   comportamento, induzisse novas formas de condutas e assim amoldá-las às próprias conveniências. Deve ter sido assim que, o acúmulo de experiências e soma dos resultados, levou à domesticação de espécies fornecedoras de alimentos e abrigos como ovinos, bovinos e suínos; espécies auxiliares nas atividades diárias como o cão de guarda e espécies empregadas no transporte de carga, tração e montaria. Essa transição evidentemente não aconteceu de um dia para o outro. Foram precisos séculos e milênios par que aos caçadores nômades de animais selvagens sucedessem os pastores e criadores de animais. Essa passagem representou um passo gigantesco em direção à libertação do jugo do homem pela natureza par assumir gradativamente o controle sobre os recursos necessários à sobrevivência.

Ao mesmo tempo em que a domesticação de animais consolidou uma base de sobrevivência previsível, controlável e segura, aconteceu uma revolução semelhante e de repercussão não menos significativa, na obtenção dos alimentos de origem vegetal. A observação, a experiência acumulada com a coleta de frutas, raízes e tubérculos, levou ao cultivo de espécies úteis. Essa “domesticação” de plantas resultou no aperfeiçoamento gradativo das técnicas de lidar com espécies vegetais úteis e, ao mesmo tempo, incorporar sempre mais espécies e variedades.

Tanto a domesticação de animais quanto a “domesticação” de plantas resultou numa completa revolução na relação do homem com seu ambiente natural. É difícil, senão impossível saber quais foram as espécies de animais domesticadas por primeiro. As evidências sugerem que os vestígios de ovelhas, cabras, jumentos, bovinos, além de cães, aparecem como dos mais antigos. Mas não são tanto as espécies em si que fizeram a diferença na relação do homem com seu ambiente natural. Os criadores de animais começaram a viver em acampamentos seminômades. Deslocavam-se por territórios de tamanhos avariáveis de acordo com as pastagens naturais disponíveis. O quotidiano dos pastores consumia-se em função dos rebanhos que, por sua vez, retribuíam com carne, leite, peles e lã. Uma cultura, toda ela voltada para o pastoreio começou a povoar as estepes da África, as estepes semiáridas na periferia dos desertos do Oriente Médio e Próximo, as estepes da Europa e da Ásia e as encostas e os planaltos das cadeias de montanhas. Não há necessidade de insistir que a cultura desses povos nômades ou seminômades assumisse contornos diferenciais inconfundíveis. Sem falar na cultura material impôs-se um tipo de organização social com predominância do patriarcado. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica dos rebanhos, na dinâmica   da vida nos acampamentos e, não em último lugar, nos fenômenos naturais sempre presentes. Fatos quotidianos como nascer, crescer, viver e morrer inspiraram poetas, cantores e músicos. Os astros tiveram um significado todo especial na vida desses povos. O ir e voltar do sol responsável pela dinâmica do quotidiano, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a luta em personalidades mitológicas, veneradas como entidades sobrenaturais ou verdadeiras divindades. A vida em tendas e acampamentos móveis, as vigílias noturnas junto aos rebanhos, induziram uma relação toda peculiar entre os pastores e o firmamento estrelado. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo nada tinha de estático. Os astros movimentavam-se numa coreografia disciplinada, percorrendo caminhos e trajetórias, obedecendo leis imutáveis. De tempos em tempos essa dança celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões estranhos iluminavam a escuridão da noite ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, iluminava o firmamento para, em seguida, submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas, quedas de meteoros, auroras polares, eclipses, devem ter impressionado os pastores em suas noites de vigília junto aos rebanhos e mexido com seu imaginário. E, observando as galáxias em noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas, as constelações, foram desenhando os contornos de figuras de animais familiares como do cão, do capricórnio, de peixes, do touro, do leão e outros   mais. Desta forma o firmamento acima começou a ser povoado por criaturas imaginárias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia concreto. Conta a lenda que Cadmon, um monge pastor de ovelhas da antiga Inglaterra, escutou durante uma vigília solitária junto ao rebanho de ovelhas no meio da noite, uma voz que pedia: “Cadmon, canta-me a canção do começo de todas as coisas”.

Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia, devem ser procuradas entre os pastores de ovelhas e cabras e criadores de gado do Neolítico. A relação real ou imaginária que se consolidou a partir daí entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino do homem não parou de se generalizar. Mesmo hoje, em que o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade e com um número de representantes nada desprezível entre as camadas mais cultas e mais ilustradas. As realidades cósmicas estimulando a curiosidade e a imagina e sendo dincorp0odadas nao quotidiano das culturas As realidades cde gado aress,m seguida, submergir de novo no desconhecido.ção e sendo incorporadas no quotidiano das culturas, não deixam de ser um sinal de que o homem se vê ontologicamente inserido no universo como uma realidade superior. Se levássemos as reflexões avante desembocaríamos provavelmente em discussões filosóficas como aquelas que levaram Spinosa a formular sua  visão panteísta do mundo, Teilhard de Chardin sua grandiosa  unidade universal, Ludwig von  a Bertalanffy a oferecer a sua concepção sistêmica, o Pe. Balduino Rambo afirmar que uma flor ou uma lagartixa não são reflexos de Deus, mas são Deus e Nicolau de Cusa ensinar que “ex patibus omnibus exllucet totum” – “o Todo reflete-se nas  partes”.

O gigantesco passo dado pelo homem com a domesticação de animais, veio acompanhado de uma mudança radical do relacionamento que, de então para o futuro, se consolidaria entre o   homem e o mundo que o cerca. Em poucas palavras é lícito afirmar que dois mundos alheios um ao outro, não raro conflitantes convivem justapostos. O mundo do homem e suas culturas gravitavam em torno dos seus rebanhos de um lado, e do outro, o mundo intocado das florestas, dos animais selvagens, dos desertos, das montanhas, dos campos gelados, intocados pela mão do homem.  Já não há necessidade de ele, como seus ancestrais caçadores, percorrer territórios sem fronteiras em busca de caça, pesca e frutos silvestres. De outra parte, as populações de pastores multiplicaram-se. Os métodos de pastoreio foram aperfeiçoados, novas espécies domesticadas somaram-se às já existentes. Essas conquistas vieram a exigir cada vez mais espaço e as reservas de caça e coleta, explorados pelos bandos e hordas que ainda continuavam neste estágio, foram sendo empurrados mais e mais para o interior das florestas, para as encostas das montanhas e demais territórios impróprios para o pastoreio. A competição por espaços vitais foi-se acentuando sem parar, levando a disputas cada vez mais frequentes e maiores por terras, causando guerras de expansão e a movimentação de povos inteiros em busca de mais espaço.

Uma vez domesticadas as espécies de animais que, com o andar da história, se transformariam na base de sustentação e na própria razão de ser povos criadores e pastores, foram definindo aos poucos seus perfis de identidades. Pela sua própria natureza as culturas dos pastores e criadores de animais desenvolveram-se em espaços abertos, territórios com pastagens naturais de dimensões por vezes gigantescas. São exemplos as savanas da África, as estepes de Europa oriental e Ásia, os pampas argentinos, os campos do sul do Brasil, as pradarias da América do Norte. Não permitem aldeias compactas munidas de uma infraestrutura comunal sólida e fixa em torno da qual gravita a vida de uma comunidade. Os acampamentos em constante movimento atrás dos rebanhos em busca de pasto ou a sede de uma estância de gado com suas benfeitorias e moradias dos peões, em nada é comparável a uma comunidade de agricultores familiares. Há, por ex., uma diferença flagrante entre a paisagem humanizada do sul do Rio Grande do Sul ou dos Campos de Cima da Serra, com suas estâncias de gado e a paisagem humanizada dos pequenos agricultores do centro, norte e noroeste do Estado. Entre as duas realidades, conceitos como “Querência”, “lar”, “Heimat”, “Home” ou “Hogar”, importantes na definição da identidade, levam a compreensões tão distantes que, por vezes, nada parecem ter em comum. Outros conceitos como propriedade, bem comum, relações de parentesco, relações de vizinhança, comunidade e outros, baseiam-se em pressupostos diferentes. O mundo dos pastores tem as dimensões do firmamento, que não raro lhes serve de teto e o limite das estepes, pradarias, pampas, campos naturais, savanas, confunde-se com a linha do horizonte. Com a percepção de que o espaço em que se movimentam é ilimitado, sem cercas   ou muros, fazem com que os pastores se sintam livres para servir-se deles e explorá-los sem restrições.

A síntese que resultou dessa relação existencial dos pastores e criadores com o seu mundo externo e as atividades de subsistência nele desenvolvidas, perpassa como fio condutor, como “Leitmotiv”, todas as culturas que emergiram dessas circunstâncias. Engendraram personagens emblemáticos como o vaqueiro das caatingas do nordeste, o cawboy do meio oeste americano, o gaúcho da Argentina e do sul do Brasil, o vaqueiro australiano, o peão das estâncias. Em determinadas circunstâncias a atividade pastoril e a relacionada de alguma maneira com ela, marcaram períodos históricos inteiros assim como regiões inteiras. Um caso exemplar temos no Brasil com o “ciclo do gado”, que no Rio Grande do Sul vem acompanhado das caravanas de mulas que transportavam charque e couros para o centro do País e as tropas de gado que seguiam o mesmo roteiro. Ao longo da rota percorrida, apelidada também de “estrada das mulas”, surgiram povoados que evoluíram para cidades como Glorinha, Santo Antônio da Patrulha, Rolante, São Francisco de Paula, Jaquirana, Bom Jesus, Vacaria, Lajes, distantes umas das outras um dia de viagem de uma caravana de mulas ou uma tropa de gado.

