Archive for agosto 2017

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 6 -

Depois de definir os fundamentos doutrinários o papa, retomando o pensamento dos seus antecessores, acrescenta que nada é indiferente. Os acontecimentos mais triviais do cotidiano de uma “casa”, são importantes. Por mais insignificantes que pareçam dão brilho e conferem sentido ao cenário doméstico ou o perturbam e enfeiam. Essa maneira de enxergar e avaliar as coisas interessa a todos indistintamente de filiação religiosa,  confessional, política ou ideológica. No momento em que essa questão entra na agenda de documentos pontifícios eles deixam de ser restritos aos católicos. O endereço são todas as pessoas de boa vontade, crentes ou não crentes. Na encíclica “Pacem in terris”, de João XXIII, em princípio dirigida ao mundo católico, mas ao tocar na questão do meio ambiente abriu a sua mensagem “a todas pessoas de boa vontade”. “Agora à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. ( ... ) “Nesta encíclica pretendo especialmente entrar em diálogo  com todos acerca da nossa casa comum”. (Laudato se, 3)

Oito anos depois da Pacem in terris, o papa Paulo VI, na carta “Octogesima adveniens”, referindo-se à problemática em pauta, coloca-a numa dimensão histórico cultural. Segundo o pontífice, a questão ecológica configura-se numa crise que é “consequência dramática da atividade descontrolada do ser humano: “por motivo de  uma exploração inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruir e vir a ser, também ele, vítima dessa degradação”. Num discurso à FAO em 16 de novembro de 1970, Paulo VI chamou a atenção sobre uma possível catástrofe ecológica como efeito da “explosão da civilização industrial”. Insistiu também na “necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem”. (em Laudato se, 4).

João Paulo II abordou a questão ambiental na encíclica “Redemptor hominis” de 4  de março de 1979, ao observar que “os ser humano parece não se dar conta do outro significado dos seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um uso e consumo imediatos”. Em 8 de janeiro o mesmo papa falou em “conversão ecológica global”, chamando a atenção para o pouco esforço em “salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana”. E no mesmo documento adverte que, para melhorar o  mundo são necessárias mudanças radicais “nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidas do poder,  que hoje regem  as sociedades”. (em Laudato se, 5-6). o papa Francisco chama novamente a atenção que o progresso e os meios e estratégias que o implementam deveriam tomar como um dos parâmetros de ação as exigências éticas. Pelo fato de a natureza ser um bem comum e o homem depender dela para a vida e a morte, qualquer ação invasora que compromete a sua integridade e equilíbrio implica em responsabilidade ética.

Na encíclica “Sollicitude in rei socialis” de 30 de  dezembro de 1987, João Paulo II chama a atenção para a obrigação “de ter em conta a natureza de cada ser e as ligações entre todos, num sistema ordenado”. (em Laudato se, 5). O papa Bento XVI, dirigindo-se ao corpo diplomático  em 8 de janeiro de 2007, foi ainda mais explícito e categórico ao lembrar aos que de alguma forma exercem poder e autoridade na atual conjuntura mundial convidando para eliminar “as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos  de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente”. (em Laudato se, 6). Na encíclica “Caritas in veritate” ensina; “O livro da natureza é uno e indivisível”. (em Laudato se, 6). E para dar uma ideia desse “ente indivisível”, incluiu o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. E dando uma outra dimensão à questão: “A degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana. (em Laudatdo se, 6). Numa alocução ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone, põe o dedo direto na ferida: A criação resulta comprometida “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumismo é para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”. (em Laudato se, 6)

Nas linhas e nas entrelinhas do que vimos refletindo, conclui-se  sem grande esforço, que a natureza não é só una  e indivisível, como forma uma unidade sistêmica em que cada componente tem um sentido e cumpre uma função; que o homem e suas culturas prospera nas relações simbióticas dentro do sistema  global da natureza; que a natureza com seus recursos é um bem comum ao qual todos tem o direito de usufruir; que, em sendo assim, a exploração das dádivas da natureza implica em responsabilidade moral e ética; que o homem não é senhor do meio ambiente em que passa a sua existência; que o atual modelo civilizatório a serviço de outros valores, valores que ignoram a ética como valor maior, é predatório e destruidor; que, sob pena de todas as políticas e iniciativas não passar de uma cortina de fumaça, é preciso começar pela mudança profunda nas filosofias e estratégias que lidam com os desafios ambientais; que, finalmente, para  que haja uma real perspectiva nessa batalha inglória, requer-se a soma solidária das  forças vivas da comunidade humana.

Nessa cruzada ninguém  está dispensado de dar  sua contribuição proporcionalmente à importância do lugar que ocupa no todo do sistema. Cientistas, filósofos, teólogos, líderes de organizações sociais, os mentores e donos de toda a ordem de tecnologias, os manipuladores das engrenagens  da economia, os  agentes financeiros, enfim, as comunidades humanas, são convocados para engajar-se na grande cruzada. Sem esse pressuposto,  pouco ou nada temos a esperar dos poderosos reunidos para formular políticas   ambientais. Num cenário desses o Papa Francisco com sua Encíclica não passa de um profeta pregando no deserto.

