Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 5 -

O que  entra em questão?

Para fundamentar  a “Encíclica Verde” o Papa Francisco escolheu o conceito de natureza concebido e vivido por São Francisco de Assis. No “cantico delle nature. há 800 anos o santo chamava a natureza de “mãe”. ”Louvado sejas meu Senhor, pela nossa irmã e mãe terra que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.

O Papa ao introduzir a Encíclica com a declaração de amor e carinho pela natureza de São Francisco de Assis, não o fez com a intenção de reduzir a questão ambiental a uma questão poética, sentimental ou romântica. Sugere uma intenção  muito mais séria e profunda. Ele deixa claro que, ao lidar com os problemas ambientais, faz-se necessário partir de uma base que faça sentido para a própria existência humana.

Enquanto colocamos no papel essa reflexões, em Paris estão sendo ultimados os preparativos para o encontro global do Clima. Na ribalta estarão os poderosos do planeta, os detentores do poder político, econômico e militar, com a pretensão de decidir sobre o rumo da história. Um segundo plano, tentando fazer valer seus pontos de vista, cabe aos porta vozes de interesses de toda a ordem, os legítimos e os nem tanto, fazendo coro aos confessada e tacitamente interesseiros. Mascaradas por discursos e declarações de princípios e intenções em favor de valores legítimos, no fundo no fundo, duas poderosas forças terminam impondo o estilo e o conteúdo aos documentos assinados como conclusão do que foi acertado. A identificação dessas forças significa procurar o óbvio. O tom fica a cargo dos interesses políticos,  geoeconômicos, ideológicos ou simplesmente de promoção pessoal. Trata-se de forças poderosas que pressionam na mesma direção e se alimentam e apoiam mutuamente. Essas forças concebem a questão ambiental como a via para apoderar-se dos recursos naturais, controlar seus fluxos e assim decidir sobre as políticas econômicas e os critérios de acesso e distribuição dos recursos naturais.

Ao recorrer à metáfora “nossa casa”, “nossa mãe” o Papa Francisco caracterizou a íntima relação do homem com a natureza. E, em o fazendo assim, definiu os critérios que devem nortear o uso e o fruto dos recursos naturais. Basta entender o significado desses dois conceitos, para avaliar o que o papa quer ensinar. Quando alguém pronuncia as palavras  “minha casa”, desdobra-se diante de qualquer pessoa, o cenário em que o humano, a “Menschlichkeit”, diria o Pe. Rambo e a natureza celebram uma comunhão existencial.

É numa casa, no sentido lato do termo,  que as pessoas nascem, crescem, tornam-se adultos e envelhecem. Nela encontram abrigo, proteção, alimentação, carinho e amor. Ressalvadas as particularidades, a natureza exerce as funções de  uma casa, porém de maneira muito mais existencial. Começa por ai que o ser humano biologicamente, é feito da mesma matéria prima do mineral, dos micro organismos, dos vegetais e animais. Em resumo. Na estrutura e composição do corpo humano entram oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e carbono, mais em torno de duas dúzias de outros  elementos constantes na tábua periódica. As mesmas leis físicas e fisiológicas responsáveis pelo bom estado de qualquer outro se vivo, garantem o bom funcionamento das atividades vitais do homem. A origem da espécie humana, pelo que tange à sua natureza biológica pode ser encontrada até prova em contrário, em algum ancestral animal. Surgiu, evoluiu, diversificou-se como mais um rebento bem sucedido na magnífica árvore da evolução. Haveria muitos outros argumentos para se provar a inserção existencial do homem na natureza, mas não é aqui o lugar para entrar em outros detalhes.

A primeira conclusão. O homem como espécie taxonômica é  feito do mesmo “pó da terra” como qualquer outra espécie viva. A segunda. No plano animal, a espécie humana surgiu e evoluiu pelas mesmas leis e processos dos demais seres vivos. A terceira. A natureza põe à disposição do homem os recursos indispensáveis para o sustento e o abrigo do seu corpo. A quarta. No cenário da natureza o homem encontra o alimento para o seu imaginário, condições para dar vasão aos seus  sentimentos e emoções, e os estímulos para criar  o seu universo simbólico, mágico e religioso.

Em resumo. É lícito concluir que o homem é “filho dessa terra” no sentido mais abrangente do termo; que ele originou-se nela, nela passa sua existência sustentado pelos seus recursos e a ela retorna depois de cumprida a sua jornada. É nessa dimensão que as metáforas “nossa casa”, “nossa mãe e pátria” assumem o significado pleno.

Toda a argumentação posterior da Encíclica parte, melhor fundamenta-se nesse pressuposto. A natureza é “a casa de todos” com toda a carga de significados inerentes ao conceito; a natureza é a morada comum de todos os homens; ninguém é seu dono  privativo; todos são condôminos de iguais direitos e deveres sobre os seus recursos  para levarem uma existência minimamente digna e decente.

No momento, porém,  em que outros valores e interesses empurram para um plano secundário ou  simplesmente ignorarem o direito de todos a um mínimo de bem estar material e dignidade pessoal, algo muito errado está acontecendo. Nesse particular vamos encontrar, segundo a Encíclica o equívoco tão generalizado de que a natureza está aí para ser explorada; o homem não se sente parte dela, mas dono absoluto com permissão para tirar dela o que estiver a seu alcance. “Costumamos  pensar que somos seus proprietários e dominadores autorizados a saqueá-la”, observa o papa. A convicção de ser proprietário da terra, aliada à ideia de que a natureza é uma realidade fortuita, fruto do acaso na sua origem  e evolução, fornecem o fundamento teórico para justificar o saque. As consequências estão aí à vista de quem tem olhos para ver e ouvidos para escutar.

“Por isso entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada que ‘geme e sofre as dores do parto’ (Rm 8,22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7). O nosso corpo é construído pelos mesmos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”. (Laudato se, 2).

Espero que tenha ficado suficientemente claro a intenção do Papa na afirmação do pressuposto doutrinário para a problemática ecológica. Resumindo. A metáfora  “nossa casa”, a “casa do homem”, “mãe e pátria”,  com toda a carga de significados que lhe são inerentes, deve ser a âncora de qualquer proposta para salvar o planeta.


Contrapõe-se à compreensão viciada de que a natureza está aí par ser explorada sem restrições e sem contestações, como o entendem as motivações geopolíticas e geoeconômicas.

This entry was posted on segunda-feira, 28 de agosto de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.