[ Reflexões ]

E para fechar a série de manifestações que, quem sabe, ajudam numa tentativa de aproximação maior ao âmago complexo e misterioso do significado da floresta, Rosegger afirma: “Somente   homem solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e deixa e apenas árvores para trás”. E segundo Ewelk: “Pois a floresta não representa nenhuma alienação da vida. Pelo contrário. A floresta é vida intensa”. E como conclusão, a opinião de Riehl: “Também quando já não precisarmos mais de madeira seca para aquecer por fora, tanto mais indispensável será a verde para o homem, viva e cheia de seiva”. (Citados por Mantel, 1961, p. 12-13)

Depois do registro de todas essas opiniões, interpretações e conclusões, ousamos uma aproximação maior do significado de floresta. Dependendo do ângulo pelo qual se olha e o interesse que subjaz à análise, a compreensão que se tem da floresta e do conceito que se formula, vão de uma visão utilitária e mecanicista até aproximar-se de uma concepção panteísta do mundo e da natureza. 

A magnitude do desafio que nos espera no esforço da busca de uma definição satisfatória do que seja uma floreta, fica evidente na teorização do problema por Dengels.

A floresta é uma comunidade viva composta por todas as formas e graus imagináveis de interdependências recíprocas, somadas à competição e à mútua ajuda sob as mais diversas formas imagináveis. Comandado pelo princípio do equilíbrio, o qual, sob a influência dos mais variados condicionamentos externos, incorpora constantemente formas de floresta mais ou menos delimitadas, para as quais, apos perturbações e oscilações, se orienta sempre de novo a biocinose. (Citado por Horsmann, 1955, p. 12)

Esse tipo de comunidades é tecnicamente definida como “biocinoses”. No contexto em que o conceito foi criado e está sendo empregado, mostra que seu significado é limitado. Limita-se na sua versão original, à relação mútua que prospera entre os seres vivos no seio de uma comunidade desse tipo. Oferece, sem dívida, uma compreensão da floresta muito mais ampla e muito mais completa do que o conceito de floresta como fábrica de madeira, como refúgio de animais, como abrigo para o homem, como fator de equilíbrio climático e edafológico, de preservação de mananciais de água, etc., etc. Uma análise mais atenta deixa claro de que algumas questões reclamam um aprofundamento maior. O conceito de biocinose, comunidade viva é útil e até certo ponto fundamental. Oferece como que uma macrovisão de ordem, de arquitetura integrada, de funcionalidade interna complementar, entre os elementos que integram uma floresta. Apesar de todas as vantagens o conceito de “biocinose” oferece riscos e armadilhas nada desprezíveis.

Primeiro, silencia ou desconsidera o lugar decisivo que cabe ao solo, ao ar, à temperatura, à topografia, à região climática, à regularidade e à definição na demarcação das estações do ano, à composição, estrutura e disposição das rochas.

Segundo, atribui um peso exagerado à noção de “comunidade viva”. Além das restrições a serem feitas à origem do conceito emprestado à Sociologia, e por isso mesmo deve ser utilizado com precaução quando utilizado na definição da floresta. Visto por esse lado não poucos fatos e fenômenos acontecem à margem da “comunidade de vida”. Já em 1943 Fabricius alertou que o conceito é capaz de induzir ao equívoco.

Trata-se de uma definição de floresta que preocupa, porque cada membro dessa comunidade (portanto seres vivos), exceto poucos casos de uma verdadeira comunidade, somados a casos de parasitismo, cada integrante da comunidade tem perfeitas condições de levar vida autônoma, e conforme cada caso, associa-se a outros seres vivos. Acontece que a acepção alemã do conceito é que cada membro de uma comunidade faz livremente sacrifícios pelo outro e lhe presta serviços, coisas, que em se tratando da floresta, não passam de um grande equívoco. No caso de o conceito não ter sido apresentado com o nome de “biocinose”, provavelmente não teria significado uma grande descoberta. (Wolfarth, 1953, p. 13)

Conclui-se daí que a floresta significa algo mais, e como realidade, situa-se além de uma simples comunidade de vida. Não poucos estudiosos tentam valer-se  do conceito de “organismo”, no esforço de uma compreensão mais objetiva e mais completa da natureza da floresta. Lemnertz faz  a seguinte consideração: “O que se torna evidente na comunidade de vida é o que aparece como a somatória dos indivíduos justapostos. Mas as relações biológicas íntimas e a interdependência funcional, escapam inteiramente à percepção e são passíveis apenas de especulação”.  (em Wolfarth, 1953, p. 13)

A concepção de floresta como organismo autônomo foi pela primeira vez formulada por Alfred Möller, com o objetivo de insistir no ponto de vista de que a floresta representa uma realidade biológica única, em oposição àquelas que a simplificam, reduzindo-a a uma mera fornecedora de matéria prima, perdendo a visão do todo. De tantas árvores e troncos já não se percebe a floresta. Na proposta de Möller nota-se claramente uma reorientação do foco de discussão. Opõe a visão biológica à visão mecanicista e utilitária para superar e compensar as limitações da visão sociológica da floresta. Sinaliza com uma proposta de aproximação da concepção holística, em oposição às tentativas de dissecar as estruturas que compõem uma floresta, dando ênfase à função das partes no todo. “A atividade florestal de caráter permanente percebe na floresta uma entidade viva, uma unidade integrada por inúmeros órgãos, todos operando em conjunto, em regime de reciprocidade”.  (em Wolfarth, 1953, p. 13-14)

A concepção organísmica da floresta, conforme Möller, conquistou adeptos entusiastas e incondicionais. Não tardou, porém, que se escutassem vozes e opiniões fortes apontando para os flancos vulneráveis. Uma dessas opiniões discordantes foi a de Dengler, classificando-a como falsa, como exagerada, capaz de levar a conclusões equivocadas.

De qualquer forma, a ligação é muito frouxa comparada com a de um organismo propriamente dito. Os membros da floresta não são órgãos no sentido estrito do termo (organo-instrumentos), destituídos de uma função e uma destinação própria e a relação superficial com o todo não os priva da sua capacidade vital e funcional.  De outra parte, a floresta não cresce de dentro para fora como um organismo, mas seus membros encontram-se na sua origem numa dinâmica livre, de fora para dentro, como pode ser   observado em qualquer nova formação de uma floresta. (Wolfarth, 1953, p. 53)

Parte de Fabricius o argumento   mais contundente contra a concepção organísmica de Möller: “Quando se atribui à floresta a natureza de um organismo, transfere-se a ela um conceito inspirado no conhecimento da vida dos indivíduos em determinadas partes constitutivas da floresta totalmente ignoradas”. 

Seckholzer completa, afirmando que “a floresta é orgânica, isto é, una na sua organização, mas não organísmica, isto é, um ser vivo”. Segundo ele, falta existir o gérmen como potência do todo. A vida acontece por gênese e a floresta por síntese.

De todas essas reflexões, concepções e formulações, é possível tirar algumas conclusões. Começa pelo fato de que todas elas oferecem mais ou menos elementos que iluminam a compreensão do conceito de floresta. Uns conseguem aproximar-se mais, outros menos, do âmago da questão. 

Em 1943, um outro estudioso e intérprete da floresta, interessou-se por mais uma nuança de não pouco significado. Chamou a atenção para o fato de uma floresta manifestar uma busca permanente do equilíbrio na sua economia interna. 

Sua existência manifesta a propriedade da auto regulação, e caso as perturbações não tiverem ultrapassado  um determinado  nível, restabelece o equilíbrio, uma característica privativa  dos organismos, e por isso,  fala-se de uma  floresta e com razão se entende um organismo, não no sentido de um ser vivo individual, um indivíduo, mas de um organismo de ordem mais elevada. (Wolfarth, 1953, p. 14)

Na literatura especializada encontram-se muitas outras formulações, que em última análise, nada mais são do que tentativas para conceituar o que seja um organismo, enriquecendo-o com nuanças mais ou menos significativas. Da grande   diversidade de formulações, conclui-se que a questão não está definitivamente resolvida. Isso não significa que cada uma delas não acrescente alguma coisa, ou ilumine alguma faceta a mais. Confirma-se o dito quando Aichinger fala em “organismo global”, ou quando Thienemann define o oceano ou a floresta, por exemplo, como uma unidade biológica formada pela comunidade viva mais o espaço vital. Expressões como “totalidade viva”, “sistema”, “forma”, etc., de um lado mostram uma direção comum na qual se esboça a tentativa de definição que se aproxima da natureza da floresta. Do outro, a falta de um consenso em torno de um conceito aceito por todos, prova que nem tudo está tão claro e resolvido. Qualquer uma das formulações contem muito de verdadeiro, deixando, porém, margem a questionamentos.

Parece que o conceito de organismo, combinado com o de sistema, tem tudo para oferecer uma compreensão útil, quando se analisam as marcas que as florestas deixaram nas culturas que nelas se desenvolveram. Na verdade, contemplam todos os elementos que de alguma forma tiveram papel importante na configuração cultural. Começa pela matéria prima: madeira, frutas, fibras, insetos, indispensáveis para a subsistência biológica. Passa pelos animais, pássaros, insetos, microbiologia, o clima, enfim, todo o ambiente natural característico que abrigou o homem e suas culturas. Em poucas palavras, todos esses, e certamente muitos outros, formam para o homem o espaço das suas vivências, o palco sobre o qual de desenrolou e ainda se desenrola a sua história, o entorno visível, material, concreto, invisível e imaginário, que marca  o cotidiano dos povos das florestas e perpassa toda a sua maneira de ser e agir. E para concluir esse esforço para formular um conceito aceitável do que seja uma floresta, registramos a opinião de mais três estudiosos do assunto. É de Rosegger a afirmação de que somente o solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e só ficam árvores. Para Welh a floresta é vida intensa. Mesmo durante a noite e sob a neve, continua acontecendo a vida nas suas milhares de formas e Riehl observa que mesmo quando já não necessitamos da madeira seca, tanto mais o homem sentirá falta da madeira verde, com a sua seiva e sua vida.

