Depois
de definir os fundamentos doutrinários o papa, retomando o pensamento dos seus
antecessores, acrescenta que nada é indiferente. Os acontecimentos mais triviais
do cotidiano de uma “casa”, são importantes. Por mais insignificantes que
pareçam dão brilho e conferem sentido ao cenário doméstico ou o perturbam e
enfeiam. Essa maneira de enxergar e avaliar as coisas interessa a todos
indistintamente de filiação religiosa,
confessional, política ou ideológica. No momento em que essa questão
entra na agenda de documentos pontifícios eles deixam de ser restritos aos
católicos. O endereço são todas as pessoas de boa vontade, crentes ou não
crentes. Na encíclica “Pacem in terris”, de João XXIII, em princípio dirigida
ao mundo católico, mas ao tocar na questão do meio ambiente abriu a sua
mensagem “a todas pessoas de boa vontade”. “Agora à vista da deterioração
global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. (
... ) “Nesta encíclica pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum”.
(Laudato se, 3)
Oito
anos depois da Pacem in terris, o papa Paulo VI, na carta “Octogesima
adveniens”, referindo-se à problemática em pauta, coloca-a numa dimensão
histórico cultural. Segundo o pontífice, a questão ecológica configura-se numa
crise que é “consequência dramática da atividade descontrolada do ser humano:
“por motivo de uma exploração
inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruir e vir a ser,
também ele, vítima dessa degradação”. Num discurso à FAO em 16 de novembro de
1970, Paulo VI chamou a atenção sobre uma possível catástrofe ecológica como efeito
da “explosão da civilização industrial”. Insistiu também na “necessidade
urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os
progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais
assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem
unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o
homem”. (em Laudato se, 4).
João
Paulo II abordou a questão ambiental na encíclica “Redemptor hominis” de 4 de março de 1979, ao observar que “os ser
humano parece não se dar conta do outro significado dos seu ambiente natural,
para além daqueles que servem somente para os fins de um uso e consumo
imediatos”. Em 8 de janeiro o mesmo papa falou em “conversão ecológica global”,
chamando a atenção para o pouco esforço em “salvaguardar as condições morais de
uma autêntica ecologia humana”. E no mesmo documento adverte que, para melhorar
o mundo são necessárias mudanças radicais
“nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas
consolidas do poder, que hoje regem as sociedades”. (em Laudato se, 5-6). o papa
Francisco chama novamente a atenção que o progresso e os meios e estratégias
que o implementam deveriam tomar como um dos parâmetros de ação as exigências
éticas. Pelo fato de a natureza ser um bem comum e o homem depender dela para a
vida e a morte, qualquer ação invasora que compromete a sua integridade e
equilíbrio implica em responsabilidade ética.
Na
encíclica “Sollicitude in rei socialis” de 30 de dezembro de 1987, João Paulo II chama a
atenção para a obrigação “de ter em conta a natureza de cada ser e as ligações
entre todos, num sistema ordenado”. (em Laudato se, 5). O papa Bento XVI,
dirigindo-se ao corpo diplomático em 8
de janeiro de 2007, foi ainda mais explícito e categórico ao lembrar aos que de
alguma forma exercem poder e autoridade na atual conjuntura mundial convidando
para eliminar “as causas estruturais das disfunções da economia mundial e
corrigir os modelos de crescimento que
parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente”. (em Laudato se, 6).
Na encíclica “Caritas in veritate” ensina; “O livro da natureza é uno e
indivisível”. (em Laudato se, 6). E para dar uma ideia desse “ente
indivisível”, incluiu o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações
sociais. E dando uma outra dimensão à questão: “A degradação da natureza está
estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana. (em Laudatdo se,
6). Numa alocução ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone, põe o dedo direto
na ferida: A criação resulta comprometida “onde nós mesmos somos a última
instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumismo
é para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos
qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”. (em
Laudato se, 6)
Nas
linhas e nas entrelinhas do que vimos refletindo, conclui-se sem grande esforço, que a natureza não é só
una e indivisível, como forma uma
unidade sistêmica em que cada componente tem um sentido e cumpre uma função;
que o homem e suas culturas prospera nas relações simbióticas dentro do
sistema global da natureza; que a
natureza com seus recursos é um bem comum ao qual todos tem o direito de
usufruir; que, em sendo assim, a exploração das dádivas da natureza implica em
responsabilidade moral e ética; que o homem não é senhor do meio ambiente em
que passa a sua existência; que o atual modelo civilizatório a serviço de
outros valores, valores que ignoram a ética como valor maior, é predatório e
destruidor; que, sob pena de todas as políticas e iniciativas não passar de uma
cortina de fumaça, é preciso começar pela mudança profunda nas filosofias e
estratégias que lidam com os desafios ambientais; que, finalmente, para que haja uma real perspectiva nessa batalha
inglória, requer-se a soma solidária das
forças vivas da comunidade humana.