A preocupação com o meio ambiente envolve muito mais do que uma boa conservação e administração da “nossa casa”. O Papa ensina que “uma ecologia integral requer  abertura para categorias que transcendem a linguagem das Ciências ou da Biologia, e nos põe em contato com a essência do ser humano”. (Laudadto se, 11). Esse diagnóstico aponta para a questão central, o desafio maior a ser enfrentado no momento em que alguém, algum poder público ou alguma organização se dispõe a abraçar a causa ambiental. Em mais do que uma ocasião ao longo dessas reflexões ficou claro que a natureza com o homem incluído, forma uma unidade, um sistema de alta complexidade, finamente calibrado e de alta resolução. Na sua arquitetura entram elementos comuns ao restante do universo. Dele fazem parte todas as formas de vida das mais simples às mais complexas. Como espécie biológica o homem faz parte existencial dessa autêntica comunhão natural. Ao mesmo tempo, o homem com sua inteligência reflexa, desenvolve suas culturas, seu imaginário, seus sistemas simbólicos, seu universo mágico e religioso. Para compreender essa magnífica e intrincada urdidura com suas relações de fina resolução que lhe garantem coesão, integridade e durabilidade, as questões  básicas a serem respondida, resumem-se no “donde” no “como”, no “quando, no “porque” e no “para que”. Ao “como e quando” cabe às Ciências Naturais responder; é tarefa das Ciências do Espírito  responder o “donde”, “por que” e o “para que”. A compreensão da complexa totalidade da natureza só é possível com a soma dos resultados dos conhecimentos vindos dos dois campos do saber: das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito

Acontece que essa aliança começou a ser penosamente construída de 80 ou 100 anos para cá. Do começo do século XX até a sua metade as tentativas não passaram de manifestações isoladas. Depois de 1940 tornaram-se cada vez mais frequentes e articuladas. Datam desse período os documentos oficiais da Igreja acima citados, a Academia pontifícia de Ciências, a “American Scientific Affliliation” – associação que reúne cientistas que creem em Deus  - Além de muitas manifestações de cientistas de primeira grandeza e pensadores influentes.

Em grandes linhas os séculos XVII, XVIII e  XIX primaram pelo distanciamento e até a guerra declarada entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. O período mais tenso desse embate foi o que às vezes se chama o “grande século XIX” – 1750-1914. A consolidação dos fundamentos  teóricos e metodológicos das Ciências Naturais e Revolução do Pensamento com todas as ramificações, impulsionaram o distanciamento e forneceram o combustível para uma guerra declarada em que os dois lados saíram perdendo. Não menos responsabilidade nesse conflito cabe ao outro lado. O Pe. Rambo anotou no seu diário em 12 de agosto de 1960 em Koblenz na Alemanha, com rara precisão a situação. “É a velha maldição que desde o fim da alta Escolástica pesa sobre a ciência católica: Encantamo-nos com o papel de guardiães de um precioso tesouro do passado, que, entretanto, nos  atrapalha  na participação na ciência viva. Nós perdemos a afinidade com as Ciências Naturais e admiramo-nos que a Ciência ficou ateia”.

Hoje esse cenário de distanciamento e beligerância está sendo superado. Sobrevive ainda num formato mais ou menos fundamentalista em denominações religiosas e num número considerável de cientistas. Para a Ciência e os cientistas  sérios fica, a cada dia que passa, mais evidente que seus métodos e tecnologias tem  limites. Para os filósofos, teólogos e humanistas de espírito aberto não há como não tomar em conta os resultados e as conquistas da Ciência. Mais do que nunca faz sentido a observação de Eisntein: “Sem a Religião a Ciência é manca e sem  a Ciência a Religião  é cega”, ou a declaração de Kant: O que mais me impressiona é o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro. Cabe ainda a conclusão a que chegou Stephen Hawking,  na conclusão  da sua obra “Uma breve  História do Tempo”:  “Então, poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns participar sobre a questão do porque de nós  e o universo existirmos. Se encontrarmos um resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana pois, então conheceremos a mente de Deus”. (Hawking. 2015, p. 229). Na mesma direção vai a observação de  Eugen Wiegner: “Não seria nada além de um feliz acidente  ou refletiria alguma intuição profunda na natureza da realidade? Para quem deseja aceitar a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição na mente de Deus. Teriam Einstein, Heisenberg e outros encontrado o divino?”  (in Collins, 2007, p. 70).

Nos últimos decênios o enigma do “como” o universo e a natureza surgiram, intrigou especialmente  os astrônomos e astrofísicos. Os cientistas, convencidos dos limites dos seus métodos, ou se quisermos, intuindo ou “farejando” para além do alcance dos seus instrumentos, formulam questionamentos que já não cabem nem na física, nem na astronomia e nem mesmo nas  outras especialidades. Na sua obra “God and the astronomers”, 1992, Robert Jastrow, astrônomo e diretor da NASA, mostra como lida com esse tipo de desafio.