Como se pode ver, as florestas oferecem o ambiente natural que talvez reúna, numa síntese praticamente todos os elementos que, de alguma forma, acompanharam o homem na sua trajetória histórica e moldaram o perfil das suas culturas. Em meio ao grande cinturão de florestas subárticas que cobriram e cobrem ainda vastas áreas do hemisfério norte, tanto da Ásia, como da Europa, como da América do Norte, as florestas temperadas e as possantes florestas tropicais, gestaram-se dezenas de milhares de culturas, entre elas das mais importantes e mais decisivas, na moldagem histórica do mundo. Nas florestas os ciclos anuais e mensais adquirem significa todo especial. Nelas fervilha a vida  numa abundância, numa espantosa profusão e numa enorme variedade de formas. Nela brotam milhões de fontes, são percorridas por córregos, arroios rios caudalosos. No seu interior escondem-se lagos misteriosos. Em suas planícies, planaltos e montanhas, a vegetação rasteira, os arbustos e os gigantes da floresta exibem toda a sua exuberância, oferecem seus frutos e essências e convidam o homem a viver à sua sombra e ao seu abrigo, a fantástica história da sua existência. A prodigalidade da floresta lhe garante o alimento, a matéria prima para construir os abrigos, a segurança contra os inimigos naturais e contra os próprios homens. Entre os povos das florestas, revela-se com nitidez, talvez maior do que em outras circunstâncias, o convívio simbiótico, a relação existencial do homem com seu hábitat. As fontes tornam-se sagradas, nos lagos moram espíritos e monstros, fadas, duendes e deuses povoam a florestas e as grandes árvores transformam-se em símbolos. Os ciclos que regem a dinâmica do multicolorido e multifacetado mundo animal e vegetal terminam por traçar a trajetória do homem que nelas vive a sua história.

[ Reflexões ]

A compreensão de que a floresta é um organismo autônomo peculiar, foi pela primeira vez formulada por Alfred Möller. Teve como objetivo insistir no ponto de vista de que a floresta representa uma realidade biológica única, sui generis, em oposição àqueles que a simplificam, reduzindo-a a uma mera fornecedora de matérias primas e assim perdem de vista o todo. De tantas árvores e troncos já não se percebe a floresta. Na proposta de Möller nota-se claramente uma reorientação do foco da discussão. A avaliação biológica contrapõe-se à mecanicista utilitária e, ao mesmo tempo, propõe-se a superar e compensar as limitações da visão sociológica da floresta. Põe todo o peso na percepção holística em contraposição às tentativas parciais de dissecação anatômica das estruturas florestais e a identificação das partes.

A atividade florestal de caráter permanente lida com a floresta como se fosse uma entidade viva, uma unidade integrada por inúmeros órgãos, todos operando em conjunto, em regime de reciprocidade. (Wolfarth, 1953, p. 13-14)

A concepção organísmica da floresta conforme Möller conquistou adeptos entusiastas. Não tardou, porém, que se fizessem ouvir vozes e opiniões fortes apontando para os flancos vulneráveis. Uma dessas manifestações discordantes mais enérgicas foi a de Dengler, classificando-a como falsa, exagerada e passível de levar a conclusões equivocadas.

De qualquer forma a ligação é muito mais superficial do que num organismo propriamente dito. Os componentes da floresta não são órgãos no sentido estrito do termo. De outra parte a floresta não cresce de dentro para fora como um organismo, mas seus componentes encontram-se na sua origem numa dinâmica livre, de fora para dentro, como pode ser observado em qualquer formação de nova floresta. (Wohlfarth, 1953, -p. 14)

Parte de Fabricius o argumento mais contundente contra a concepção organísmica de Möller, observando que, quando se atribui à floresta a natureza de um organismo, transfere-se a ela um conceito inspirado no conhecimento da vida dos indivíduos em detrimento das partes constitutivas totalmente ignoradas. Seckholzer, citado por Wohlfarth, falando da floresta afirma que “ela é orgânica, isto é, una na sua formação, mas não organísmica, isto é, não um ser vivo”. Falta na formação da floresta o gérmen como potência do todo. A vida acontece por gênese, a floresta por síntese. Ou ainda. A floresta tem a capacidade de auto regular-se em condições normais em que as perturbações não tiverem ultrapassado um determinado limite, característica privativa dos organismos. Quando então se fala da floresta como um organismo não se entende um organismo individual, mas um organismo de nível superior. (cf. Wolfarth, 1953, p. 14)               

Todas essas reflexões, concepções e formulações, permitem tirar algumas conclusões. Começa pelo fato de todas elas oferecerem mais ou menos elementos que iluminam a compreensão do que seja uma floresta. Uns mais do que outros aproximam-se do âmago da questão. Da grande diversidade de formulações, conclui-se que a questão não está definitivamente resolvida. Essa constatação significa que cada uma delas acrescenta mais alguma coisa. Aichinger fala em “organismo global” (Gesamtorganismus); Thienemann define a floresta como uma unidade biológica formada pela comunidade viva mais o espaço vital (Lebensraum). Expressões como “totalidade viva” (Ganzheit); “sistema, forma” (Gestalt), etc., mostram de um lado uma direção comum na qual se esboça a tentativa de definição que aproxima da natureza da floresta. Do outro lado a falta de consenso em torno de termo aceito por todos, prova que nem tudo está claro e resolvido. Qualquer uma das formulações contém muito de verdadeiro, deixando, contudo, margem a questionamentos.

Essas tentativas de encontrar um conceito que contempla os elementos essenciais que entram na definição do que é uma floresta, foram formuladas entre 1920 a 1940. Nesse período Ludwig von Bertalanffy  consolidava sua “Teoria Geral dos Sistemas”, finalmente publicada em 1968, na versão original em inglês e em 1977 na versão em português, publicado pela Vozes de Petrópolis. Num apêndice da obra encontramos a definição lógico descritiva do que ele entende por sistema.

Trata-se de um campo lógico-matemático, cuja tarefa é a formulação e a derivação dos princípios gerais aplicáveis aos “sistemas” em geral. Desta maneira, torna-se possível a exata formulação dos termos totalidade e soma, diferenciação, mecanização progressiva, ordem hierárquica, finalidade e equifinalidade, etc., termos que tratam com “sistemas” e implicam na sua homologia lógica. (Bertalanffy, 1977, p. 333)

Submetendo os elementos que entram para dar sentido ao conceito de “sistema, constata-se que todos eles estão presentes quando se fala em floresta. Parece que o conceito de “organismo” complementado pelo de “sistema”, tem tudo para oferecer uma compreensão útil ao analisarmos as marcas que as florestas imprimem nas culturas. Pelo visto contemplam todos os elementos que de alguma forma tiveram papel importante na formação da identidade cultural. Começa pelas matérias primas, madeira, frutas, fibras, indispensáveis para a subsistência biológica. Passa pelos animais, pássaros, insetos, a microflora e microfauna, o clima, enfim todo o ambiente natural característico que abrigou o homem e suas culturas e moldou suas identidades étnicas. Em poucas palavras, todos esses e, certamente, muitos outros, configuram para o homem o espaço de suas vivências, o palco sobre o qual se desenrolou e se desenrola ainda a sua história, o entorno visível, material, concreto como o invisível e imaginário, que marca o cotidiano dos povos da floresta e perpassa toda sua maneira de ser e agir. 

Como se pode ver, as florestas oferecem o ambiente natural que talvez reúna, numa síntese, praticamente todos os elementos que de alguma forma acompanham o homem na sua trajetória histórica e moldaram sua identidade e sua cultura. Em meio ao grande cinturão de florestas subárticas que cobriam e ainda cobrem vastas áreas do hemisfério norte, tanto na Ásia, quanto na Europa e na América, nas florestas temperadas e nas possantes florestas tropicais, gestaram-se dezenas de milhares de culturas, entre elas das mais importantes e mais decisivas, que moldaram a história da humanidade. Nas florestas os ciclos anuais e mensais adquirem significado todo especial. Nelas fervilha a vida numa abundância, numa profusão e numa variedade espantosa. Nelas brotam milhões de fontes, percorrem-nas córregos, arroios e rios sem conta. No seu interior escondem-se lagos misteriosos. Em suas planícies, montanhas e planaltos, a vegetação rasteira, os arbustos e os gigantes de floresta, exibem toda a sua exuberância, oferecem seus frutos e essências e convidam o homem a viver à sua sombra e ao seu abrigo, a fantástica história da sua existência. A prodigalidade da floresta garante ao homem o alimento, as matérias primas para construir seus abrigos, a segurança contra os inimigos e contra os próprios homens. Entre os povos das florestas revela-se com nitidez talvez maior do que em outras circunstâncias o convívio simbólico, a relação existencial do homem com seu habitat. As fontes tornam-se sagradas, nos lagos moram espíritos, deuses, fadas, duendes e muitos outros seres misteriosos e imaginários povoam a floresta e as grandes árvores transformam-se em símbolos. Os ciclos e a dinâmica que regem a dinâmica do multicolorido e multifacetado mundo animal e vegetal, terminam por determinar também a trajetória do homem que aí constrói a sua morada.  

Pela sua própria natureza, as florestas oferecem um ambiente peculiar, formam uma “morada”, proporcionam um “estar em casa”, uma “Heimat”, uma “Querência” e transmitem a sensação de pertencimento a um todo mais amplo, mais vasto, mais universal, mais rico do que qualquer outro entorno geográfico.