Nessa
cruzada ninguém está dispensado de
dar sua contribuição proporcionalmente à
importância do lugar que ocupa no todo do sistema. Cientistas, filósofos,
teólogos, líderes de organizações sociais, os mentores e donos de toda a ordem
de tecnologias, os manipuladores das engrenagens da economia, os agentes financeiros, enfim, as comunidades
humanas, são convocados para engajar-se na grande cruzada. Sem esse pressuposto, pouco ou nada temos a esperar dos poderosos
reunidos para formular políticas ambientais. Num cenário desses o Papa Francisco
com sua Encíclica não passa de um profeta pregando no deserto.
A
preocupação com o meio ambiente envolve muito mais do que uma boa conservação e
administração da “nossa casa”. O Papa ensina que “uma ecologia integral
requer abertura para categorias que
transcendem a linguagem das Ciências ou da Biologia, e nos põe em contato com a
essência do ser humano”. (Laudadto se, 11). Esse diagnóstico aponta para a
questão central, o desafio maior a ser enfrentado no momento em que alguém,
algum poder público ou alguma organização se dispõe a abraçar a causa
ambiental. Em mais do que uma ocasião ao longo dessas reflexões ficou claro que
a natureza com o homem incluído, forma uma unidade, um sistema de alta
complexidade, finamente calibrado e de alta resolução. Na sua arquitetura
entram elementos comuns ao restante do universo. Dele fazem parte todas as
formas de vida das mais simples às mais complexas. Como espécie biológica o
homem faz parte existencial dessa autêntica comunhão natural. Ao mesmo tempo, o
homem com sua inteligência reflexa, desenvolve suas culturas, seu imaginário,
seus sistemas simbólicos, seu universo mágico e religioso. Para compreender
essa magnífica e intrincada urdidura com suas relações de fina resolução que
lhe garantem coesão, integridade e durabilidade, as questões básicas a serem respondida, resumem-se no “donde”
no “como”, no “quando, no “porque” e no “para que”. Ao “como e quando” cabe às
Ciências Naturais responder; é tarefa das Ciências do Espírito responder o “donde”, “por que” e o “para que”.
A compreensão da complexa totalidade da natureza só é possível com a soma dos
resultados dos conhecimentos vindos dos dois campos do saber: das Ciências
Naturais e das Ciências do Espírito
Acontece
que essa aliança começou a ser penosamente construída de 80 ou 100 anos para cá.
Do começo do século XX até a sua metade as tentativas não passaram de
manifestações isoladas. Depois de 1940 tornaram-se cada vez mais frequentes e
articuladas. Datam desse período os documentos oficiais da Igreja acima
citados, a Academia pontifícia de Ciências, a “American Scientific
Affliliation” – associação que reúne cientistas que creem em Deus - Além de muitas manifestações de cientistas
de primeira grandeza e pensadores influentes.
Em
grandes linhas os séculos XVII, XVIII e
XIX primaram pelo distanciamento e até a guerra declarada entre as
Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. O período mais tenso desse embate
foi o que às vezes se chama o “grande século XIX” – 1750-1914. A consolidação
dos fundamentos teóricos e metodológicos
das Ciências Naturais e Revolução do Pensamento com todas as ramificações,
impulsionaram o distanciamento e forneceram o combustível para uma guerra
declarada em que os dois lados saíram perdendo. Não menos responsabilidade
nesse conflito cabe ao outro lado. O Pe. Rambo anotou no seu diário em 12 de
agosto de 1960 em Koblenz na Alemanha, com rara precisão a situação. “É a velha
maldição que desde o fim da alta Escolástica pesa sobre a ciência católica:
Encantamo-nos com o papel de guardiães de um precioso tesouro do passado, que,
entretanto, nos atrapalha na participação na ciência viva. Nós perdemos
a afinidade com as Ciências Naturais e admiramo-nos que a Ciência ficou ateia”.
