O que sucede em “nossa casa?”
Depois
de contextualizar histórica, científica, filosófica e teologicamente a
“Encíclica Verde”, vamos ao corpo propriamente dito do documento. O Papa começa
perguntando “o que está acontecendo com “a nossa casa?” Ninguém dotado de uma capacidade
mínima observação percebe que algo de errado,
de muito errado perturba o sossego da “nossa casa” e aflige a “nossa mãe e
pátria”. Há consenso de que o ritmo da degradação ambiental exige algo de abrangente
e substantivo para ser estancado; que
iniciativas e soluções tópicas já nada resolvem; que o processo avançou a um
ponto tal que atinge a todos indistintamente, desde os poderosos até os súditos
mais humildes, desde os grandes empresários e empreendedores, até os operários
mais simples, os catadores de papel e os agricultores de subsistência.
Por
onde começar? Como em qualquer outro desafio de grandes proporções e de grave
risco para a coletividade, é preciso tomar pé na situação. É fundamental partir
de uma noção a mais exata possível do que realmente está acontecendo: Qual a
dimensão exata do problema e quais os agentes implicados. O Papa formulou a
questão em forma de pergunta, que aproveitamos para título do capítulo: “O que
está a acontecer com a nossa casa?”
O
que está acontecendo com a tecnologia que dá o tom e o ritmo ao progresso?.
Teilhard de Chardin na sua famosa obra “O Fenômeno Humano”, observa que devemos
à Ciência e Tecnologia todo o progresso de que desfrutamos. Alerta, porém, que,
pela sua própria natureza ela é regida
pelo processo da análise. Acontece que o método analítico mascara um
grande risco. Desmonta, disseca e analisa os objetos até onde o método é capaz
de avançar. Em se tratando da natureza ou partes dela, por meio de análises
químicas, modelos de matemática, teorias físicas e técnicas de dissecação
anatômica e histológica, vai penetrando até os últimos componentes estruturais
e funcionais. Quanto mais o cientista aprofunda sua investigação, quanto mais o
mecânico desmonta uma máquina, tanto maior é o risco de perder a visão do todo.
Em outras palavras defronta-se com uma pilha de peças mas não se dá conta do
porque que elas estão aí. Perde de vista que foram moldadas nas suas inúmeras
formas para participarem do funcionamento de um sistema ou de uma máquina.
Menos
mal quando se lida com uma máquina. Os benefícios e os malefícios permanecem no
terreno da mecânica. A perspectiva muda radicalmente quando o objeto de
pesquisa e/ou manipulação é o meio ambiente, a natureza na qual vive a
humanidade e da qual depende a sua própria sobrevivência. Mexer nas peças de
um motor ou nos circuitos de um aparelho
eletrônico sem vida, é uma coisa. Lidar com um componente da natureza, por mais
insignificante que possa aparecer, é essencialmente diferente. No primeiro caso
a manipulação começa e termina no nível
mecânico. No segundo as coisas acontecem no nível da vida. Não importa se a natureza
é vista como um ente vivo à sua maneira, ou a atenção se volta para uma forma
específica de vida, ou as circunstâncias físico geográficas e sua relação com
os seres vivos. Disseca-se até às últimas fibras um ser vivo, inclusive o
homem, sem tomar em conta a importância de um órgão quando cumprindo uma função
vital no organismo a que pertence. Não passa de peça sem vida do corpo de que
foi retirado. Por isso mesmo o interesse que desperta não passa do nível da física, da química ou da fisiologia.
A
análise “esse maravilhoso instrumento de todo o progresso”, como ensina
Teilhard, é fundamental para se entender em que consiste e qual é base material
da química e quais os processos mecânicos, físicos, químicos e fisiológicos sem
os quais a vida não acontece e não evolui normalmente.