As florestas existiram antes do homem e provavelmente continuarão a existir depois dele. Entre esses dois extremos situa-se o tempo em que o homem e as florestas foram obrigados a conviver. A floresta que no passado cobria o chão da nossa terra natal nada tinha de amigável. Era terrível e hostil. Do conflito originou-se, apos muitos desencontros, maus tratos e danos para os dois lados, a certeza: na terra há espaço tanto para o homem quanto para a floresta. Importa para o próprio homem que haja espaço para ambos. As florestas subsistem sem nós homens, não nós homens sem a floresta.  (Horsmann, 1955, p. 5)

Em poucas linhas, e principalmente nas entrelinhas, o autor conseguiu condensar todo o potencial oculto nas entranhas de uma floresta. À primeira vista e ao primeiro contato ela assusta pela sua imponência e desperta sentimentos de temor perante o desconhecido que oculta e o mistério que a povoa. Um longo e penoso aprendizado se faz necessário até que o homem consiga estabelecer uma relação existencial de parceria com a floresta, para que o susto, quem sabe pânico do primeiro contato, evolua para uma convivência mutuamente útil, e finalmente, consolide uma síntese, uma simbiose entre a floresta, a alma do homem, sua cultura e sua história. 

Como se pode ver é na trilha da literatura, e em especial da poética, em que o tema floresta aparece como fonte inspiradora rica e sempre presente. Conclui-se daí que nela se ocultam muito mais nuances e desdobram-se dimensões que o utilitarismo puro e simples, a percepção estática da curiosidade à procura de causas e efeitos, leis naturais, correlações e interdependências estão em condições de perceber, registrar e interpretar. Uexkühl fornece a dica para aprofundar mais um pouco a reflexão.

Embriagados pelo papel de senhores  da natureza, esquecemo-nos de que, mesmo que tudo fosse obra das nossas descobertas, da nossa criação, a nossa tarefa na natureza não se resumiria  em última análise nem em descobrir, nem em criar, mas que nós próprios somos descoberta e criação da natureza, a qual estamos em condição de usar mal, mas que somos tão pouco capazes de criar com as nossas condições físicas e espirituais.  (Horsmann, 1955, p. 7)

Data do tempo do barroco a determinação dada por Christian V. von Schleswig-Hollstein em 1671, empenhado em impedir a destruição das florestas do ducado: “Para que com o tempo não desapareça uma das grandes maravilhas com que Deus brindou a natureza do nosso arquiducado. E Hans Carl von Carlowitz escreveu em 1708: 

Escritores antigos e recentes testemunham que as belas florestas, também as grandes árvores excepcionalmente belas, sempre foram consideradas com grandes honras entre os nossos velhos alemães e seus vizinhos. Por isso, não é de admirar muito que a quantidade, a elegância e o tamanho de tantas árvores reunidas, além de reinar permanentemente um silêncio profundo e sombra escura, fossem tomadas por temor sagrado, atribuindo a esses lugares algo de divino. Entre eles milhões de troncos semeiam-se a si mesmos sem ajudar e sem serem ajudados. Plantam-se sem a ajuda do homem. Deus os semeia, planta, multiplica e os conserva, apesar de todos os obstáculos, intempéries e prejuízos. (Cf, Mantel, 1961, p. 12)

[ Reflexões ]

Flagro mais uma vez o Pe. Rambo numa caminhada solitária pela floresta das sequoias, dando vida e revestindo de símbolos os gigantes que o rodeiam e na penumbra dos quais dizia que se sentia pequenino e insignificante como um camundongo.

“Sem querer, a gente se vê em absoluto silêncio em meio à assembleia dos gigantes. Que cantos não teriam deixado os poetas e cantores do Velho Testamento, que nos falam com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos ciprestes do Monte Sião, se tivessem tido ocasião de escutar a voz de Deus nessas florestas. Quando Davi e Salomão cantavam seus salmos, quando Isaias anunciava a seu povo o advento do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos Tempos sentado no seu trono, sobre muitas dessas árvores já pesavam mais de mil anos. Quando no Gólgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: verdadeira árvore da vida da qual pendeu o Senhor em angústia mortal. O canto de luto das árvores do Paraíso, o canto da árvore da mitologia germânica, o canto da vitória da árvore da Redenção, vêm à memória do forasteiro numa caminhada solitária pela floresta” (Rambo, 2015,)

O Pe. Rambo cultivava um autêntico “caso de amor” pelo planalto rio-grandense, especialmente pelos Aparados da Serra. Renato Dalto resumiu magistralmente essa paixão: “Aí o maior símbolo da floresta é a araucária. Vista de baixo para cima, os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar o olhar em direção à terra para ver que há raízes fortes encravados no chão. Rambo costumava dizer que, nesse lugar, à sombra dessas árvores, era a sua pátria a terra. Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para entender Deus”. (Dalto – Tavares. Na Trilha do Pe. Rambo. 2007, p. 12.)

Parece que ficou claro de que na trilha da literatura, especialmente na poética, que o tema floresta aparece como fonte inspiradora rica e muito presente. Conclui-se daí que nela ocultam-se muito mais nuances e desdobram-se dimensões que o utilitarismo puro e simples, a percepção estática da curiosidade à procura de causas e efeitos, leis naturais, correlações e interdependências, estão em condições de perceber. Faz-se necessário aprofundar a reflexão sobre a floresta e, para começar, lembramos Thren von Uexkühl:

Embriagados pelo papel de senhores da natureza esquecemo-nos de que, mesmo que tudo fosse obra das nossas descobertas, da nossa criação, nossa tarefa na natureza não se resumiria  na análise, nem em descobrir, nem em criar, mas que nós próprios somos descoberta e criação da natureza, a qual estamos em condição de usar mal, mas que somos tão pouco capazes de criar com as nossas condições físicas e o nosso espírito. (Horsmann, 1955, p. 7)

Wilhelm Mantel em sua obra: Wald und Forst – Wechselbeziehungen zwischen Natur und Wirtschaft, publicado em 1961, relembra o que Hans Carl von Carlowitz escreveu em 1708:

Escritores antigos e recentes dão testemunho que as belas florestas, também as grandes árvores excepcionalmente belas, sempre foram tratadas com grandes honras entre os nossos velhos alemães e seus vizinhos. Por isso não é de se admirar que a quantidade, a elegância e o tamanho de tantas árvores reunidas, além de reinar permanentemente silêncio profundo e sombra escura, fossem tomadas por um sagrado temor, atribuindo a esses lugares algo de divino. (...) Milhões de troncos semeiam-se a si mesmos sem serem ajudados. Plantam-se sem a ajuda do homem.  Deus semeia, planta, multiplica e conserva apesar de todos os obstáculos, intempéries e prejuízos. (Mantel, 1961, p. 12)

E para fechar a série de manifestações que, quem sabe ajudam na tentativa de aproximação maior ao âmago complexo e misterioso do significado do conceito de floresta, lembramos Rosegger que afirma: “somente o homem solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e deixa apenas árvores para trás”. Ewelk opina: “Pois, a floresta não representa nenhuma alienação da vida. A floresta é vida intensa. E, para concluir o que pensa Riehl: “Também quando já não precisamos da madeira, utilizaremos a floresta e a floresta nos será útil. E se não precisarmos mais a madeira seca par nos aquecer por fora, tanto mais indispensável será a verde, viva e cheia de seiva”. (cf. Mantel, 1961, p. 12-13).

Depois do registro dessas opiniões, observações e interpretações, tentemos uma aproximação maior do conceito de floresta. Dependendo da perspectiva de que se olha e o interesse que move a análise, a compreensão que se tem da floresta e do conceito que se formula, vai de uma visão utilitária e mecanicista, até aproximar-se de uma concepção panteísta do mundo e da natureza. A magnitude do desafio que nos espera, aparece na teorização do problema por Dengels:

A floresta é uma comunidade viva composta por todas as formas e graus imagináveis de interdependências recíprocas, somadas à competição e à ajuda mútua sob todos os aspectos. Comandado pelo princípio do equilíbrio, o qual, sob a influência dos mais variados condicionamentos externos, incorpora constantemente formas mais ou menos definidas, para as quais, após perturbações e oscilações, a biocinose se orienta sempre de novo. (Wolfarth, E.  1953, p. 13)

Este tipo de comunidade de vida é tecnicamente definido como “biocinose”. No contexto em que o conceito foi criado e está sendo empregado, mostra que o significado é limitado. Restringe-se na sua versão inicial, à relação mútua que prospera entre os seres vivos no seio de uma comunidade desse tipo. Oferece, sem dúvida, uma compreensão muito mais abrangente e muito mais completa do que floresta como fábrica de madeira, refúgio de animais, abrigo do homem, como fator de equilíbrio climático e edafológico, ou de preservação de mananciais de água. Uma análise mais atenta deixa claro que algumas questões reclamam um aprofundamento maior. O conceito de “biocinose”, comunidade de vida é, por certo, útil e pode-se dizer até certo ponto fundamental. Oferece como que uma macro visão de ordem, de arquitetura integrada, de funcionalidade interna e complementar entre os inúmeros elementos que integram uma floresta. Contudo, apesar de todas as vantagens vem acompanhado de riscos e armadilhas nada desprezíveis.

Em primeiro lugar silencia ou desconsidera o lugar fundamental que, no caso, cabe, por ex., ao solo, ao ar, à temperatura, à topografia, à região climática, à regularidade e à definição bem demarcada das estações do ano, à composição, estrutura e disposição das rochas. Em segundo lugar atribui um peso demasiado à noção de “comunidade viva”. Além dessas há ainda as restrições à origem do conceito pois, foi emprestado da Sociologia e, por isso mesmo, pede precaução quando aplicado a floresta. Neste nível não poucos fatos e fenômenos acontecem à margem, senão apesar do conceito de “comunidade de vida”. Já em 1943 Fabricius alertou que o conceito é capaz de induzir ao equívoco.

