Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 3 -

A doutrina da Igreja

 A reconciliação oficial da Igreja com o universo e a natureza sugerida pelas conquistas científicas, começou com Pio XII na década de 1940. Na carta encíclica “Divino aflante Spiritu” (1943)  veio o primeiro sinal liberando os católicos para a aceitação da teoria da evolução. A “Encíclica “Humani  Generis” (1950) do mesmo Pio XII consolidou essa abertura.  Com as duas encíclicas, o papa definiu os parâmetros e os limites permitidos pela doutrina católica em relação à natureza, sua origem, sua evolução colocando o homem como personagem  central nesse cenário. Definiu a competência e a responsabilidade da Ciência e da Teologia para a compreensão do homem.

O papa João XXIII, sucessor  de Pio XII, na sua última encíclica “Pacem in terris”, de 11 de  abri de 1963, dois meses antes do seu falecimento, coloca a natureza na perspectiva do cenário em que a espécie humana  vive sobrevive, prospera ou definha. Pela sua natureza a Encíclica destina-se, em primeiro lugar ao universo católico. Quando o tema tratado, porém, interessa as pessoas independentemente da confissão religiosa, entra na esfera do bem comum. É o que acontece com a “Pacem in terris”. João XXIII  dirige-se “a todas as pessoas de boa vontade” pois, o meio ambiente é um bem comum. O fato de a  encíclica datar de 52 anos atrás merece duas considerações. A primeira. Na época a questão ambiental recém começava a frequentar os debates científicos, as primeiras entidades de proteção à natureza começavam a ser criadas. No Brasil  as fronteiras de expansão agrícola avançavam sobre as florestas virgens do oeste do Paraná. Não demoraria o assalto aos dois Mato Grosso, o cerrado do Brasil Central, Rondônia, Acre e para além para o norte, Amazônia adentro. Vozes isoladas alertando para as consequências funestas da substituição dos gigantescos ecossistemas  naturais por outros tantos humanizados, faziam-se ouvir desde o final do século XIX, mas nada comparável ao que acontece nesse nível hoje. As encíclicas dos dois papas mencionados são, portanto, uma prova inequívoca de que o magistério oficial da Igreja estava alerta e decidido a dar a sua contribuição para lidar corretamente com o problema que se desenhava no horizonte.

A Pio XII, um intelectual de primeira linha coube definir as bases teóricas e doutrinárias em que  que tornaram possível levar objetivamente a uma compreensão da natureza a partir da realidade  científica e da doutrina da Igreja. Suas encíclicas deixam bem claro o que é da competência da Ciência e da Religião na compreensão da natureza e do “como” se originou  e evoluiu. As duas encíclicas  servem de referência para nortear qualquer pesquisa científica ou ação prática que tem como objeto  a “morada”, a “querência” em que a espécie humana construiu e continua construindo a sua história. E, par que as reflexões, os debates e as conclusões sobre essas questões tão complexas não estagnassem no nível dos documentos pontifícios, Pio XII criou a “Academia Pontifícia de Ciências”, como fórum de debates sérios aberta a todo o cientista interessado, independente à filiação filosófica ou confessional.

O perfil mais acadêmico das encíclicas de Pio XII, vai dar lugar a documentos de igual peso e valor doutrinário, mas de cunho mais prático, publicados pelos seus sucessores, chamando a atenção para a responsabilidade e o compromisso para com o meio ambiente. Vai nesse sentido  Encíclica “Pacem in terris” de João XXIII ao fazer o convite “a todas as pessoas de boa vontade” a comprometer-se com o futuro da “nossa casa” como costumava São Francisco se expressar quando falava da natureza.

Em 14 de maio de 1971, oito anos depois da “Pacem in terris”, Paulo VI publicou a Carta Apostólica ”Octogesima Adveniens”. Nela chama a atenção para os riscos  acarretados pela degradação progressiva e acelerada da natureza ou a consequência dramática  resultado da exploração  inconsciente da natureza e dessa maneira o próprio ser humano ser vítima da sua obra destruidora. Num discurso à FAO em 16 de novembro de  19770, alertou para  uma “catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial; para a necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente  contra o homem”.