Neste momento, parece que a ciência nunca será capaz de erguer a cortina acerca do mistério da criação. Para o cientista que vive pela fé na força da razão, a história encerra como um sonho ruim. Ele escalou as montanhas da ignorância; vê-se prestes a conquistar o pico mais alto; à medida que se puxa para a rocha final, é saudado por um bando de teólogos que estiveram sentados ali durante séculos.  – Numa outra passagem da mesma obra observou – Agora vemos como a evidência astronômica conduziu a uma visão bíblica sobre a origem do mundo. Há diferenças nos detalhes, porém, os elementos essenciais e as considerações astronômicas e bíblicas sobre a origem são as mesmas; a cadeia de eventos conduzindo ao homem iniciou de modo repentino e preciso em um momento definido no tempo, em um brilho de luz e energia. (em Collins, 2007, p. 74-75)

Os desafios postos pela questão ecológica são de tal ordem que, para identificá-los, avaliá-los corretamente, o caminho certo a seguir, é o proposto pelo papa. Pelo visto, da parte da Ciência e dos cientistas existe a  disposição para um diálogo honesto e comprometido. Os cientistas que estamos citando fazem parte da elite de vanguarda da pesquisa de hoje. Mencionamos até aqui físicos, astrofísicos  e astrônomos. Pelo significado dos seus depoimentos merecem o reforço de outras especialidade científicas.

O apelo do papa para o diálogo foi precedido por um vindo de Edward Wilson, um dos maiores, senão o maior entomologista e conhecedor de ecossistemas naturais e humanizados. Sem filiação confessional, livre-pensador ele se auto classifica como “humanista secular”. A obra síntese  com as conclusões dos seus estudos sobre insetos e ecossistemas, leva o título sugestivo: “A Criação – como salvar a vida na terra”. Ela foi escrita no formato de uma carta na  qual faz um convite ao diálogo a um pastor fundamentalista, para encontrar um caminho comum para “salvar a vida na terra”. O prof. Wilson provavelmente deve ter tomado conhecimento da Encíclica do papa Francisco e pode-se concluir que tenha ficado feliz por ter encontrado um interlocutor à sua altura. Os frutos de um diálogo nesse nível não podem deixar de levar a resultados também de grande significado, como expresso nos últimos parágrafos da obra citada:

 O que devemos fazer? Esquecer as diferenças digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a condição da sua vida e da minha. Minha suposição é que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruísticas mais ou menos no mesmo grau. Somos produto de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade, santificar a vida humana. E, com certeza, compartilhamos o amor pela criação.
Ao encerrar esta carta, espero que o senhor não se tenha ofendido quando falei em rumo à natureza, e não para longe dela. Eu teria grande satisfação em saber que esse desejo, tal como o expliquei neste livro, é compatível com as suas crenças. Pois, seja como for que as tensões acabem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos, seja como for a ciência e a religião aumentem ou diminuam  de importância na mente dos homens, permanece o compromisso ao mesmo tempo humano e transcendental, nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2008, p. 188)



Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 5 -

O que  entra em questão?

Para fundamentar  a “Encíclica Verde” o Papa Francisco escolheu o conceito de natureza concebido e vivido por São Francisco de Assis. No “cantico delle nature. há 800 anos o santo chamava a natureza de “mãe”. ”Louvado sejas meu Senhor, pela nossa irmã e mãe terra que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.

O Papa ao introduzir a Encíclica com a declaração de amor e carinho pela natureza de São Francisco de Assis, não o fez com a intenção de reduzir a questão ambiental a uma questão poética, sentimental ou romântica. Sugere uma intenção  muito mais séria e profunda. Ele deixa claro que, ao lidar com os problemas ambientais, faz-se necessário partir de uma base que faça sentido para a própria existência humana.

Enquanto colocamos no papel essa reflexões, em Paris estão sendo ultimados os preparativos para o encontro global do Clima. Na ribalta estarão os poderosos do planeta, os detentores do poder político, econômico e militar, com a pretensão de decidir sobre o rumo da história. Um segundo plano, tentando fazer valer seus pontos de vista, cabe aos porta vozes de interesses de toda a ordem, os legítimos e os nem tanto, fazendo coro aos confessada e tacitamente interesseiros. Mascaradas por discursos e declarações de princípios e intenções em favor de valores legítimos, no fundo no fundo, duas poderosas forças terminam impondo o estilo e o conteúdo aos documentos assinados como conclusão do que foi acertado. A identificação dessas forças significa procurar o óbvio. O tom fica a cargo dos interesses políticos,  geoeconômicos, ideológicos ou simplesmente de promoção pessoal. Trata-se de forças poderosas que pressionam na mesma direção e se alimentam e apoiam mutuamente. Essas forças concebem a questão ambiental como a via para apoderar-se dos recursos naturais, controlar seus fluxos e assim decidir sobre as políticas econômicas e os critérios de acesso e distribuição dos recursos naturais.

Ao recorrer à metáfora “nossa casa”, “nossa mãe” o Papa Francisco caracterizou a íntima relação do homem com a natureza. E, em o fazendo assim, definiu os critérios que devem nortear o uso e o fruto dos recursos naturais. Basta entender o significado desses dois conceitos, para avaliar o que o papa quer ensinar. Quando alguém pronuncia as palavras  “minha casa”, desdobra-se diante de qualquer pessoa, o cenário em que o humano, a “Menschlichkeit”, diria o Pe. Rambo e a natureza celebram uma comunhão existencial.