Trata-se de uma definição de floresta que preocupa, porque cada membro dessa comunidade, exceto poucos casos de uma verdadeira vida em comunidade e alguns casos de parasitismo, cada integrante da comunidade está em perfeitas condições de levar vida autônoma e, conforme cada caso, associar-se a outros seres vivos. Acontece que acepção alemã do conceito de que cada membro de uma comunidade faz livremente sacrifícios pelo outro e lhe presta serviços, coisas que, em se tratando da floresta, não passam de um grande equívoco. Se o conceito não tivesse sido apresentado com o nome de “biocinose”, provavelmente não teria significado uma grande descoberta. Conclui-se daí que a floresta significa algo a mais, e como fato objetivo, situa-se além de uma simples comunidade de vida. Não poucos estudiosos tentam valer-se do conceito de “organismo” na tentativa de uma compreensão mais objetiva e mais completa da natureza da floresta. Lemmel fez a seguinte consideração: O que fica evidente na comunidade de vida, é o que aprece como somatória dos indivíduos justapostos. Mas as relações biológicas íntimas e a interdependência funcional, escapam de todo da percepção e são passíveis apenas de especulação. (Wolfarth, 1953, p. 13)

[ Reflexões ]

Reflexões sobre a floresta.

As florestas formam um ambiente natural que cobre grandes extensões em todos os continentes. As florestas tropicais da Ásia, América, África e Austrália, as florestas pluviais subtropicais no Brasil, as florestas temperadas e subárticas, as mais extensas do mundo, cobrindo grande parte do hemisfério norte, Ásia, Europa e América do Norte, assistiram o nascimento e consolidação de muitos povos e suas culturas. Pois, foi nessas florestas mistas da Europa Central e do Norte que aconteceu a gênese das culturas germânicas.  Por essa razão essa vasta área foi denominada de Germânia. Pela sua própria natureza as florestas oferecem um ambiente peculiar, formam uma “morada”, proporcionam um “estar em casa”, transmitem a sensação de pertencimento mais amplo, mais vasto, mais rico do que em qualquer outro meio geográfico. 

“As florestas existiram antes do homem e continuarão a existir depois dele. Entre esses dois extremos situa-se o tempo em que o homem e as florestas se vêm obrigados a conviver. A floresta que no passado cobria o chão da nossa terra natal nada tinha de agradável. Era temível e hostil. Do conflito, originou-se, após muitos desencontros e danos para os dois lados, a certeza de que na terra há espaço tanto para o homem quanto para a floresta. Para o próprio interesse do homem, importa que haja espaço para ambos! As florestas subsistem também sem nós, não nós homens sem a floresta”. (Horsmann, 1955, p. 5)

Em poucas linhas e, principalmente, nas entrelinhas o autor conseguiu condensar todo o potencial oculto nas entranhas de uma floresta. À primeira vista e ao primeiro contato ela assusta pela sua imponência e desperta sentimentos de temor perante o desconhecido que oculta e o mistério que a povoa. Um longo e penoso aprendizado mútuo se faz necessário até que o homem consegue estabelecer uma relação existencial com a floresta, para que o susto, quem sabe o pânico inicial, evolua para uma convivência mutuamente útil e, finalmente, se consolide uma parceria entre a floresta, a cultura e a História. Horsmann descreve a experiência vivida por seu pai quando ainda jovem, ao deixar a ilha de Heligoland e defrontou-se pela primeira vez com as florestas do continente:

Após poucos minutos de caminhada encontrava-me bem na entrada de florestas sem fim. As árvores elevavam-se à altura do farol da terra natal. Apesar de silenciosas falavam de alguma forma. Incontáveis as árvores o rodeavam, cercando-o pelos lados e o fechavam pelo alto. Tolhiam a visão e o apequenavam ao ponto de fazer escorrer o suor.  Para fora! Correndo livrou-se do sufoco. Somente fora, ao ar livre o peito tornou a encher-se. Meu pai costumava referir-se seguido a essa experiência com a floresta. Décadas foram necessárias para perceber que é possível descansar bem na sombra de uma árvore na floresta. (Horsmann, 1955, p. 6)

Impõe-se agora a pergunta de difícil resposta:

Afinal o que vem a ser uma floresta? Dependendo da perspectiva da qual se avalia, das intenções e interesses do espectador, do nível de leitura que é capaz de fazer, da intimidade ou distância, da atração ou temor do desconhecido, sua compreensão será mais pragmática, mais utilitarista, mais interesseira, mais sentimental, mais romântica, mais filosófica. O resultado pode ser uma sentença como: ‘A floresta é um pedaço de chão destinado a produzir madeira e todos os objetos que nela encontram a matéria prima”. (Horsmann, 1955, p. 6)

Acontece que a inegável utilidade da floresta é incapaz de ultrapassar sequer a epiderme dessa complexa realidade. Além e mais ao fundo dessa compreensão utilitária ocultam-se dimensões que um observador que se aproxima da floresta e com ela estabelece relações, como o cientista, o poeta, o artista, o ecologista, o místico, o filósofo, o teólogo, é capaz de experimentar ou de intuir. O madeireiro entra na floresta com seus instrumentos de trabalho, localiza a árvore que lhe oferece a madeira desejada. Uma preocupação o anima. Por abaixo o mais rápido possível o gigante que levou séculos para crescer, não se importando ou não suspeitando o que seu ato significa em meio aquela aparente confusão de troncos, galhos, arbustos, ervas, insetos, pássaros e animais. Esse nível de relacionamento com a floresta obviamente não tem condições de fornecer elementos, nem quantitativos, muito menos qualitativos, para formular um conceito de abrangência mínima.

O cientista entra na floresta e começa a observá-la com espírito e objetivos mais ambiciosos. Para ele a floresta não se resume naquela infinidade de troncos, cipós, árvores caídas, arbustos e ervas rasteiras. Para ele, a tudo isso subjaz um sentido, realiza-se um processo, cumpre-se uma finalidade. Desde os fenômenos e as realidades mais simples e mais singelas, até as mais grandiosas e espetaculares, os troncos gigantescos, a abóboda moldada pelas copas, a penumbra perpétua povoada por sons, ruídos, urros, gritos, gemidos, assobios e cantos, tudo deixa de ser um aglomerado no qual a multidão dos indivíduos mascara a harmonia e a percepção do todo. Pouco a pouco fica claro que:

A experiência vivida na floresta que oferece apenas proveitos imediatos, não responde a interrogação pela sua natureza. Aprende-se a entender que o chão, as plantas, os animais e um clima adequado, também fazem parte dessa realidade.  E fazem parte também as nuvens que velejam no alto, os raios do sol filtrados pelas copas das árvores, o tamborilar da chuva sobre as folhas e a neve que verga os galhos. Quando, finalmente soubermos de tudo que lhe pertence, será que então penetramos na natureza da floresta? E a que ponto tudo isso se encaixa na dinâmica do termo que avança sem conhecer descanso? (Horsmann, 1955, p. 6-7)

A busca pela natureza da floresta está completa? Satisfaz? Parece que não. A intuição nos sugere que falta algo, alguma coisa mais profunda, algo mais indevassável, para conferir ao conceito a sua plenitude. Sua compreensão exaustiva nos leva para além dos interesses dos que retiram da floresta as matérias primas para construir abrigos ou suprir a alimentação. Convencemo-nos também de que a curiosidade e os métodos dos cientistas conseguiram penetrar apenas até uma determinada profundidade. Acontece que a floresta é uma realidade que de alguma forma interessa a todos. No quotidiano das culturas que emergiram das florestas do mundo, ainda hoje flui a seiva vitalizadora e regeneradora haurida de suas entranhas fecundas e que continua lhes garantindo o fôlego para enfrentar e superar com sucesso as tempestades e calmarias de milhares de anos de história. O eterno e inexorável ciclo de germinar, nascer, crescer, florescer, amadurecer frutos, declinar e morrer, o interrupto vir e devir, fazem com que o homem se veja espelhado na floresta que o cerca e o sustenta. E, ao mesmo tempo, em que se faz um reconhecimento da floresta, esta lhe oferece todo um universo povoado por incógnitas, ameaças e mistérios. A literatura universal está repleta de referências a esta face mais íntima da floresta. Tácito ao descrever a Germânia assim se expressou: “No seu todo, essa terra é assustadora ou por suas florestas ou por seus pântanos”. Sêneca deixou registrado na sua ep. 14: “Ao te aproximares de uma floresta muito antiga formada por árvores vigorosas, na qual a proximidade sobrepõe um galho ao outro, a ponto de não se enxergar nem a luz nem o céu, a imponência, o silêncio e a penumbra te convencem de que algum  deus deve habitar nela”. E Bernardo de Claraval: “Acredita-me, eu mesmo o experimentei. Encontrarás mais para ser lido nas florestas do que nos livros. Árvores e pedras de ensinarão o que nenhum mestre é capaz de te transmitir”. A floresta serve também de fundo para os versos de Eichendorf em “Lorelei”: “A floresta é grande e estás sozinha, bela noiva. Conheces-me bem. Do alto do penhasco meu tranquilo castelo contempla o Reno. É tarde. O frio aumenta. Jamais sairás desta floresta”. Também os versos de Friedrich Rückert: Deparei-me com uma área coberta de floresta e um homem junto à caldeira. Com o machado em punho tomba uma árvore. Pergunto: Que idade tem a floresta Ele responde: A floresta é uma protetora eterna. Moro neste lugar há uma eternidade e as árvores continuam crescendo sem parar. Há 500 anos percorro este caminho”. E os versos de Anette von Dorste-Hülsdorf: “Como é assustadora a penumbra da floresta nos dias de bruma em novembro. Maravilhoso é o gemido dos galhos e o queixume do vento”. As folhas da floresta tornam-se cúmplices do homem nos versos de Eduard Morike: “Vós milhares de folhas da floresta sois testemunhas que beijei a boca da bela Rothraut”. O poeta teuto-brasileiro Hans Grimen, nascido em São Leopoldo, legou-nos uma metáfora tão rica quanto original, nos versos de uma poesia com o título: “Die Kirche im Wald” (A Igreja na Floresta). Nela a floresta transforma-se numa catedral. Em tradução livre:

Pôs-se de pé e subiu até o alto onde a estrutura se confunde com a penumbra das copas. Examina polegada por polegada as paredes cobertas de verde ao ponto de mal perceber os blocos de rocha avermelhada. As colunas redondas com capitéis formados pelos rabos dos macacos acocorados sob a pesada cumeeira e, por sobre o portal uma cruz de ametistas incrustadas na parede. O portal de entrada tem a soleira desgastada como se muitas pessoas passassem diariamente por ele. Fiquei com receio de cruzar com pressa por causa do tapete úmido e intocado estendido sobre ela. Afastado o último medo, entrei.  Um grande espaço se abriu. Encontro-me numa catedral. Na minha frente ergue-se o altar mor de pedra, sem toalhas e sem velas, nos nichos figuras imóveis de santos verdes, da cabeça aos pés e lá o Menino Jesus no colo da Mãe. Com a mão estendida, iluminado por uma claridade mística que penetra por todas as fendas da cobertura, oferece-me uma orquídea cor de fogo. São José com uma coroa de samambaias na cabeça reverencia a Rainha do céu. É assim com todos. A floresta os adorna com seus adereços. A atmosfera que envolve o recinto paralisa a tal ponto que meus passos me assustam e o eco reverbera de leve nas paredes. Olha para o alto à procura das ladainhas petrificadas do sacerdote e a oração dos fiéis, o incenso aqui queimado e que ficou retido em algum lugar da abóboda. Atenção. Algo se movimentou como se fosse o leve farfalhar dos enfeites. Foi um passarinho que bebeu na pia de água benta. Em vez do brilho de bandeiras amarelo vivo, balançam grinaldas e cipós com suas cores vivas pendendo da abóbada. (Em Amstadt. Cem anos de Germanidade, 2005, p. 400-401).


[ Reflexões ]

Até aqui tentamos esboçar em linhas muito gerais como aconteceu a síntese que resultou da busca do homem dos recursos para atender às demandas materiais e espirituais durante o Neolítico. O resultado foi a consolidação da identidade das culturas dos caçadores e coletores. As identidades étnico-culturais consolidadas no decorrer do Paleolítico, resultaram da relação existencial entre o homem e o meio contingenciado pela própria natureza dos fatos. O homem não vive, não sobrevive, muito menos prospera fora dos contextos geográficos que vai encontrando na sua expansão pelos múltiplos territórios que a superfície da terra lhe oferece. Num primeiro momento busca o que lhe é oferecido espontaneamente para sobreviver. A identidade étnica dos primeiros grupos e caçadores, pescadores e ou coletores, exibia as marcas evidentes da batalha travada com o entorno geográfico. Essa situação começou a melhorar na medida em que o homem se equipou com ferramentas e as foi aperfeiçoando e especializando. Aos poucos o “humano” foi-se impondo até aproximar-se do equilíbrio no qual o meio ambiente entrou com as matérias primas, os referenciais simbólicos e a maneira como o homem materializa seu imaginário e torna palpável seu universo mitológico e suas crenças. Orientado pelo instinto de sobrevivência o homem foi buscar na natureza os alimentos de que necessitava. E, desde muito cedo o próprio ato de alimentar-se, essencial par viver, ultrapassaria o simples ato instintivamente compulsório, para fazer-se acompanhar de procedimentos de natureza cultural: hábitos, costumes, proibições, tabus e outros. O ato de alimentar-se assumiu as características de um ritual. E não só o ato de alimentar como também os próprios alimentos passaram a integrar as culturas, revestidos de sacralidade, de poderes mágicos, afrodisíacos, religiosos ou maléficos.

A parceria do homem com a natureza ensinou ao homem caminhos, formas e alternativas de como melhor consolidar uma pareceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da própria história. E, nesse esforço, três desafios estimularam a criatividade. Em primeiro lugar, encontrar alimento e abrigo, assegurando a sobrevivência física. E segundo lugar, descobrir e aperfeiçoar tecnologias eficientes tornando mais fácil a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. O terceiro o mais importante de todos, consistiu no esforço de penetrar nos mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo para, desta forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência.

O convívio imediato, diuturno, íntimo, existencial com a natureza despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua vida desenrolava-se na mesma cadência, nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, alimentando suas crenças, sua religiosidade, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim, a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer,  animava-se e se personificava de acordo com seu significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades naturais e os fenômenos que as acompanhavam assumiam importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. E, em meio a esse processo de interação, de amálgama e de síntese, as culturas e identidades étnicas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.

[ Reflexões ]

A inteligência reflexa, porém, não só compensa a precariedade da especialização anatômico-fisiológica, como a transforma em trunfo para o sucesso na competição por espaços e na batalha pela sobrevivência. As mãos representam o que há de mais emblemático na falta de especialização anatômica. A rigor não passam de um equipamento que serve para tudo e, por isso mesmo, não serve para executar nenhuma tarefa especializada. Neste nível perde em competitividade para as garras de felino, as patas de um cavalo, as unhas de um tamanduá. Executam tarefas de qualquer um desses e outros animais, mas de forma precária e pouco eficiente. Paradoxalmente, entretanto, a falta de especialidade da mão, transforma-a na ferramenta ideal a serviço da inteligência reflexa. Sua versatilidade não conhece limites quando a seu serviço, exatamente por ser anatomicamente inespecífica. Treinada é capaz de executar os movimentos mais complicados e mais insólitos. Que extremidade de animal é capaz de dar conta da multiplicidade, da variedade e da habilidade dos movimentos que o violinista exige dos seus dedos e mãos ao executar uma peça de música. As papilas das pontas dos dedos denunciam irregularidades mesmo invisíveis a olho nu, numa superfície de papel, metal, madeira ou vidro. Acontece que o homem utilizando sua inteligência reflexa transformou, o que em muitos casos seria um estorvo, no trunfo maior da sua superioridade na batalha pela sobrevivência.

E, ao perceber as limitações da mão, não tardou que nossos mais antigos ancestrais concluíssem pela possibilidade de equipá-la com complementos artificiais para compensar sua precária eficiência quando desarmada. Começou, a partir daí, a caminhada vitoriosa do homem através dos milênios, desenvolvendo tecnologias cada vez mais eficientes. Encontrou no próprio entorno geográfico as matérias primas utilizadas para confeccionar os primeiros artefatos. É legítimo supor, sem grandes riscos de errar, que o homem de então se serviu de madeira, osso, chifre. Sendo materiais sujeitos a uma rápida destruição pelo calor, a umidade e ação mecânica da areia e a movimentação do solo, suas marcas apagaram-se sem deixar vestígios. Os artefatos mais antigos evidentemente manipulados por mãos humanas, são os instrumentos líticos. Resistem quase indefinidamente à ação das intempéries, ainda mais quando forem de sílex, vidro vulcânico e similares. Com eles é possível reconstituir a evolução, o aperfeiçoamento e a diversificação dos instrumentos. O artefato que poderíamos chamar de protótipo vem a ser o “machado de punho”. Para os nossos padrões é tosco na sua confecção e rudimentar e precário na sua eficiência. Examinado bem, entretanto, as múltiplas utilidades a que se destinava, foi o protótipo a partir do qual se derivou, nos milênios posteriores, a indústria de ferramentas, instrumentos, utensílios, implementos, destinados a compensar e superar a ineficiência anatômica e a falta de especialização da mão. Com o “machado de punho” foi possível enfrentar as tarefas mais elementares para melhorar as perspectivas de sobrevivência. Servia como instrumento para escavar, cortar, golpear, arremessar. Com ele trabalhava-se a matéria prima para a construção e instalação de abrigos, caçavam-se animais, escavavam-se raízes e tubérculos. Tornava mais fácil e eficiente a defesa contra animais selvagens e inimigos humanos e facilitava a confecção de vestimentas, enfim, permitiu ao homem da pré-história começar a longa e penosa jornada do controle e domínio do entorno geográfico. A partir dos machados de punho abriu-se o leque sem limites de possibilidades para a especialização de instrumentos e aperfeiçoamentos tecnológicos de lascamento por todo o Paleolítico e parte do Neolítico. Os artefatos e instrumentos diversificaram-se e especializaram-se em ritmo geométrico e as técnicas de lascamento atingiram níveis extremos de acabamento e refinamento. Com a entrada do Neolítico o polimento levou as técnicas da indústria lítica a esgotar suas potencialidades. Os instrumentos de madeira, osso e chifre dão conta de uma dinâmica paralela e semelhante a da utilização da pedra como matéria prima. E na medida em que a criatividade do homem foi aperfeiçoando as técnicas e melhorando a eficiência dos instrumentos de madeira, osso, chifre e pedra, descobriu outras matérias primas que aceleraram ainda mais o ritmo civilizatório. Primeiro foram os metais que se encontram em estado metálico natureza, como foi o caso do ouro e do cobre. Mais tarde os artesãos da época aprenderam a produzir bronze amalgamando cobre e estanho. Cada uma dessas conquistas serviu de estopim para uma nova revolução tecnológica, acompanhada por um salto na qualidade e, principalmente, na caminhada em busca do sucesso na luta pela sobrevivência.