É
aqui que mora um dos problemas principais, como já alertou Teilhard de Chardin:
a fragmentação. O todo é desmontado e peça por peça analisada até perder de
vista a totalidade. Em outras palavras. Não se percebe mais a unidade na
pluralidade. No contexto e na linha que vai a nossa reflexão a atenção volta-se
para efeitos indiretos quando a análise
é levada longe demais. Mudam as categorias mentais com destaque para a
percepção do que é certo e errado. Em outras palavras. A ética como critério
universal para qualificar os atos humanos, cede lugar para o relativismo ético
e moral, o fim justificando os meios. O filósofo e humanista nicaraguense
Alexandro Serrano Caldera, resumiu o
efeito destruidor da mentalidade apoiada na fragmentação. “É a desvalorização
do futuro, a queda das utopias, e o cancelamento das certezas. É o reino do
ceticismo moral” (Caldera, 2004, p. 91)
Nessa
passagem Caldera aponta o ponto nevrálgico da questão do que afirmamos mais
acima, isto é, que o desmonte da natureza termina no cancelamento das certezas, que encontra no ceticismo ético
e moral a sua consequência mais funesta. No momento em que o ceticismo ético e
moral marca o compasso para o comportamento das pessoas os valores estáveis e a
hierarquia entre eles também é cancelada. Tudo torna-se relativo. Subverte-se o
axioma que os meios são legitimados pela sua própria natureza moral e não aos
fins que servem. Cada sociedade, cada ideologia, as pessoas individuais
legitimam suas escolhas de acordo com as conveniências do momento e os
interesses que hoje são uns e manhã podem ser exatamente o oposto. Franqueia as
portas para a instalação da barbárie, a anarquia nas relações humanas. O
binômio poder e riqueza governam o mundo. Instala-se uma sociedade formada por lobos que se
devoram mutuamente o que, aliás, não é novidade na história. Os velhos romanos
já recorreram à metáfora dos lobos devorando-se
uns aos outros com o provérbio que se tornou emblemático para essas situações:
“Homo homini lúpus” – “Os homens não passam de lobos que se devoram
mutuamente”.
Sem
a pretensão de esgotar a matéria, este é o cenário em que nos cabe administrar “a
nossa cassa”. Com a riqueza e o poder como fins, os poderosos com seus projetos
de poder político e econômico administram “a nossa casa” e cultivam “a nossa
mãe e pátria”. Discursos falando em “salvar a vida no planeta”, “salvar a vida
na terra”, caem bem nos ouvidos do mundo de hoje, soam ecologicamente corretos.
Só então merecem alguma credibilidade quando acompanhados por propostas
concretas capazes de inverter o caminho pelo qual administramos de momento “a nossa casa”. A
formula para desencadear essa revolução é simples e óbvia. mas de uma
complexidade assustadora na concretização. Poderia soar mais ou menos assim: “A
realização de uma existência humana decente é baseada na ética e na moral”.
Simples assim? Na sua formulação teórica, sim. Na implementação prática demanda
um esforço impossível de dimensionar.
Em
resumo e para começo de conversa, exige-se uma inversão radical dos
referenciais e perspectivas que orientam
o relacionamento das pessoas entre si e com o meio ambiente em que vivem, um
pacto de salvamento para a humanidade e a natureza na qual está inserida para a
vida e a morte. Em outras palavras. A vida humana como base de toda a ética
exige que as leis e instituições se pautem por essa responsabilidade; que do
mesmo modo o consenso e o contrato social correspondam a essa exigência; que
importa que o antiético seja banido ainda que seja acordado e
institucionalizado; que o que está a seu favor deve ser apoiado e fomentado
ainda que não esteja nas leis nem no acordo; que o esforço deve concentrar-se
para que as instituições se fundamentem na ética pois, só assim a legalidade
terá também legitimidade. (cf. Caldera, 2004, p. 84)
É
oportuno ampliar esse raciocínio quando o assunto é meio ambiente, natureza,
“nossa casa”, “nossa mãe e pátria”. Lembremos novamente. A espécie humana
insere-se existencialmente na natureza. Foi concebida, nasceu e cresceu “nessa
casa” e continua morando nela, porque fora dela não há como subsistir. Existe e
subsiste nela, nela encontra os recursos que garantem a sua subsistência como
espécie biológica, nela e a partir dela consolida a cultura. Nela encontra os
estímulos que põem em ebulição sentimentos e emoções, a percepção da arte e do
Belo. Nela encontra os símbolos que dão vida e conferem sentido à sua existência.
Nela, enfim, molda seu imaginário, suas crenças e religiões.
Acontece
que a transformação de uma cosmovisão moldada pelo pragmatismo, pelo
utilitarismo, pelo racionalismo inclusive teológico, para uma perspectiva ética
e humanista, implica numa revolução de proporções e consequências difíceis de
dimensionar.
Até
aqui identificamos o que está acontecendo com e dentro da “nossa casa”. A
tarefa foi relativamente fácil. Acontece que o “como” resolver a questão, vem a ser um desafio gigantesco tomando em consideração,
em primeiro lugar, a situação e as características desse começo de milênio. Em
segundo lugar, pelo tempo necessário para consolidar os fundamentos dessa
mudança revolucionária e o tempo necessário para a sua implantação e
consolidação.
É
nesse plano que a “Encíclica Verde” do Papa Francisco bate de frente com a
cosmovisão que orienta os donos do poder político, econômico e ideológico.
Sintomático foi e ainda é o silêncio ou quase silêncio da grande da mídia. No protocolo
de Paris de dezembro de 2015 o documento sequer foi citado.