É numa casa, no sentido lato do termo,  que as pessoas nascem, crescem, tornam-se adultos e envelhecem. Nela encontram abrigo, proteção, alimentação, carinho e amor. Ressalvadas as particularidades, a natureza exerce as funções de  uma casa, porém de maneira muito mais existencial. Começa por ai que o ser humano biologicamente, é feito da mesma matéria prima do mineral, dos micro organismos, dos vegetais e animais. Em resumo. Na estrutura e composição do corpo humano entram oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e carbono, mais em torno de duas dúzias de outros  elementos constantes na tábua periódica. As mesmas leis físicas e fisiológicas responsáveis pelo bom estado de qualquer outro se vivo, garantem o bom funcionamento das atividades vitais do homem. A origem da espécie humana, pelo que tange à sua natureza biológica pode ser encontrada até prova em contrário, em algum ancestral animal. Surgiu, evoluiu, diversificou-se como mais um rebento bem sucedido na magnífica árvore da evolução. Haveria muitos outros argumentos para se provar a inserção existencial do homem na natureza, mas não é aqui o lugar para entrar em outros detalhes.

A primeira conclusão. O homem como espécie taxonômica é  feito do mesmo “pó da terra” como qualquer outra espécie viva. A segunda. No plano animal, a espécie humana surgiu e evoluiu pelas mesmas leis e processos dos demais seres vivos. A terceira. A natureza põe à disposição do homem os recursos indispensáveis para o sustento e o abrigo do seu corpo. A quarta. No cenário da natureza o homem encontra o alimento para o seu imaginário, condições para dar vasão aos seus  sentimentos e emoções, e os estímulos para criar  o seu universo simbólico, mágico e religioso.

Em resumo. É lícito concluir que o homem é “filho dessa terra” no sentido mais abrangente do termo; que ele originou-se nela, nela passa sua existência sustentado pelos seus recursos e a ela retorna depois de cumprida a sua jornada. É nessa dimensão que as metáforas “nossa casa”, “nossa mãe e pátria” assumem o significado pleno.

Toda a argumentação posterior da Encíclica parte, melhor fundamenta-se nesse pressuposto. A natureza é “a casa de todos” com toda a carga de significados inerentes ao conceito; a natureza é a morada comum de todos os homens; ninguém é seu dono  privativo; todos são condôminos de iguais direitos e deveres sobre os seus recursos  para levarem uma existência minimamente digna e decente.

No momento, porém,  em que outros valores e interesses empurram para um plano secundário ou  simplesmente ignorarem o direito de todos a um mínimo de bem estar material e dignidade pessoal, algo muito errado está acontecendo. Nesse particular vamos encontrar, segundo a Encíclica o equívoco tão generalizado de que a natureza está aí para ser explorada; o homem não se sente parte dela, mas dono absoluto com permissão para tirar dela o que estiver a seu alcance. “Costumamos  pensar que somos seus proprietários e dominadores autorizados a saqueá-la”, observa o papa. A convicção de ser proprietário da terra, aliada à ideia de que a natureza é uma realidade fortuita, fruto do acaso na sua origem  e evolução, fornecem o fundamento teórico para justificar o saque. As consequências estão aí à vista de quem tem olhos para ver e ouvidos para escutar.

“Por isso entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada que ‘geme e sofre as dores do parto’ (Rm 8,22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7). O nosso corpo é construído pelos mesmos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”. (Laudato se, 2).

Espero que tenha ficado suficientemente claro a intenção do Papa na afirmação do pressuposto doutrinário para a problemática ecológica. Resumindo. A metáfora  “nossa casa”, a “casa do homem”, “mãe e pátria”,  com toda a carga de significados que lhe são inerentes, deve ser a âncora de qualquer proposta para salvar o planeta.


Contrapõe-se à compreensão viciada de que a natureza está aí par ser explorada sem restrições e sem contestações, como o entendem as motivações geopolíticas e geoeconômicas.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 4 -

Até essa altura, isto é, final do paleolítico, 15.000 a 20.000 anos passados o homem coletor e ou caçador, vivia numa pareceria, numa simbiose da natureza perfeitamente equilibrada. A integridade e o equilíbrio dos ecossistemas naturais não sofriam agressões significativas. Na transição  do paleolítico para o neolítico, denominada também de mesolítico, a caminhada histórica da humanidade envereda por duas direções paralelas. A convivência e o relacionamento om os animais, a observação dos seus hábitos, a aproximação dos acampamentos de uns e fuga de outros, fez com que algumas espécies  passassem a integrar-se praticamente ao quotidiano dos homens. Daí para frente domesticá-los e controlar a sua criação, foi apenas uma questão de tempo. A domesticação foi o passo que desencadeou o pastoreio, uma verdadeira revolução, cujos potenciais estão longe de se esgotar. Chamamos atenção, por ex.,  para a aplicação das conquistas genéticas, no manejo dos animais e dos pastos em que são criados.

Uma revolução paralela e de igual ou maior potencial foi amadurecendo e tomando corpo entre os coletores. Pela observação ao  coletarem  frutas, raízes, tubérculos foram identificando os hábitos e as características, os ciclos de crescimento e outros mais. Ao mesmo tempo em que identificavam os mais produtivos, por acaso ou intencionalmente, talvez as duas juntas, teve início a agricultura. Os potenciais também dessa  segunda revolução não se esgotaram. Pelo contrário no caso dos animais a manipulação genética e as tecnologias de produção agrícola, estão em franca expansão.

Darci Ribeiro denominou a revolução agrícola somada à revolução pastoril de “Revolução dos Alimentos”. No contexto em que nos movimentamos, isto é, a “Enciclica Verde”, queremos chamar a atenção par o efeito realmente revolucionário na relação do homem com o meio físico geográfico. Tendo em vista o potencial de invasão e de degradação da natureza dessa revolução, Edwad Wilson, chama a atenção que, a par das inegáveis perspectivas de sobrevivência que possibilitou ao homem, ela foi também a “primeira traição” perpetrada à “sua mãe e pátria”. Essa afirmação evidentemente precisa ser entendida na perspectiva em que Wilson desenvole sua reflexão. Ele resume a  “traição” nos efeitos negativos dessa conquista revolucionária. Chama a atenção para alguns problemas que se foram acelerando nos milênios posteriores e hoje chegam a níveis no mínimo alarmantes. No caso da agricultura são principalmente dois fenômenos complementares. a ocupação intensiva e sistemática das terra próprias para a agricultura vai desfigurando a paisagem original substituindo-a pela humanizada com suas aldeias, cidades, plantações, sistemas de irrigação e vias de circulação. Esse fenômeno se acelera na medida em que a população cresce e as demandas para cobrir as necessidades aumentam. Com a humanização muitas plantas e animais migram outros territórios ou simplesmente se extinguem. Mas, há uma outra consequência que merece atenção. Das muitas espécies e variedades de plantas potencialmente úteis, os agricultores vão selecionando as mais produtivas e mais fáceis de serem cultivadas. Com isso as opções de produção de alimentos vão enfunilando e dependendo de um número muito reduzido de espécies, o que agrava a dependência e influi negativamente no uso dos solos agrícolas. Aumenta o poder de barganha dos produtores e condena á dependência os que deles dependem. Esse aspecto da questão alcança nesse começo do terceiro milênio, proporções estratosféricas. Basta dar uma olhada na lista  dos produtos agrícolas negociados na bolsa de Chicago.

Não é aqui, entretanto, o lugar para entrar em mais  pormenores. Interessa o seu significado como desencadeador da acelerada substituição da paisagem natural pela humanizada, dos ecossistemas naturais pelos também humanizados. É óbvio que seria um sonho sem o menor sentido reclamar o retorno a uma biosfera do final do Paleolítico. O que está em discussão é o efeito de muitas motivações, muitos métodos e muitas tecnologias que estimularam e facilitaram a apropriação dos recursos naturais. A essa altura dos acontecimentos as tecnologias a serviço de objetivos e valores muitas vezes discutíveis ou francamente nocivos ou criminosos, colocaram a “nossa casa” diante de futuro preocupante.

Parece que a humanidade em peso está se apercebendo dessa realidade. “O meio ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável, pede por socorro a todas as pessoas de boa vontade”, como alertou Bento XVI.  E, parece que a preocupação com essa causa é generalizada. As pessoas comuns, organizações com as mais diversas motivações e orientações, lideranças religiosas e governantes  debatem e avaliam a questão em âmbito local, regional, nacional e internacional. E, para colaborar com o encontro internacional do Clima em Paris, o Papa Francisco líder de um bilhão e  duzentos milhões de católicos ofereceu a monumental carta encíclica “Laudato si”, que com toda a propriedade poderia chamar-se também de “Encíclica Verde”. Vale o esforço meditar e refletir sobre a riqueza do seu conteúdo e, de modo especial, sobre as pesadas advertências que formula.


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 3 -

A doutrina da Igreja

 A reconciliação oficial da Igreja com o universo e a natureza sugerida pelas conquistas científicas, começou com Pio XII na década de 1940. Na carta encíclica “Divino aflante Spiritu” (1943)  veio o primeiro sinal liberando os católicos para a aceitação da teoria da evolução. A “Encíclica “Humani  Generis” (1950) do mesmo Pio XII consolidou essa abertura.  Com as duas encíclicas, o papa definiu os parâmetros e os limites permitidos pela doutrina católica em relação à natureza, sua origem, sua evolução colocando o homem como personagem  central nesse cenário. Definiu a competência e a responsabilidade da Ciência e da Teologia para a compreensão do homem.

O papa João XXIII, sucessor  de Pio XII, na sua última encíclica “Pacem in terris”, de 11 de  abri de 1963, dois meses antes do seu falecimento, coloca a natureza na perspectiva do cenário em que a espécie humana  vive sobrevive, prospera ou definha. Pela sua natureza a Encíclica destina-se, em primeiro lugar ao universo católico. Quando o tema tratado, porém, interessa as pessoas independentemente da confissão religiosa, entra na esfera do bem comum. É o que acontece com a “Pacem in terris”. João XXIII  dirige-se “a todas as pessoas de boa vontade” pois, o meio ambiente é um bem comum. O fato de a  encíclica datar de 52 anos atrás merece duas considerações. A primeira. Na época a questão ambiental recém começava a frequentar os debates científicos, as primeiras entidades de proteção à natureza começavam a ser criadas. No Brasil  as fronteiras de expansão agrícola avançavam sobre as florestas virgens do oeste do Paraná. Não demoraria o assalto aos dois Mato Grosso, o cerrado do Brasil Central, Rondônia, Acre e para além para o norte, Amazônia adentro. Vozes isoladas alertando para as consequências funestas da substituição dos gigantescos ecossistemas  naturais por outros tantos humanizados, faziam-se ouvir desde o final do século XIX, mas nada comparável ao que acontece nesse nível hoje. As encíclicas dos dois papas mencionados são, portanto, uma prova inequívoca de que o magistério oficial da Igreja estava alerta e decidido a dar a sua contribuição para lidar corretamente com o problema que se desenhava no horizonte.

A Pio XII, um intelectual de primeira linha coube definir as bases teóricas e doutrinárias em que  que tornaram possível levar objetivamente a uma compreensão da natureza a partir da realidade  científica e da doutrina da Igreja. Suas encíclicas deixam bem claro o que é da competência da Ciência e da Religião na compreensão da natureza e do “como” se originou  e evoluiu. As duas encíclicas  servem de referência para nortear qualquer pesquisa científica ou ação prática que tem como objeto  a “morada”, a “querência” em que a espécie humana construiu e continua construindo a sua história. E, par que as reflexões, os debates e as conclusões sobre essas questões tão complexas não estagnassem no nível dos documentos pontifícios, Pio XII criou a “Academia Pontifícia de Ciências”, como fórum de debates sérios aberta a todo o cientista interessado, independente à filiação filosófica ou confessional.

O perfil mais acadêmico das encíclicas de Pio XII, vai dar lugar a documentos de igual peso e valor doutrinário, mas de cunho mais prático, publicados pelos seus sucessores, chamando a atenção para a responsabilidade e o compromisso para com o meio ambiente. Vai nesse sentido  Encíclica “Pacem in terris” de João XXIII ao fazer o convite “a todas as pessoas de boa vontade” a comprometer-se com o futuro da “nossa casa” como costumava São Francisco se expressar quando falava da natureza.

Em 14 de maio de 1971, oito anos depois da “Pacem in terris”, Paulo VI publicou a Carta Apostólica ”Octogesima Adveniens”. Nela chama a atenção para os riscos  acarretados pela degradação progressiva e acelerada da natureza ou a consequência dramática  resultado da exploração  inconsciente da natureza e dessa maneira o próprio ser humano ser vítima da sua obra destruidora. Num discurso à FAO em 16 de novembro de  19770, alertou para  uma “catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial; para a necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente  contra o homem”.

João Paulo II sucessor de Paulo VI na sua primeira encíclica  “Remptor Hominis”, de  4 de março de 1979, deixou a observação que o ser humano  parece “não se dar conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para                              os fins de um uso e consumo imediato”. Em 2001  João Paulo II volta a questão ambiental, convidando para uma “conversão” ecológica global. Na encíclica “Centesimus Annus” de 1º de maio de 1991 chama a atenção de que é preciso  “Salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana”. Na encíclica “Sollicitudo rei socialis” de 30 de dezembro de 1987, o papa falando dos modelos de convívio social em vigor e as políticas de produção, nas estruturas de poder que hoje regem as sociedades”, insiste no  ponto nevrálgico do problema. O progresso humano deveria ter como baliza norteadora  o caráter moral, ou se preferirmos o caráter ético, raiz das raízes, motivação das motivações, para toda e qualquer iniciativa no complexo campo da ecologia. Ao lidar com o mundo natural,  “é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações entre todos num sistema ordenado”.

A conclusão é óbvia. A atividade do homem no mundo natural, o aproveitamento dos seus recursos, só se legitima quando se respeita a sua destinação original. Em ouras palavras. Os recursos naturais destinam-se a todos os homens, independentemente de raça, cor, filiação confessional, nível cultural, nível econômico ou status social. Todos tem o mesmo direito ao acesso desses bens  e assim suprir as suas necessidades materiais e espirituais. No momento em que essa destinação for viciada por outros interesses, atenta-se contra a ética e a moral  implícita no conceito de natureza. Qualquer iniciativa, projeto ou programa de exploração da natureza é ilegítimo quando entra em conflito com o bem comum, contra a natureza e, em situações mais graves, criminosa.

E para concluir a inegável preocupação das autoridades  máximas da Igreja sobre  a questão ecológica, não se pode esquecer o que Bento XVI, antecessor imediato do papa Francisco, pensou sobre a problemática. Na carta apostólica de 29 de junho de 2.009, o papa   referiu-se ao desafio ecológico. O foco das suas preocupações, como a dos seus antecessores, foi a identificação dos fundamentos, sem os quais, o tema, em última análise não faz tanto sentido pois, é nivelado a outras questões e, como elas, tocado à base de ideologias, de interesses econômicos, políticos e outros, ditados pelas conveniências em moda.

Num discurso endereçado ao corpo diplomático em 8 de janeiro de 2007, Bento XVI retomou o pensamento do seu antecessor sobre  a questão ambiental. Reforçou o discurso de João Paulo II, ao conclamar os diplomatas a se empenhar num esforço supranacional para “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente”. O mundo,  segundo o pontífice, não pode ser compreendido nas sua enorme complexidade, focando ou tentando entender uma ou outra de suas dimensões. A natureza é uma grandiosa e engenhosa síntese. Em vão são as tentativas para entende-la dissecando as partes, porque “esse livro da natureza é indivisível”. “Ex partibus omnibus ellucet totum – “o todo revela-se por todas as suas partes”, diria Nicolau de Cusa. Nessa indivisibilidade não entram apenas em questão o que tecnicamente se costuma entender ao falar em natureza ou meio ambiente. A “nossa casa”, a “querência” que abriga o homem e permite que sua existência aconteça e se realize, só “é um livro indivisível”, quando incluímos nele o homem, o personagem que lhe confere sentido e razão de ser. Portanto, a natureza como uma “realidade objetiva”, como a concebeu o cientista Edward Wilson, vai incorporando no decorrer da sua história o homem com suas obras e organizações, em parceria com os ambientes físico-geográficos peculiares. Em outras palavras. A resposta na forma de culturas diferenciadas  resultam da maneira singular em que acontece a simbiose entre o homem  e seu meio, sua “casa”, sua “querência.

E é nessa perspectiva que vai o conceito de “paisagem humanizada” ou “Ecossistema humanizado”. A lógica leva a concluir que a humanização dos ecossistemas é fundamental para a moldagem do perfil das culturas que neles prosperam, assim como a recíproca que não é menos verdadeira. Por isso faz todo o sentido a observação de Bento XVI na encíclica “Caritas in Veritate”, de 29 de junho de 2.009. “A degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana”. Depois de apontar para os estragos que o homem já causou à natureza, a casa que o abriga e alimenta, `”sua casa”. Depois de afirmar que essa irresponsabilidade já afetou o próprio modelo das organizações sociais e culturais em vigor, como teólogo vai à raiz do problema. De acordo com sua  avaliação, os males que geram essas distorções, para não dizer aberrações, resumem-se em última análise num só. A lógica que alimenta todo esses processo é a falsa convicção de que não existem “verdades indiscutíveis”, não  existem balizas irremovíveis, não há valores permanentes, que marcam os limites para o exercício da liberdade. No  discurso que Bento XVI pronunciou em Berlim, no Bundestag, a um certa altura alertou: “O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza. E num discurso ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone na Itália, lembrou que “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente a nossa propriedade onde consumimos apenas para nós mesmos, começa o desperdício da Criação  onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”.

A evolução da compreensão da natureza e a doutrina ambiental da Igreja, expressa nos documentos oficiais, parece seguir os seguintes passos. A primeira abertura  oficial para uma perspectiva mais objetiva, mis compreensiva e mais completa da natureza, começou com Pio XII. Os avanços e os resultados em todos os campos do saber, especialmente nas Ciências Naturais deixaram claro que a cosmovisão tradicional da Igreja reclamava uma reinterpretação. Pio XII foi o homem certo no momento certo para dar partida a essa oxigenação inadiável da Igreja Católica em relação ao mundo científico e suas conquistas e resultados. Com a encíclica “Divino Afflante Spiritu” de 30 de setembro de 1943 começou a abertura, removendo um dos obstáculos mais renitentes a dificultar, para não dizer, impedir o clero e o povo católico em geral, o trânsito livre no grande universo científico ao permitir a flexibilização na interpretação da Sagrada Escritura. Lembramos como exemplo paradigmático o cientista jesuíta Erich Wassmann que, tendo em vista as determinações anti-modernistas de Pio X, desistiu em 1910 da publicação da terceira edição da sua obra clássica: “Moderne Biologie”.  Pio XII com sua vasta formação profana e religiosa, somada à vivência como diplomata, como núncio apostólico em Berlim, percebeu a urgência em mexer no que aprecia um autêntico tabu, isto é, a interpretação das Sagradas Escrituras. A interpretação literal dos textos, em especial do Gênesis, distanciava-se a passos quilométricos do que as Ciências vinha constatando. A interpretação literal já não se sustentava. Frente a esses cenário Pio XII, por meio da “Divino Afflante Spiritu” liberou a discussão sobre a natureza e a interpretação dos textos sagrados. Para tanto seria preciso o recurso à língua original em que os textos foram escritos, valendo-se de todos métodos e instrumentos científicos no campo da linguística, da literatura, da arqueologia, da antropologia, da etnohistória e das  demais ciências complementares.

Na Encíclica “Humani generis” de agosto de 1950, Pio XII avançou mais um paço  de fundamental importância para viabilizar  o esforço comum entre a Ciência e a Religião, em busca de uma compreensão objetiva da natureza e, consequentemente, do homem. Invocando a necessidade de tomar em consideração as evidências reveladas pela Ciências Naturais, franqueou a porta para que a evolução explique o “como” a natureza funciona. Quanto a natureza humana, sua origem e evolução biológica insere-se logicamente nessa perspectiva. Para o católico não há impedimento, melhor é de suma importância participar das pesquisas e das reflexões que dizem respeito à evolução. Não ha igualmente restrição em compartilhar e aceitar os resultados, com uma dupla ressalva. Em primeiro lugar, que plano biológico, incluindo o homem, essas conclusões  não sejam interpretadas como verdades definitivamente comprovadas. Em segundo lugar, fica fora de qualquer discussão incluir a alma, o espírito como resultado do processo evolutivo. O corpo pode ter evoluído, a alma não. A alma foi criada imediatamente por Deus, por isso é um questão de fé, não de ciência.

Tomando em consideração o estágio em que se encontravam as pesquisas científicas em 1950, a “Humani gerneris” foi, ao mesmo tempo, realista e profética. Realista porque a Igreja Católica acertou oficialmente  o passo com a Ciência; realista porque em vez de contestar, contestar e olhar com desconfiança para  os cientistas e a ciência e suas conclusões, decide ser colaboradora e parceira. A criação da “Academia Pontifícia de Ciências” por Pio XII é a prova material dessa disposição. A Encíclica foi igualmente profética  pois, a cada  dia cresce o número de cientistas de peso, católicos, cristãos de diversas denominações , representantes de outras religiões, ou simplesmente humanistas seculares, que entendem a natureza como uma síntese, a partir dos conhecimentos gerados pelas Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. É nessa  perspectiva multifacética que se concebe hoje a natureza e sobre  qual se fundamenta a autêntica consciência ecológica e as iniciativas e as ações práticas para pô-la em prática.

O caminho pois, estava livre para que a Ciência e a Religião, cada qual à sua maneira e com seus métodos contribuíssem com a sua parte para compreender a natureza na sua complexidade e, partindo desse pressuposto, partissem em sua defesa. Foi o que aconteceu há há mais de 50 anos com a encíclica “Pacem in terris” de João XXIII. Os sinais de alerta denunciando as agressões perigosas ao meio ambiente começavam a ser ouvidas e o papa associou-se com toda a sua autoridade.

Diante do descaso com o meio ambiente e o agravamento da situação, fizeram-se ouvir os alertas de Paulo VI. O tom e a frequência das preocupações multiplicaram-se na mesma proporção em que as agressões à natureza se multiplicavam e agravavam. Foram contundentes e alarmantes as manifestações de João Paulo II e Bento XVI. E a essa altura em que os desmandos do homem contra  a natureza passaram do limite tolerável, às vésperas da reunião dos líderes mundiais em Paris, para discutir a situação, o Papa Francisco contribui para enriquecer a discussão, com a Encíclica ”Laudato se” com toda a propriedade apelidada de “Encíclica verde”.


A “Encíclica  verde” parte do fato  de que, de dois séculos para cá, a relação do homem com a natureza enveredou por um caminho preocupante. Aliás as raízes do problema devem ser procuradas muito mais cedo, entre 15000 a 20000 anos atrás. Esse longo caminhar histórico da humanidade, a par dos muitos e inegáveis benefícios, veio acompanhado por efeitos, a longo prazo, opostos aos benefícios. Representam o resultado paradoxal inerente à  própria inserção existencial do homem na natureza. Suas raízes como espécie biológica alimentam-se do chão comum a todas as demais espécies vivas, planas e animais. Como elas vive, sobrevive ou perece abraçado às vicissitudes do ambiente natural, que fornece alimento e abrigo ao corpo e os símbolos e a inspiração para o espírito. Na abundância prospera e na escassez definha. Da saúde, equilíbrio e integridade da natureza depende a saúde e a prosperidade do homem. A degradação natural ou artificialmente induzida, leva à deterioração do homem como espécie, acompanhado da decadência das culturas e civilizações.

Pela sua própria natureza os animais dispõem do instinto e os vegetais o potencial de adaptação para enfrentar as oscilações climáticas e as modificações dos ecossistemas. O homem dispõe da inteligência reflexa e da liberdade como ferramentas para lidar com o meio  ambiente e servir-se dos recursos naturais. A inteligência reflexa permite-lhe observar, identificar e avaliar os recursos naturais disponíveis. Ela decide sobre “o que” e o “para que” servem as dádivas da natureza. A liberdade permite optar por uma das alternativas, mais ou menos adequada, como caminho para “o como” será o processo da apropriação dos recursos naturais.  Sendo assim o homem foi descobrindo, via inteligência reflexa, de como administrar a “sua cassa”, a “sua querência” e, via liberdade, escolher e decidir-se pela forma como explorar os recursos naturais. Munido com essas duas ferramentas enfrentou os desafios que vinha encontrando pela frente.

Durante muitos séculos, dezenas de milhares de anos a humanidade viveu e sobreviveu com mais ou menos êxito das  dádivas espontâneas postas à sua disposição pela natureza. Colhia frutas, raízes, tubérculos e folhas comestíveis, caçava animais que com ele compartilhavam o mesmo espaço e pescava os  peixes  em abundância nos rios, arroios lagoas e costas marítimas. Com sua criatividade foi coletando, inventando e aperfeiçoando ferramentas para torna a coleta, a caça e a pesca cada vez mais fácil e rendosa. A prova dessas conquistas estão nos instrumentos de pedra lascada do paleolítico. Com toda a certeza, a pedra lascada, com destaque para o sílex encontrável em qualquer lugar e o menos frequente vidro vulcânico, não foi a única matéria prima com que homem daqueles tempos remotos fabricava instrumentos. Pode-se afirmar com certeza que a madeira,  osso,  chifre e dentes tiveram a mesma utilidade. Acontece que muito mais susceptíveis à destruição pelos agentes de degradação naturais, seus vestígios foram apagados.

O fato é que o homem do paleolítico, ao lado de diversificar e aperfeiçoar os instrumentos, foi ampliando e aperfeiçoando o conhecimento das plantas que lhe forneciam alimentos. Os caçadores, por sua vez foram observando os hábitos dos animais, como algumas espécies habituaram-se presença do homem e conviviam com ele perto do acampamentos. Somado ao aperfeiçoamento de tecnologias, a entrada do fogo  no quotidiano  somou um potencial de progresso difícil de avaliar.