Um outro lance decisivo na marcha do homem pelo controle sobre suas fontes de sobrevivência foi o uso do fogo. Importa pouco sabermos como o homem do paleolítico chegou a descobrir a utilidade prática desse elemento da natureza, como entrou em contato com ele e como descobriu as técnicas de o produzir artificialmente. É legítimo imaginar que o contato com o fogo aconteceu por ocasião de incêndios causados por raios ou erupções vulcânicas. Quando   e porque caminhos o homem chegou a produzir artificialmente o fogo permanece no terreno da especulação. De qualquer forma a descoberta dos meios e técnicas para produzir e controlar o fogo e canalizar suas potencialidades em favor da melhoria das condições de sobrevivência, significou um marco divisório sem precedentes, um transpor de “Rubicão”, um radical “antes e depois”, para o homem da pré-história. E pela dupla face de servir e ser útil quando sob controle e, ao mesmo tempo, representar uma fúria devastadora quando fora do controle, transformou-se num indicador de um patamar civilizatório mais avançado.  Avaliado pelo viés da utilidade injetou alento nas culturas que o adotaram em vários níveis que, combinados, foram determinantes na caminhada exitosa do homem pela história. Dois aspectos vitais para a sobrevivência foram especialmente favorecidos. Em primeiro lugar, todos os povos se beneficiaram ao terem acesso ao fogo. Os alimentos que até então eram consumidos “in natura”, de então em diante, cosidos, assados, defumados ou preparados de qualquer outra maneira com o auxílio do fogo, ganharam em sabor, gosto e conservação. Além disso o leque de possibilidades de alimentação foi ampliado e diversificado em muito. Basta lembrar que uma variedade enorme de frutos, raízes, tubérculos só são aproveitáveis como alimentos quando devidamente manipulados com o auxílio do fogo.

Em segundo lugar, para as regiões frias da terra, a descoberta e a manipulação do fogo  constituiu-se num fator de sobrevivência. Mais da metade das terras habitadas desde a pré-história localizam-se em latitudes com temperaturas que impedem a presença permanente do homem, a médio e longo prazo, sem um mínimo de proteção contra o frio. Acontece que exatamente essas regiões, pródigas em caça e pesca, sementes comestíveis como a bolota do carvalho, nozes, pinhões, cerejas, etc. etc., atraíram os caçadores, pescadores e coletores do Paleolítico. A proteção contra as intempéries, de modo especial as temperaturas baixas à noite e nos meses do outono, inverno e primavera, os obrigou a adotar toda uma tecnologia de confecção de vestimentas com peles de animais, instalar-se em abrigos naturais como cavernas ou recorrer a construção de abrigos, casa subterrâneas e outros com os materiais disponíveis. Tudo ficou mais fácil e, principalmente, mais eficiente no momento em que entrou em cena o fogo acompanhado de suas ilimitadas utilidades, tanto na preparação dos alimentos, quando no aquecimento das cavernas e abrigos artificiais.

O significado do fogo não se esgota na sua utilidade prática. Com sua “domesticação”, se é que se pode denominar assim a canalização dos potenciais do fogo em seu favor, os coletores daquela fase da história, dominaram um dos elementos mais úteis e, ao mesmo tempo, mais devastadores da natureza. O fogo sob controle é uma dádiva, um presente inestimável da natureza. Nada mais gratificante para o forasteiro do que refugiar-se do frio, da chuva e do vento, num abrigo aquecido por um fogão improvisado ou um singelo fogo de chão. Nada mais aconchegante e mais inspirador do que, numa noite de neve e geada, acomodar-se junto a um fogão de lenha ou uma lareira, curtir o calor amigo. Fogão, forno, lareira, integraram-se como elementos que o conceito de “lar”, “querência”, “home”, “Heim” e outros tantos moldados pelas milhares de culturas pelas quais se expressam as identidades étnicas. Pode-se afirmar que o fogo ao lado da água permeia a história das culturas e civilizações como um dos referenciais simbólicos mais presentes. Água benta, fontes que rejuvenescem, velas acesas, lamparinas, fogos simbólicos, tochas olímpicas, fogos de conselho, fogos de chão, o fogo sagrado vigiado pelas vestais em Roma, são apenas alguns exemplos mais conhecidos.

De outra parte o fogo fora de controle transforma-se num dos espetáculos mais assustadores e mais devastadores, experimentados pelo homem. Erupções vulcânicas, incêndios de florestas, casas em chama, os raios que assustam, lembram o homem da sua impotência e pequenez diante do poder da natureza.

E exatamente essa dupla face confere ao fogo significados que vão além da sua utilidade prática. A partir da sua descoberta e controle em períodos imemoriais até os dias de hoje, a sua presença é elemento obrigatório na composição das características étnicas. O fogo nas suas mais diversas manifestações, significados e simbolismos, perpassa todas as culturas e representa um componente sempre presente na síntese da identidade étnica.

[ Reflexões ]

Identidade e entorno geográfico

“Toda a cultura é síntese”, escreveu Alexandro Serrano Caldera. Por analogia, é lícito afirmar que toda “identidade é síntese” pois, os elementos que entram na composição da síntese cultural são os mesmos que definem o perfil da identidade étnica. Desta forma, cultura e identidade são os dois lados da mesma realidade. A cultura vem a ser o cenário sobre o qual, no qual e a partir do qual, se esboçam os traços que definem as identidades individuais e coletivas. Evidentemente essa afirmação implica num universo de desdobramentos que assumem características próprias e peculiares em cada caso particular. Uma observação superficial dificilmente perceberá afinidades ou parentescos mais significativos, por ex., entre a cultura dos patagônios da Argentina e dos tiroleses da Áustria; entre os esquimós do Alasca e os pigmeus de Angola; entre os escoceses e os nativos da Austrália. Há, porém, evidências inegáveis que apontam para uma unidade radical da espécie humana. O homem é uma espécie zoológica que exibe todas as características de natureza biológica inerentes a esse conceito. Existiu e existe uma única espécie como prova tanto a paleontologia humana, quanto os critérios usuais de classificação zoológica das raças humanas historicamente conhecidas, quanto o mapeamento do genoma humano. Uma identidade a nível taxonômico e a nível biogenético une, portanto, todas as raças humanas. 

A constatação que se acaba de fazer leva a uma conclusão importante quando se pretende estabelecer a extensão e os limites na formação da identidade étnica e cultural. O homem como espécie biológica insere-se ontologicamente no mundo natural e isto de várias formas. Em primeiro lugar, o corpo humano é constituído pelos mesmos elementos químicos que entram na formação da natureza mineral em todos os seus níveis. Em segundo lugar os mesmos processos e as mesmas leis químico-fisiológicas básicas que mantém em funcionamento qualquer ser vivo, garantem as funções vitais do organismo humano. Em terceiro lugar, como qualquer outro ser vivo o homem vive numa relação existencial com o meio geográfico que o abriga. O conjunto das atividades fisiológicas necessárias à vida buscam em a natureza a reposição das matérias primas processadas pelas atividades vitais. Da mesma forma a sobrevivência da espécie humana depende das condições climáticas e das matérias primas e dos recursos naturais que lhe garantem abrigo e proteção contra as intempéries e as ameaças oriundas da parte de inimigos humanos e animais predadores. Essa realidade põe-nos frente ao primeiro dos grandes conjuntos de componentes que determinam a gênese de uma identidade étnica e cultural.

A relação primária com o meio  geográfico pelo fato de o homem emergir dele e nele sobreviver, como uma espécie taxonômica igual a qualquer outro mamífero, não pode ser considerado como ponto de partida da identidade étnica e cultural. Este ponto de partida deve ser procurado num outro momento e num outro nível. A identidade étnico-cultural primigênia começa a se esboçar no momento em que entrou em cena o primeiro ser humano em cujo cérebro faiscava a centelha da “inteligência reflexa”. Pouca diferença faz se o fato ocorreu há milhares ou milhões de anos, se foi na África, na Ásia ou em outro lugar qualquer do planeta terra. Pouco importa também, se aquele ser exibia uma fisionomia mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. As regras, as leis e as dinâmicas que até hoje regem a construção da identidade começaram a tomar forma, a partir do momento em que despontou  no cenário desta terra o homem que, com olhar curioso e inquiridor embrenhava-se nas florestas, cruzava estepes, adentrava os desertos, escalava montanhas, percorria as planícies e se banhava nos rios. Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi aprendendo a identificar e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em alimentos, em vestuário, abrigo e proteção. Sem demora  as observações  e as reflexões levaram esses humanos que, ainda hoje, rotulamos erroneamente de “primitivos”, a equipar as mãos com artefatos  e instrumentos que tornavam o acesso  e o manuseio dos alimentos mentos trabalhoso, mais rendosa  caça, mais segura a defesa contra os animais ferozes e mais eficiente a proteção contra as intempéries.

E assim, estavam postas as premissas para começar, lentamente, numa dinâmica auto     alimentada, num ritmo cada vez mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios e montanhas, entre o homem e as estepes, os desertos, os gelos polares, os trópicos e os climas temperados. Ao mesmo tempo em que foi aperfeiçoando e diversificando as tecnologias de fabricação de ferramentas para assegurar a sua sobrevivência física, cresceu o interesse pela compreensão dos fenômenos, das incógnitas e mistérios com que deparava no seu cotidiano. O nascer, o viver e morrer dos animais e dos homens, os ciclos da natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da lua, o germinar, o crescer, o florescer, o amadurecer dos frutos das plantas, tudo desafiava a curiosidade primigênia. E, na procura de respostas tomou forma todo um corpo de crenças, mitologias e simbologias que terminaram por formar uma cosmovisão peculiar para cada situação concreta.