Hoje
esse cenário de distanciamento e beligerância está sendo superado. Sobrevive
ainda num formato mais ou menos fundamentalista em denominações religiosas e
num número considerável de cientistas. Para a Ciência e os cientistas sérios fica, a cada dia que passa, mais
evidente que seus métodos e tecnologias tem
limites. Para os filósofos, teólogos e humanistas de espírito aberto não
há como não tomar em conta os resultados e as conquistas da Ciência. Mais do
que nunca faz sentido a observação de Eisntein: “Sem a Religião a Ciência é
manca e sem a Ciência a Religião é cega”, ou a declaração de Kant: O que mais
me impressiona é o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro. Cabe
ainda a conclusão a que chegou Stephen Hawking, na conclusão da sua obra “Uma breve História do Tempo”: “Então, poderíamos todos nós, filósofos,
cientistas e pessoas comuns participar sobre a questão do porque de nós e o universo existirmos. Se encontrarmos um
resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana pois, então
conheceremos a mente de Deus”. (Hawking. 2015, p. 229). Na mesma direção vai a
observação de Eugen Wiegner: “Não seria
nada além de um feliz acidente ou
refletiria alguma intuição profunda na natureza da realidade? Para quem deseja
aceitar a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição na
mente de Deus. Teriam Einstein, Heisenberg e outros encontrado o divino?” (in Collins, 2007, p. 70).
Nos
últimos decênios o enigma do “como” o universo e a natureza surgiram, intrigou especialmente
os astrônomos e astrofísicos. Os
cientistas, convencidos dos limites dos seus métodos, ou se quisermos, intuindo
ou “farejando” para além do alcance dos seus instrumentos, formulam questionamentos
que já não cabem nem na física, nem na astronomia e nem mesmo nas outras especialidades. Na sua obra “God and
the astronomers”, 1992, Robert Jastrow, astrônomo e diretor da NASA, mostra
como lida com esse tipo de desafio.
Neste momento, parece que a
ciência nunca será capaz de erguer a cortina acerca do mistério da criação.
Para o cientista que vive pela fé na força da razão, a história encerra como um
sonho ruim. Ele escalou as montanhas da ignorância; vê-se prestes a conquistar
o pico mais alto; à medida que se puxa para a rocha final, é saudado por um
bando de teólogos que estiveram sentados ali durante séculos. – Numa outra passagem da mesma obra observou –
Agora vemos como a evidência astronômica conduziu a uma visão bíblica sobre a origem
do mundo. Há diferenças nos detalhes, porém, os elementos essenciais e as
considerações astronômicas e bíblicas sobre a origem são as mesmas; a cadeia de
eventos conduzindo ao homem iniciou de modo repentino e preciso em um momento
definido no tempo, em um brilho de luz e energia. (em Collins, 2007, p. 74-75)
Os
desafios postos pela questão ecológica são de tal ordem que, para
identificá-los, avaliá-los corretamente, o caminho certo a seguir, é o proposto
pelo papa. Pelo visto, da parte da Ciência e dos cientistas existe a disposição para um diálogo honesto e
comprometido. Os cientistas que estamos citando fazem parte da elite de
vanguarda da pesquisa de hoje. Mencionamos até aqui físicos, astrofísicos e astrônomos. Pelo significado dos seus
depoimentos merecem o reforço de outras especialidade científicas.
O
apelo do papa para o diálogo foi precedido por um vindo de Edward Wilson, um
dos maiores, senão o maior entomologista e conhecedor de ecossistemas naturais
e humanizados. Sem filiação confessional, livre-pensador ele se auto classifica
como “humanista secular”. A obra síntese
com as conclusões dos seus estudos sobre insetos e ecossistemas, leva o
título sugestivo: “A Criação – como salvar a vida na terra”. Ela foi escrita no
formato de uma carta na qual faz um
convite ao diálogo a um pastor fundamentalista, para encontrar um caminho comum
para “salvar a vida na terra”. O prof. Wilson provavelmente deve ter tomado
conhecimento da Encíclica do papa Francisco e pode-se concluir que tenha ficado
feliz por ter encontrado um interlocutor à sua altura. Os frutos de um diálogo
nesse nível não podem deixar de levar a resultados também de grande
significado, como expresso nos últimos parágrafos da obra citada:
O que devemos fazer? Esquecer as diferenças
digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como
parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas têm um
efeito notavelmente pequeno sobre a condição da sua vida e da minha. Minha suposição
é que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruísticas mais ou menos no
mesmo grau. Somos produto de uma civilização que surgiu não só da religião como
igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós
serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a
mesma intensidade, santificar a vida humana. E, com certeza, compartilhamos o
amor pela criação.
Ao encerrar esta carta,
espero que o senhor não se tenha ofendido quando falei em rumo à natureza, e não
para longe dela. Eu teria grande satisfação em saber que esse desejo, tal como
o expliquei neste livro, é compatível com as suas crenças. Pois, seja como for
que as tensões acabem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos,
seja como for a ciência e a religião aumentem ou diminuam de importância na mente dos homens, permanece
o compromisso ao mesmo tempo humano e transcendental, nós dois somos moralmente
obrigados a compartilhar. (Wilson, 2008, p. 188)