João Paulo II sucessor de Paulo VI na sua primeira encíclica  “Remptor Hominis”, de  4 de março de 1979, deixou a observação que o ser humano  parece “não se dar conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para                              os fins de um uso e consumo imediato”. Em 2001  João Paulo II volta a questão ambiental, convidando para uma “conversão” ecológica global. Na encíclica “Centesimus Annus” de 1º de maio de 1991 chama a atenção de que é preciso  “Salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana”. Na encíclica “Sollicitudo rei socialis” de 30 de dezembro de 1987, o papa falando dos modelos de convívio social em vigor e as políticas de produção, nas estruturas de poder que hoje regem as sociedades”, insiste no  ponto nevrálgico do problema. O progresso humano deveria ter como baliza norteadora  o caráter moral, ou se preferirmos o caráter ético, raiz das raízes, motivação das motivações, para toda e qualquer iniciativa no complexo campo da ecologia. Ao lidar com o mundo natural,  “é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações entre todos num sistema ordenado”.

A conclusão é óbvia. A atividade do homem no mundo natural, o aproveitamento dos seus recursos, só se legitima quando se respeita a sua destinação original. Em ouras palavras. Os recursos naturais destinam-se a todos os homens, independentemente de raça, cor, filiação confessional, nível cultural, nível econômico ou status social. Todos tem o mesmo direito ao acesso desses bens  e assim suprir as suas necessidades materiais e espirituais. No momento em que essa destinação for viciada por outros interesses, atenta-se contra a ética e a moral  implícita no conceito de natureza. Qualquer iniciativa, projeto ou programa de exploração da natureza é ilegítimo quando entra em conflito com o bem comum, contra a natureza e, em situações mais graves, criminosa.

E para concluir a inegável preocupação das autoridades  máximas da Igreja sobre  a questão ecológica, não se pode esquecer o que Bento XVI, antecessor imediato do papa Francisco, pensou sobre a problemática. Na carta apostólica de 29 de junho de 2.009, o papa   referiu-se ao desafio ecológico. O foco das suas preocupações, como a dos seus antecessores, foi a identificação dos fundamentos, sem os quais, o tema, em última análise não faz tanto sentido pois, é nivelado a outras questões e, como elas, tocado à base de ideologias, de interesses econômicos, políticos e outros, ditados pelas conveniências em moda.

Num discurso endereçado ao corpo diplomático em 8 de janeiro de 2007, Bento XVI retomou o pensamento do seu antecessor sobre  a questão ambiental. Reforçou o discurso de João Paulo II, ao conclamar os diplomatas a se empenhar num esforço supranacional para “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente”. O mundo,  segundo o pontífice, não pode ser compreendido nas sua enorme complexidade, focando ou tentando entender uma ou outra de suas dimensões. A natureza é uma grandiosa e engenhosa síntese. Em vão são as tentativas para entende-la dissecando as partes, porque “esse livro da natureza é indivisível”. “Ex partibus omnibus ellucet totum – “o todo revela-se por todas as suas partes”, diria Nicolau de Cusa. Nessa indivisibilidade não entram apenas em questão o que tecnicamente se costuma entender ao falar em natureza ou meio ambiente. A “nossa casa”, a “querência” que abriga o homem e permite que sua existência aconteça e se realize, só “é um livro indivisível”, quando incluímos nele o homem, o personagem que lhe confere sentido e razão de ser. Portanto, a natureza como uma “realidade objetiva”, como a concebeu o cientista Edward Wilson, vai incorporando no decorrer da sua história o homem com suas obras e organizações, em parceria com os ambientes físico-geográficos peculiares. Em outras palavras. A resposta na forma de culturas diferenciadas  resultam da maneira singular em que acontece a simbiose entre o homem  e seu meio, sua “casa”, sua “querência.

E é nessa perspectiva que vai o conceito de “paisagem humanizada” ou “Ecossistema humanizado”. A lógica leva a concluir que a humanização dos ecossistemas é fundamental para a moldagem do perfil das culturas que neles prosperam, assim como a recíproca que não é menos verdadeira. Por isso faz todo o sentido a observação de Bento XVI na encíclica “Caritas in Veritate”, de 29 de junho de 2.009. “A degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana”. Depois de apontar para os estragos que o homem já causou à natureza, a casa que o abriga e alimenta, `”sua casa”. Depois de afirmar que essa irresponsabilidade já afetou o próprio modelo das organizações sociais e culturais em vigor, como teólogo vai à raiz do problema. De acordo com sua  avaliação, os males que geram essas distorções, para não dizer aberrações, resumem-se em última análise num só. A lógica que alimenta todo esses processo é a falsa convicção de que não existem “verdades indiscutíveis”, não  existem balizas irremovíveis, não há valores permanentes, que marcam os limites para o exercício da liberdade. No  discurso que Bento XVI pronunciou em Berlim, no Bundestag, a um certa altura alertou: “O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza. E num discurso ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone na Itália, lembrou que “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente a nossa propriedade onde consumimos apenas para nós mesmos, começa o desperdício da Criação  onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”.

A evolução da compreensão da natureza e a doutrina ambiental da Igreja, expressa nos documentos oficiais, parece seguir os seguintes passos. A primeira abertura  oficial para uma perspectiva mais objetiva, mis compreensiva e mais completa da natureza, começou com Pio XII. Os avanços e os resultados em todos os campos do saber, especialmente nas Ciências Naturais deixaram claro que a cosmovisão tradicional da Igreja reclamava uma reinterpretação. Pio XII foi o homem certo no momento certo para dar partida a essa oxigenação inadiável da Igreja Católica em relação ao mundo científico e suas conquistas e resultados. Com a encíclica “Divino Afflante Spiritu” de 30 de setembro de 1943 começou a abertura, removendo um dos obstáculos mais renitentes a dificultar, para não dizer, impedir o clero e o povo católico em geral, o trânsito livre no grande universo científico ao permitir a flexibilização na interpretação da Sagrada Escritura. Lembramos como exemplo paradigmático o cientista jesuíta Erich Wassmann que, tendo em vista as determinações anti-modernistas de Pio X, desistiu em 1910 da publicação da terceira edição da sua obra clássica: “Moderne Biologie”.  Pio XII com sua vasta formação profana e religiosa, somada à vivência como diplomata, como núncio apostólico em Berlim, percebeu a urgência em mexer no que aprecia um autêntico tabu, isto é, a interpretação das Sagradas Escrituras. A interpretação literal dos textos, em especial do Gênesis, distanciava-se a passos quilométricos do que as Ciências vinha constatando. A interpretação literal já não se sustentava. Frente a esses cenário Pio XII, por meio da “Divino Afflante Spiritu” liberou a discussão sobre a natureza e a interpretação dos textos sagrados. Para tanto seria preciso o recurso à língua original em que os textos foram escritos, valendo-se de todos métodos e instrumentos científicos no campo da linguística, da literatura, da arqueologia, da antropologia, da etnohistória e das  demais ciências complementares.

Na Encíclica “Humani generis” de agosto de 1950, Pio XII avançou mais um paço  de fundamental importância para viabilizar  o esforço comum entre a Ciência e a Religião, em busca de uma compreensão objetiva da natureza e, consequentemente, do homem. Invocando a necessidade de tomar em consideração as evidências reveladas pela Ciências Naturais, franqueou a porta para que a evolução explique o “como” a natureza funciona. Quanto a natureza humana, sua origem e evolução biológica insere-se logicamente nessa perspectiva. Para o católico não há impedimento, melhor é de suma importância participar das pesquisas e das reflexões que dizem respeito à evolução. Não ha igualmente restrição em compartilhar e aceitar os resultados, com uma dupla ressalva. Em primeiro lugar, que plano biológico, incluindo o homem, essas conclusões  não sejam interpretadas como verdades definitivamente comprovadas. Em segundo lugar, fica fora de qualquer discussão incluir a alma, o espírito como resultado do processo evolutivo. O corpo pode ter evoluído, a alma não. A alma foi criada imediatamente por Deus, por isso é um questão de fé, não de ciência.

Tomando em consideração o estágio em que se encontravam as pesquisas científicas em 1950, a “Humani gerneris” foi, ao mesmo tempo, realista e profética. Realista porque a Igreja Católica acertou oficialmente  o passo com a Ciência; realista porque em vez de contestar, contestar e olhar com desconfiança para  os cientistas e a ciência e suas conclusões, decide ser colaboradora e parceira. A criação da “Academia Pontifícia de Ciências” por Pio XII é a prova material dessa disposição. A Encíclica foi igualmente profética  pois, a cada  dia cresce o número de cientistas de peso, católicos, cristãos de diversas denominações , representantes de outras religiões, ou simplesmente humanistas seculares, que entendem a natureza como uma síntese, a partir dos conhecimentos gerados pelas Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. É nessa  perspectiva multifacética que se concebe hoje a natureza e sobre  qual se fundamenta a autêntica consciência ecológica e as iniciativas e as ações práticas para pô-la em prática.

