[ Reflexões ]

Reflexões sobre a floresta.

As florestas formam um ambiente natural que cobre grandes extensões em todos os continentes. As florestas tropicais da Ásia, América, África e Austrália, as florestas pluviais subtropicais no Brasil, as florestas temperadas e subárticas, as mais extensas do mundo, cobrindo grande parte do hemisfério norte, Ásia, Europa e América do Norte, assistiram o nascimento e consolidação de muitos povos e suas culturas. Pois, foi nessas florestas mistas da Europa Central e do Norte que aconteceu a gênese das culturas germânicas.  Por essa razão essa vasta área foi denominada de Germânia. Pela sua própria natureza as florestas oferecem um ambiente peculiar, formam uma “morada”, proporcionam um “estar em casa”, transmitem a sensação de pertencimento mais amplo, mais vasto, mais rico do que em qualquer outro meio geográfico. 

“As florestas existiram antes do homem e continuarão a existir depois dele. Entre esses dois extremos situa-se o tempo em que o homem e as florestas se vêm obrigados a conviver. A floresta que no passado cobria o chão da nossa terra natal nada tinha de agradável. Era temível e hostil. Do conflito, originou-se, após muitos desencontros e danos para os dois lados, a certeza de que na terra há espaço tanto para o homem quanto para a floresta. Para o próprio interesse do homem, importa que haja espaço para ambos! As florestas subsistem também sem nós, não nós homens sem a floresta”. (Horsmann, 1955, p. 5)

Em poucas linhas e, principalmente, nas entrelinhas o autor conseguiu condensar todo o potencial oculto nas entranhas de uma floresta. À primeira vista e ao primeiro contato ela assusta pela sua imponência e desperta sentimentos de temor perante o desconhecido que oculta e o mistério que a povoa. Um longo e penoso aprendizado mútuo se faz necessário até que o homem consegue estabelecer uma relação existencial com a floresta, para que o susto, quem sabe o pânico inicial, evolua para uma convivência mutuamente útil e, finalmente, se consolide uma parceria entre a floresta, a cultura e a História. Horsmann descreve a experiência vivida por seu pai quando ainda jovem, ao deixar a ilha de Heligoland e defrontou-se pela primeira vez com as florestas do continente:

Após poucos minutos de caminhada encontrava-me bem na entrada de florestas sem fim. As árvores elevavam-se à altura do farol da terra natal. Apesar de silenciosas falavam de alguma forma. Incontáveis as árvores o rodeavam, cercando-o pelos lados e o fechavam pelo alto. Tolhiam a visão e o apequenavam ao ponto de fazer escorrer o suor.  Para fora! Correndo livrou-se do sufoco. Somente fora, ao ar livre o peito tornou a encher-se. Meu pai costumava referir-se seguido a essa experiência com a floresta. Décadas foram necessárias para perceber que é possível descansar bem na sombra de uma árvore na floresta. (Horsmann, 1955, p. 6)

Impõe-se agora a pergunta de difícil resposta:

Afinal o que vem a ser uma floresta? Dependendo da perspectiva da qual se avalia, das intenções e interesses do espectador, do nível de leitura que é capaz de fazer, da intimidade ou distância, da atração ou temor do desconhecido, sua compreensão será mais pragmática, mais utilitarista, mais interesseira, mais sentimental, mais romântica, mais filosófica. O resultado pode ser uma sentença como: ‘A floresta é um pedaço de chão destinado a produzir madeira e todos os objetos que nela encontram a matéria prima”. (Horsmann, 1955, p. 6)

Acontece que a inegável utilidade da floresta é incapaz de ultrapassar sequer a epiderme dessa complexa realidade. Além e mais ao fundo dessa compreensão utilitária ocultam-se dimensões que um observador que se aproxima da floresta e com ela estabelece relações, como o cientista, o poeta, o artista, o ecologista, o místico, o filósofo, o teólogo, é capaz de experimentar ou de intuir. O madeireiro entra na floresta com seus instrumentos de trabalho, localiza a árvore que lhe oferece a madeira desejada. Uma preocupação o anima. Por abaixo o mais rápido possível o gigante que levou séculos para crescer, não se importando ou não suspeitando o que seu ato significa em meio aquela aparente confusão de troncos, galhos, arbustos, ervas, insetos, pássaros e animais. Esse nível de relacionamento com a floresta obviamente não tem condições de fornecer elementos, nem quantitativos, muito menos qualitativos, para formular um conceito de abrangência mínima.

O cientista entra na floresta e começa a observá-la com espírito e objetivos mais ambiciosos. Para ele a floresta não se resume naquela infinidade de troncos, cipós, árvores caídas, arbustos e ervas rasteiras. Para ele, a tudo isso subjaz um sentido, realiza-se um processo, cumpre-se uma finalidade. Desde os fenômenos e as realidades mais simples e mais singelas, até as mais grandiosas e espetaculares, os troncos gigantescos, a abóboda moldada pelas copas, a penumbra perpétua povoada por sons, ruídos, urros, gritos, gemidos, assobios e cantos, tudo deixa de ser um aglomerado no qual a multidão dos indivíduos mascara a harmonia e a percepção do todo. Pouco a pouco fica claro que:

A experiência vivida na floresta que oferece apenas proveitos imediatos, não responde a interrogação pela sua natureza. Aprende-se a entender que o chão, as plantas, os animais e um clima adequado, também fazem parte dessa realidade.  E fazem parte também as nuvens que velejam no alto, os raios do sol filtrados pelas copas das árvores, o tamborilar da chuva sobre as folhas e a neve que verga os galhos. Quando, finalmente soubermos de tudo que lhe pertence, será que então penetramos na natureza da floresta? E a que ponto tudo isso se encaixa na dinâmica do termo que avança sem conhecer descanso? (Horsmann, 1955, p. 6-7)

A busca pela natureza da floresta está completa? Satisfaz? Parece que não. A intuição nos sugere que falta algo, alguma coisa mais profunda, algo mais indevassável, para conferir ao conceito a sua plenitude. Sua compreensão exaustiva nos leva para além dos interesses dos que retiram da floresta as matérias primas para construir abrigos ou suprir a alimentação. Convencemo-nos também de que a curiosidade e os métodos dos cientistas conseguiram penetrar apenas até uma determinada profundidade. Acontece que a floresta é uma realidade que de alguma forma interessa a todos. No quotidiano das culturas que emergiram das florestas do mundo, ainda hoje flui a seiva vitalizadora e regeneradora haurida de suas entranhas fecundas e que continua lhes garantindo o fôlego para enfrentar e superar com sucesso as tempestades e calmarias de milhares de anos de história. O eterno e inexorável ciclo de germinar, nascer, crescer, florescer, amadurecer frutos, declinar e morrer, o interrupto vir e devir, fazem com que o homem se veja espelhado na floresta que o cerca e o sustenta. E, ao mesmo tempo, em que se faz um reconhecimento da floresta, esta lhe oferece todo um universo povoado por incógnitas, ameaças e mistérios. A literatura universal está repleta de referências a esta face mais íntima da floresta. Tácito ao descrever a Germânia assim se expressou: “No seu todo, essa terra é assustadora ou por suas florestas ou por seus pântanos”. Sêneca deixou registrado na sua ep. 14: “Ao te aproximares de uma floresta muito antiga formada por árvores vigorosas, na qual a proximidade sobrepõe um galho ao outro, a ponto de não se enxergar nem a luz nem o céu, a imponência, o silêncio e a penumbra te convencem de que algum  deus deve habitar nela”. E Bernardo de Claraval: “Acredita-me, eu mesmo o experimentei. Encontrarás mais para ser lido nas florestas do que nos livros. Árvores e pedras de ensinarão o que nenhum mestre é capaz de te transmitir”. A floresta serve também de fundo para os versos de Eichendorf em “Lorelei”: “A floresta é grande e estás sozinha, bela noiva. Conheces-me bem. Do alto do penhasco meu tranquilo castelo contempla o Reno. É tarde. O frio aumenta. Jamais sairás desta floresta”. Também os versos de Friedrich Rückert: Deparei-me com uma área coberta de floresta e um homem junto à caldeira. Com o machado em punho tomba uma árvore. Pergunto: Que idade tem a floresta Ele responde: A floresta é uma protetora eterna. Moro neste lugar há uma eternidade e as árvores continuam crescendo sem parar. Há 500 anos percorro este caminho”. E os versos de Anette von Dorste-Hülsdorf: “Como é assustadora a penumbra da floresta nos dias de bruma em novembro. Maravilhoso é o gemido dos galhos e o queixume do vento”. As folhas da floresta tornam-se cúmplices do homem nos versos de Eduard Morike: “Vós milhares de folhas da floresta sois testemunhas que beijei a boca da bela Rothraut”. O poeta teuto-brasileiro Hans Grimen, nascido em São Leopoldo, legou-nos uma metáfora tão rica quanto original, nos versos de uma poesia com o título: “Die Kirche im Wald” (A Igreja na Floresta). Nela a floresta transforma-se numa catedral. Em tradução livre:

Pôs-se de pé e subiu até o alto onde a estrutura se confunde com a penumbra das copas. Examina polegada por polegada as paredes cobertas de verde ao ponto de mal perceber os blocos de rocha avermelhada. As colunas redondas com capitéis formados pelos rabos dos macacos acocorados sob a pesada cumeeira e, por sobre o portal uma cruz de ametistas incrustadas na parede. O portal de entrada tem a soleira desgastada como se muitas pessoas passassem diariamente por ele. Fiquei com receio de cruzar com pressa por causa do tapete úmido e intocado estendido sobre ela. Afastado o último medo, entrei.  Um grande espaço se abriu. Encontro-me numa catedral. Na minha frente ergue-se o altar mor de pedra, sem toalhas e sem velas, nos nichos figuras imóveis de santos verdes, da cabeça aos pés e lá o Menino Jesus no colo da Mãe. Com a mão estendida, iluminado por uma claridade mística que penetra por todas as fendas da cobertura, oferece-me uma orquídea cor de fogo. São José com uma coroa de samambaias na cabeça reverencia a Rainha do céu. É assim com todos. A floresta os adorna com seus adereços. A atmosfera que envolve o recinto paralisa a tal ponto que meus passos me assustam e o eco reverbera de leve nas paredes. Olha para o alto à procura das ladainhas petrificadas do sacerdote e a oração dos fiéis, o incenso aqui queimado e que ficou retido em algum lugar da abóboda. Atenção. Algo se movimentou como se fosse o leve farfalhar dos enfeites. Foi um passarinho que bebeu na pia de água benta. Em vez do brilho de bandeiras amarelo vivo, balançam grinaldas e cipós com suas cores vivas pendendo da abóbada. (Em Amstadt. Cem anos de Germanidade, 2005, p. 400-401).


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