Levado pelo instinto de sobrevivência, o homem foi buscar no seu entorno geográfico os alimentos de que necessitava. E, desde logo, o próprio ato de alimentar-se, vital para a sobrevivência, ultrapassaria o ato elementar instintivamente compulsório, para fazer-se revestir de procedimentos de natureza cultural, como hábitos, costumes, etiquetas, proibições ou tabus. O ato de alimentar-se foi assumindo entre todos os povos as características de um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte integrante das respectivas culturas, ou tratados como algo sagrado, dotado de poderes mágicos, milagrosos, ou então proibidos como maléficos, impuros ou simplesmente nocivos à saúde.

O convívio do homem com a natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como melhor consolidar uma parceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história.

E, neste esforço, três tipos de desafios estimularam a criatividade do homem. Em primeiro lugar, encontrar na natureza os alimentos, abrigos e defesas para garantir a sobrevivência física. Em segundo lugar desenvolver tecnologias cada vez mais eficientes para facilitar a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. Em terceiro lugar, penetrar os mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo e desvendar as incógnitas da própria existência.

A relação imediata, íntima e diuturna com a natureza despertou no homem a clara percepção de fazer parte integrante dela. Além de dela depender para a vida e a morte, a sua vida desenrola-se na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, a humanidade foi construindo suas culturas, suas identidades, suas histórias, seus imaginários, suas simbologias, suas mitologias, suas crenças, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim suas cosmovisões. Tudo que rodeava os homens, por assim dizer, animava-se, personalizava-se de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades e fenômenos naturais assumia vida e importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam ao imaginário. Aconteceu dessa maneira, um espelhar-se recíproco entre o homem e os fatos, fenômenos e realidades do entorno geográfico em que vivia e em meio a esse processo de interação, as culturas foram desenhando seus perfis, as identidades individuais e coletivas definindo suas características e a História traçando seu rumo

Dispensam-se Teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto da constatação com que concluímos a postagem anterior. Entre os povos agricultores, o sol e a lua, imprimindo com seus ciclos regulares a cadência da natureza, tornaram-se referência da própria dinâmica da história. Em torno do nascer do sol, da alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o homem foi elaborando e construindo todo um universo simbólico, todo um universo de costumes, de hábitos, de valores, de crenças, cultos e rituais. O sol definia os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comandava a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse perpétuo fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer, fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos, climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e culturas. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida; o verão o vigor e plenitude adulta; o outono a colheita dos frutos, o inverno o declínio e, finalmente, a morte para, em seguida germinar nova vida e recomeçar o interminável ir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e as fases da vida confundem-se simbolicamente numa única dinâmica. E neste sentido que se fala em primavera da vida ou a idade é contada em primaveras. Pela sua importância, o sol será cultuado como divindade e a lua como deusa. 

No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Apenas alguns exemplos mais. A água indispensável à vida figura como objeto de veneração e não poucas culturas. Água e vida chegam ser sinônimos. As fontes que brotam das entranhas da terra, vem revestidas de propriedades especiais, inclusive mágicas, para curar doenças, rejuvenescer ou regenerar. Por exemplo, banhar-se no primeiro dia do ano numa fonte promete vida longa e saudável. A água entra como elemento simbólico no batismo, na água benta e muitas outras ocasiões. 

Pelo mistério natural que costuma envolver montanhas, vulcões, lagos, mares, florestas, desertos, oceanos, etc., eles terminaram pro personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na foram de crenças, mitos, tabus e outros significados mais. Os deuses e deusas do universo mitológico grego no monte Olimpo, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam com o que acontecia no cotidiano dos mortais. Uma atitude olímpica tornou-se sinônimo de postura sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, acima do bem e do mal. O vulcão Fuji simboliza a própria história do povo japonês. Espíritos que não toleram a presença do homem povoam lagos como o de Lhanguihe no sul do Chile, fazendo com que as proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX.

Poderíamos continuar enumerando ao indefinido os vínculos e as relações das culturas e identidades como entorno físico-ambiental. Não é objetivo aqui pois, esta é apenas uma das condicionantes da identidade étnica e cultural. Outros elementos de importância decisiva não podem ser esquecidos.

Não há a mínima possibilidade de formar uma ideia, nem mesmo superficial, do perfil dos primeiros grupos humanos. As pegadas deixadas por eles apagaram-se a tal ponto, que até nós chegaram apenas alguns vestígios da sua fisionomia física e praticamente nada da sua identidade cultural. A curiosidade, portanto, para saber como eram esses humanos quanto aos seus traços físicos e, principalmente, quanto à sua identidade cultural, não ultrapassam o nível das hipóteses, das teorias e especulações, possíveis com os dados objetivos precários de que   dispomos. Uma coisa, porém, é certa. A matriz original de todas as culturas e identidades étnicas foi apenas, pelo que se pode deduzir, o ponto de partida de uma dinâmica que acelerou o ritmo e multiplicou as formas, na medida em que a história avançava.  O modelo gráfico do globo terrestre utilizado por Teilhard de Chardin para visualizar a evolução da espécie humana, torna mais fácil a compreensão da gênese e multiplicação das formas étnico-culturais. Os meridianos simbolizando as diversas formas culturais partem do mesmo ponto no “polo Sul”. Abrem-se, multiplicam-se e diversificam-se na medida em que se aproximam do equador.  Do equador em direção ao “polo Norte” seguem uma dinâmica inversa. Aproximam-se, fundem-se e tendem a terminar num ponto só no “polo”. Do “alfa”, do ponto de partida tanto geográfico como filético, em algum lugar da África, segundo Teilhard, a humanidade começou a sua trajetória de expansão e ocupação da terra.

Os dados paleoantropológicos e culturais de que dispomos de momento não são suficientes ao ponto de permitir uma reconstituição, passo a passo, da expansão da espécie humana, desde o seu foco de irradiação original. Os indícios apontam para uma ocupação, em ondas sucessivas, de toda a África com uma concentração maior na orla do Mediterrâneo. Seguiu o povoamento, também na forma de vagas sucessivas do oeste para o leste, tomando de assalto toda a Euro-Ásia. Teilhard de Chardin observou três “pulsações” sucessivas, tendo como ponto de partida na pré-história, passando pela proto-história para, finalmente, entrar nos tempos históricos propriamente ditos. A primeira dessas pulsações ou ondas alastrou-se do Sul para o norte pela costa do Pacífico até os contrafortes da Mongólia. Pouca coisa se sabe sobre o nível cultural dessa humanidade primitiva. Sabe-se, entretanto, que o extremo norte desse avanço, em Chukutien, o Sinântropo com domínio sobre o fogo e técnicas de lascamento de pedras, encontrava-se relativamente bem organizado em grupos sociais e, por isso mesmo, dotado de uma considerável força de penetração em novos territórios. A segunda pulsação partiu do norte dos Alpes e não parou de avançar para o leste, até encontrar a costa do Pacífico. Seus vestígios bem caracterizados encontram-se mais visíveis no vale fértil do rio Amarelo na China. Essas vagas humanas tem como protagonistas o homem de Aurignac do Paleolítico Superior. Além do fogo e das técnicas rudimentares de lascamento de pedra, já eram cultores da arte. Sobrepõe-se numa sequência brusca aos depósitos do paleolítico antigo e médio e povoou os espaços que as populações anteriores, pouco numerosas, ainda não tinham ocupado.

A terceira onda começou na entrada do neolítico, com a predominância absoluta do “Homo sapiens” e a saída de cena definitiva de todas as outras raças humanas mais arcaicas. Sempre conforme Teilhard de Chardin, duas grandes áreas geográficas serviram de cenário para o novo estágio civilizatório que teve seu começo com a agricultura e a domesticação de animais. Estas duas formas de subsistência, superando de vez a necessidade constante de os coletores e caçadores se deslocarem, sem parar, por vastos territórios, fazendo com que os agrupamentos humanos não passassem do nível de bandos e hordas nômades. A nova situação trouxe consigo o sedentarismo, pelo menos relativo. Em seu lugar multiplicaram-se coletividades mais numerosas e mais bem organizadas.  O fenômeno evoluiu em duas grandes áreas geográficas.  A primeira, na África do norte mediterrânea e a outra na Euro-Ásia central e norte, desde a Europa Central até a Ásia Central e do Norte.

A essa altura a humanidade encontrava-se no limiar da Pré-História para a História, por volta de 15000 a 20000 anos passados. Demorei-me propositadamente um pouco mais na caracterização da fase que costumamos chamar de Pré-História, para mostrar como a identidade étnica e cultural é uma realidade em permanente construção e em constante evolução, motivada pelas diversas contingências em que a humanidade como um todo e seus grupos individualmente considerados, são obrigados a passar. E para entender melhor essa dinâmica destacamos alguns fatores mais determinantes que atuam na história.

O mais importante foi, sem dúvida, o fato de o homem distinguir-se e distanciar-se de todas as outras espécies de animais, também dos antropoides, pela “Inteligência Reflexa”. Sob o aspecto físico, anatômico, fisiológico, biogenético e instintivo, o homem tem suas raízes fincadas ontologicamente na Biosfera. Mas distancia-se dela e a ultrapassa de vez pela Inteligência Reflexa, ou pela capacidade de Reflexão. Esta eleva a espécie humana a uma esfera inteiramente nova: a Noosfera como a chamou Teilhard. O potencial dessa novidade é de tal ordem que sobre a Litosfera, a Biosfera e a Hidrosfera, envoltas na atmosfera, alastra-se pela terra, em progressão geométrica, a urdidura da trama da Noosfera. Se a espécie humana tivesse sido apenas mais uma espécie de antropoide, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou então, reduzida a uma espécie condenada a sobreviver sem grandes perspectivas. Suas mãos não especializadas servem para tudo e, por isso mesmo, não servem para nada de específico. Seus dentes caninos servem para pouca coisa mais do que completar a arcada dentária. Seus sentidos pouco apurados não garantem os alertas e alarmes indispensáveis num entorno no qual, atrás de cada árvore, cada rocha, cada arbusto ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem.