O que entra em questão?
Para
fundamentar a “Encíclica Verde” o Papa
Francisco escolheu o conceito de natureza concebido e vivido por São Francisco
de Assis. No “cantico delle nature. há 800 anos o santo chamava a natureza de
“mãe”. ”Louvado sejas meu Senhor, pela nossa irmã e mãe terra que nos sustenta
e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.
O
Papa ao introduzir a Encíclica com a declaração de amor e carinho pela natureza
de São Francisco de Assis, não o fez com a intenção de reduzir a questão
ambiental a uma questão poética, sentimental ou romântica. Sugere uma
intenção muito mais séria e profunda.
Ele deixa claro que, ao lidar com os problemas ambientais, faz-se necessário
partir de uma base que faça sentido para a própria existência humana.
Enquanto
colocamos no papel essa reflexões, em Paris estão sendo ultimados os
preparativos para o encontro global do Clima. Na ribalta estarão os poderosos
do planeta, os detentores do poder político, econômico e militar, com a
pretensão de decidir sobre o rumo da história. Um segundo plano, tentando fazer
valer seus pontos de vista, cabe aos porta vozes de interesses de toda a ordem,
os legítimos e os nem tanto, fazendo coro aos confessada e tacitamente
interesseiros. Mascaradas por discursos e declarações de princípios e intenções
em favor de valores legítimos, no fundo no fundo, duas poderosas forças
terminam impondo o estilo e o conteúdo aos documentos assinados como conclusão
do que foi acertado. A identificação dessas forças significa procurar o óbvio.
O tom fica a cargo dos interesses políticos,
geoeconômicos, ideológicos ou simplesmente de promoção pessoal. Trata-se
de forças poderosas que pressionam na mesma direção e se alimentam e apoiam
mutuamente. Essas forças concebem a questão ambiental como a via para
apoderar-se dos recursos naturais, controlar seus fluxos e assim decidir sobre
as políticas econômicas e os critérios de acesso e distribuição dos recursos
naturais.
Ao
recorrer à metáfora “nossa casa”, “nossa mãe” o Papa Francisco caracterizou a
íntima relação do homem com a natureza. E, em o fazendo assim, definiu os
critérios que devem nortear o uso e o fruto dos recursos naturais. Basta
entender o significado desses dois conceitos, para avaliar o que o papa quer
ensinar. Quando alguém pronuncia as palavras
“minha casa”, desdobra-se diante de qualquer pessoa, o cenário em que o
humano, a “Menschlichkeit”, diria o Pe. Rambo e a natureza celebram uma
comunhão existencial.
É
numa casa, no sentido lato do termo, que
as pessoas nascem, crescem, tornam-se adultos e envelhecem. Nela encontram
abrigo, proteção, alimentação, carinho e amor. Ressalvadas as particularidades,
a natureza exerce as funções de uma
casa, porém de maneira muito mais existencial. Começa por ai que o ser humano
biologicamente, é feito da mesma matéria prima do mineral, dos micro organismos,
dos vegetais e animais. Em resumo. Na estrutura e composição do corpo humano
entram oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e carbono, mais em torno de duas dúzias
de outros elementos constantes na tábua
periódica. As mesmas leis físicas e fisiológicas responsáveis pelo bom estado
de qualquer outro se vivo, garantem o bom funcionamento das atividades vitais
do homem. A origem da espécie humana, pelo que tange à sua natureza biológica
pode ser encontrada até prova em contrário, em algum ancestral animal. Surgiu,
evoluiu, diversificou-se como mais um rebento bem sucedido na magnífica árvore
da evolução. Haveria muitos outros argumentos para se provar a inserção
existencial do homem na natureza, mas não é aqui o lugar para entrar em outros
detalhes.
A
primeira conclusão. O homem como espécie taxonômica é feito do mesmo “pó da terra” como qualquer
outra espécie viva. A segunda. No plano animal, a espécie humana surgiu e
evoluiu pelas mesmas leis e processos dos demais seres vivos. A terceira. A
natureza põe à disposição do homem os recursos indispensáveis para o sustento e
o abrigo do seu corpo. A quarta. No cenário da natureza o homem encontra o
alimento para o seu imaginário, condições para dar vasão aos seus sentimentos e emoções, e os estímulos para
criar o seu universo simbólico, mágico e
religioso.
Em
resumo. É lícito concluir que o homem é “filho dessa terra” no sentido mais
abrangente do termo; que ele originou-se nela, nela passa sua existência
sustentado pelos seus recursos e a ela retorna depois de cumprida a sua
jornada. É nessa dimensão que as metáforas “nossa casa”, “nossa mãe e pátria”
assumem o significado pleno.
Toda
a argumentação posterior da Encíclica parte, melhor fundamenta-se nesse
pressuposto. A natureza é “a casa de todos” com toda a carga de significados
inerentes ao conceito; a natureza é a morada comum de todos os homens; ninguém
é seu dono privativo; todos são
condôminos de iguais direitos e deveres sobre os seus recursos para levarem uma existência minimamente digna
e decente.
No
momento, porém, em que outros valores e interesses
empurram para um plano secundário ou
simplesmente ignorarem o direito de todos a um mínimo de bem estar
material e dignidade pessoal, algo muito errado está acontecendo. Nesse
particular vamos encontrar, segundo a Encíclica o equívoco tão generalizado de
que a natureza está aí para ser explorada; o homem não se sente parte dela, mas
dono absoluto com permissão para tirar dela o que estiver a seu alcance.
“Costumamos pensar que somos seus proprietários
e dominadores autorizados a saqueá-la”, observa o papa. A convicção de ser
proprietário da terra, aliada à ideia de que a natureza é uma realidade
fortuita, fruto do acaso na sua origem e
evolução, fornecem o fundamento teórico para justificar o saque. As
consequências estão aí à vista de quem tem olhos para ver e ouvidos para escutar.
“Por
isso entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra
oprimida e devastada que ‘geme e sofre as dores do parto’ (Rm 8,22).
Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7). O nosso corpo é
construído pelos mesmos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e
a sua água vivifica-nos e restaura-nos”. (Laudato se, 2).
Espero
que tenha ficado suficientemente claro a intenção do Papa na afirmação do
pressuposto doutrinário para a problemática ecológica. Resumindo. A
metáfora “nossa casa”, a “casa do
homem”, “mãe e pátria”, com toda a carga
de significados que lhe são inerentes, deve ser a âncora de qualquer proposta
para salvar o planeta.
Contrapõe-se
à compreensão viciada de que a natureza está aí par ser explorada sem
restrições e sem contestações, como o entendem as motivações geopolíticas e geoeconômicas.