O caminho pois, estava livre para que a Ciência e a Religião, cada qual à sua maneira e com seus métodos contribuíssem com a sua parte para compreender a natureza na sua complexidade e, partindo desse pressuposto, partissem em sua defesa. Foi o que aconteceu há há mais de 50 anos com a encíclica “Pacem in terris” de João XXIII. Os sinais de alerta denunciando as agressões perigosas ao meio ambiente começavam a ser ouvidas e o papa associou-se com toda a sua autoridade.

Diante do descaso com o meio ambiente e o agravamento da situação, fizeram-se ouvir os alertas de Paulo VI. O tom e a frequência das preocupações multiplicaram-se na mesma proporção em que as agressões à natureza se multiplicavam e agravavam. Foram contundentes e alarmantes as manifestações de João Paulo II e Bento XVI. E a essa altura em que os desmandos do homem contra  a natureza passaram do limite tolerável, às vésperas da reunião dos líderes mundiais em Paris, para discutir a situação, o Papa Francisco contribui para enriquecer a discussão, com a Encíclica ”Laudato se” com toda a propriedade apelidada de “Encíclica verde”.


A “Encíclica  verde” parte do fato  de que, de dois séculos para cá, a relação do homem com a natureza enveredou por um caminho preocupante. Aliás as raízes do problema devem ser procuradas muito mais cedo, entre 15000 a 20000 anos atrás. Esse longo caminhar histórico da humanidade, a par dos muitos e inegáveis benefícios, veio acompanhado por efeitos, a longo prazo, opostos aos benefícios. Representam o resultado paradoxal inerente à  própria inserção existencial do homem na natureza. Suas raízes como espécie biológica alimentam-se do chão comum a todas as demais espécies vivas, planas e animais. Como elas vive, sobrevive ou perece abraçado às vicissitudes do ambiente natural, que fornece alimento e abrigo ao corpo e os símbolos e a inspiração para o espírito. Na abundância prospera e na escassez definha. Da saúde, equilíbrio e integridade da natureza depende a saúde e a prosperidade do homem. A degradação natural ou artificialmente induzida, leva à deterioração do homem como espécie, acompanhado da decadência das culturas e civilizações.

Pela sua própria natureza os animais dispõem do instinto e os vegetais o potencial de adaptação para enfrentar as oscilações climáticas e as modificações dos ecossistemas. O homem dispõe da inteligência reflexa e da liberdade como ferramentas para lidar com o meio  ambiente e servir-se dos recursos naturais. A inteligência reflexa permite-lhe observar, identificar e avaliar os recursos naturais disponíveis. Ela decide sobre “o que” e o “para que” servem as dádivas da natureza. A liberdade permite optar por uma das alternativas, mais ou menos adequada, como caminho para “o como” será o processo da apropriação dos recursos naturais.  Sendo assim o homem foi descobrindo, via inteligência reflexa, de como administrar a “sua cassa”, a “sua querência” e, via liberdade, escolher e decidir-se pela forma como explorar os recursos naturais. Munido com essas duas ferramentas enfrentou os desafios que vinha encontrando pela frente.

Durante muitos séculos, dezenas de milhares de anos a humanidade viveu e sobreviveu com mais ou menos êxito das  dádivas espontâneas postas à sua disposição pela natureza. Colhia frutas, raízes, tubérculos e folhas comestíveis, caçava animais que com ele compartilhavam o mesmo espaço e pescava os  peixes  em abundância nos rios, arroios lagoas e costas marítimas. Com sua criatividade foi coletando, inventando e aperfeiçoando ferramentas para torna a coleta, a caça e a pesca cada vez mais fácil e rendosa. A prova dessas conquistas estão nos instrumentos de pedra lascada do paleolítico. Com toda a certeza, a pedra lascada, com destaque para o sílex encontrável em qualquer lugar e o menos frequente vidro vulcânico, não foi a única matéria prima com que homem daqueles tempos remotos fabricava instrumentos. Pode-se afirmar com certeza que a madeira,  osso,  chifre e dentes tiveram a mesma utilidade. Acontece que muito mais susceptíveis à destruição pelos agentes de degradação naturais, seus vestígios foram apagados.

O fato é que o homem do paleolítico, ao lado de diversificar e aperfeiçoar os instrumentos, foi ampliando e aperfeiçoando o conhecimento das plantas que lhe forneciam alimentos. Os caçadores, por sua vez foram observando os hábitos dos animais, como algumas espécies habituaram-se presença do homem e conviviam com ele perto do acampamentos. Somado ao aperfeiçoamento de tecnologias, a entrada do fogo  no quotidiano  somou um potencial de progresso difícil de avaliar.


This entry was posted on segunda-feira, 21 de agosto de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.