A revolução agrícola
Simultaneamente no espaço e no tempo à “Revolução Pastoril” aconteceu a “Revolução Agrícola. Darcy Ribeiro chamou as duas “revoluções” como a “Revolução dos Alimentos”. A revolução agrícola começou a tornar-se possível a partir do momento em que os coletores da pré-história perceberam que determinadas espécies de plantas que lhes forneciam sementes, raízes, tubérculos e frutos comestíveis, podiam ser cultivadas, tornando-se mais produtivas e as colheitas mais seguras e previsíveis. O manejo controlado das plantas teve, ao lado do potencial incalculável de novas perspectivas na provisão das necessidades básicas de sobrevivência, uma profunda revolução na relação do homem com seu entorno natural. Da condição de total dependência dos caprichos da natureza os povos agricultores passaram a valer-se cada vez de mais e melhores tecnologias, melhorando os métodos de plantio, identificando mais espécies de plantas passíveis de manejo e, desde muito cedo, manipulando pela seleção e o cruzamento diversas variedades nativas, obtendo híbridos mais produtivos. O homem e a natureza selaram, por assim dizer, uma aliança e solidificaram uma relação de mutualidade que serviu de trampolim para um salto de qualidade sem precedentes: A Revolução dos Alimentos. Foi o ponto de largada para a simbiose entre a ação cultural do homem e o entorno geográfico. Os resultados dessa parceria do agricultor com seu chão fizeram-se sentir de muitas formas. Sem privilegiar uma ou outra, destaquemos algumas.
O preparo da terra, a semeadura, o cuidado com o desenvolvimento das plantas, a colheita e o recomeço de um novo ciclo agrícola, determinaram o fim da vida itinerante exigida pela coleta. Os agricultores tornaram-se sedentários, instalaram moradias em aldeias permanentes. O chão preferido pelos povos agrícolas primitivos foram as terras planas ao longo dos grandes rios da África, Oriente Médio e Próximo, Índia e China. Assim, a partir do momento em que dispomos de dados históricos mais precisos, encontramos o vale do Nilo, do Eufrates e Tigre, do Indo, do Ganges, do Yankze, do Hoango e outros, cobertos por uma mosaico de terras plantadas e pontilhados por inúmeras aldeias. Em pontos estratégicos centros urbanos de porte polarizavam as atividades de regiões maiores. O gigantesco potencial de progresso desse processo de humanização que se desencadeou desde a “domesticação” das primeiras plantas úteis no Neolítico, ainda não está esgotado. Das várzeas dos grandes rios a agricultura avançou sobre as encostas de montanhas, tomou o lugar das florestas, transformou em grande parte estepes, savanas e pradarias, impulsionada por sempre novas tecnologias de manejo do solo e espécies de plantas. Em regiões inteiras reduziu a curiosidades ecológicas as relíquias da paisagem original. Acontece que a primeira necessidade do homem de 15000 ou 20000 anos passados e do começo do terceiro milênio, tem em comum a necessidade de alimentar-se. E quem fornece os alimentos são, ainda hoje, os criadores de animais e os agricultores, amparados pelas descobertas científicas e a maior eficiência das tecnologias de produção. E com isso o processo de humanização acelera-se e vai-se impondo cada vez mais sobre as últimas paisagens naturais. Em não poucos casos os métodos empregados e a ausência de critérios, tornam evidente que se chegou a um limite crítico. Continuando nesta direção corre-se o risco de quebrar o equilíbrio da simbiose entre cultura e meio ambiente.
Dispensam-se teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto dessa afirmação. Entre os agricultores, o sol, a lua com seus ciclos regulares tornaram-se referência da própria dinâmica da História. E em torno do nascer de do ocaso do sol, alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o agricultor foi elaborando e consolidando todo um universo simbólico, um universo de costumes, hábitos, valores, crenças, cultos e rituais. O sol definindo os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento o florescimento, a maturação das colheitas e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer os fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos e climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade étnica e cultural. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida e juventude, o verão a plenitude do vigor adulto, o outono a colheita dos bons ou maus frutos, o inverno o declínio e finalmente a morte, para, em seguida, germinar nova vida e recomeçar o eterno vir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e os ciclos da vida terminaram confundindo-se simbolicamente numa única e a mesma dinâmica. É neste sentido que se fala em primavera da vida ou vida contada em primaveras. Pela sua importância o sol e a lua, foram adorados como divindades por não poucos povos.
As observações feitas acima mostram como a identidade étnica e cultual dos caçadores e coletores da pré-história e a dos criadores de animais e agricultores, já no limiar dos tempos históricos, foi o resultado da simbiose entre o entorno geográfico e a satisfação das necessidades materiais e espirituais do homem. Alguém poderia objetar que há um exagero em tudo isso. A insistência no papel do meio ambiente poderia levar à falsa compreensão de que as culturas, pelo menos aquelas rotuladas como “primitivas”, não passam de um produto do entorno físico-geográfico. É verdade que quanto mais se recua na História tanto mais visível fica essa impressão. Há, contudo, uma diferença essencial entre deixar marcas definitivas no quotidiano do homem e o determinismo geográfico puro e simples. Tanto o exagero em minimizar ou até ignorar as circunstâncias geográficas, quanto o de atribuir-lhes um papel além do devido pela própria natureza das coisas, leva a uma avaliação distorcida da gênese e moldagem da cultura. No esforço de identificar o perfil das culturas nos seus estágios mais antigos de evolução e as identidades étnicas que imprimiram nos respectivos povos, não se pode esquecer que a individualidade étnica tem a sua raiz na inteligência reflexa, privilégio exclusivo do homem. Ela responde de forma original e criativa aos estímulos que vem do meio geográfico. É neste particular que reside a sua enorme importância. O cenário geográfico oferece o palco sobre o qual se tornou possível a representação da História do homem. Como ele é capaz de dar respostas alternativas aos estímulos que variam de ambiente para ambiente, as identidades étnicas exibem as marcas dos traços deixados pela paisagem na qual foram moldados. Disfarçados ou flagrantes permeiam e iluminam a complexa urdidura da trama de que é responsável pela identidade étnica. E do outro lado, a intervenção criativa do homem no seu entorno geográfico, fez dele muito mais do que um fornecedor dos meios de subsistência. Instrumentos, ferramentas, utensílios, armas, enfim, o aperfeiçoamento, a diversificação e especialização de tecnologias, permitiu ao homem intervir sempre mais profundamente no seu entorno, imprimindo-lhe uma feição cada vez mais humanizada. Lentamente aconteceu, assim a simbiose, a síntese entre a paisagem e a alma do homem e, desta relação do homem com o seu chão, floresceram no decurso dos milênios as culturas e moldaram-se as identidades étnicas. O Pe. Balduino Rambo, diante da riqueza de peças arqueológicas pré-históricas no museu de Filadelfia, registrou a seguinte reflexão:
“O homem que, como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pelas florestas e estepes, de forma alguma era meio ou três quartos animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que hoje se fabrica de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, fritar, refogar, cozinhar e, com isso, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente a cozinheiros e cozinheiras, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o poder do fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor dos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, o devemos, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda de um raio, na erupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo com a fricção de madeiras ou batendo um fragmento de sílex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, dos punhais e lanças. Sorte sua que não descobriu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade teria perecido já nos tempos primigênios. Foi inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas agulhas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nu por aí como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem
menos confortáveis que nossos arranha-céus e palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas comemos até saciar”. (Rambo, Balduino. Três meses na América, p. 400).