Archive for 2016

A Natureza como Síntese #26

Balduino Rambo  - 6
A partir do momento em que a pesquisa científica com se método analítico foi iluminando  cada vez mais facetas do mundo natural,  o  Livro da Revelação de que fala São Paulo, foi abrindo suas páginas escritas em códigos  foram sendo interpretados na medida em que a Ciência progredia e penetrava cada vez mais fundo nos arcanos da natureza. Foi essa nova realidade que se encontra na base da revolução do pensamento no decorrer dos últimos 600 anos e que levou Rambo a fazer a observação.
Até hoje se levou pouco em consideração o fato  de que, com o início da era moderna, ter começado uma Revelação Divina toda nova. Refiro-me  à Revelação através da Natureza. Evidente que ela existiu desde o princípio. Entretanto,  só com o despontar da era das Ciências Naturais ela foi desvendada ao Homem. É também este um passo à frente na busca da globalidade e uma caminhada constante em direção à plenitude dos tempos. (Rambo, 1994, p. 266)
No esboço de proposta da  síntese que pretendia elaborar Rambo explica a necessidade de mostrar que a Escolástica parte, no seu conjunto, da unidade para a multiplicidade. As Ciências Naturais aproximam-se da questão pelo lado oposto, isto é, da multiplicidade para a unidade. Algo inteiramente novo impôs-se com a entrada para valer das Ciências Naturais. Embora as leis universais tenham permanecido as mesmas, seu significado abriu o horizonte para uma amplitude insuspeitada do significado  e da importância do conhecimento e da compreensão da Natureza.. (A humanidade foi alvo de uma nova Revelação do Universo, só que ela ainda não conseguiu acertar o passo para decifrá-la”. (Rambo, 1994, p. 266).
Vale aqui chamar a atenção de que se passaram 70 anos desde que a observação acima foi escrita. De lá para cá as conquistas da Ciência e a consequente compreensão de como funciona a Natureza, fez progressos gigantescos. Os resultados fruto do esforço honesto de legiões de pesquisadores avançando sempre mais sobre os fundamentos do mundo natural em centenas de laboratórios espalhados pelos cinco continentes, estão se aproximando das fronteiras que separam os conhecimentos conquistados pela aproximação sintético-dedutiva da Filosofia e os conhecimentos fruto da análise indutiva da parte da Ciência. Rambo registrou em seu diário entre 1944 e 1961  os conteúdos, os elementos  que deveriam compor a formulação da síntese que se propunha colocar no papel como resultado de suas pesquisas científicas e, principalmente, das  reflexões diárias durante as duas décadas. A sua intenção fora dedicar 20 anos de sua vida a essa obra. Infelizmente não lhe foi concedido esse tempo. Quando se punha a começar o trabalho sucumbiu inesperadamente a um aneurisma cerebral em 11 de setembro de 1961, com apenas 56 anos de idade. Deixou a matéria prima para a sonhada síntese como herança para alguém com coragem suficiente para enfrentar o desafio.
Entretanto, analisaremos as obras de alguns cientistas contemporâneos a Rambo que entre 1945 e 1970,  formularam sínteses na linha sonhada por ele. O primeiro foi Teilhard de Chardin, seu irmão de ordem. A síntese por ele proposta na sua obra clássica “O Fenômeno Humano” (1955) e o texto complementar com ênfase no papel do homem nesse cenário “O Lugar do Homem na Natureza”, (1950), serviram de base para o capítulo que precedeu ao presente. Contemporâneos foram também Ludwig von Bertalanffy e Thodosius Dobzhansky que serão os contemplados nos dois capítulos que seguem. Von Bertalanffy (1900-1972), partindo da Biologia e valendo-se de modelos matemáticos para trabalhar os dados publicou a “Teoria Geral dos Sistemas” em 1969. Remetemos a descrição e interpretação dessa síntese para o capítulo que segue. Theodosius Dobzhansky (1900-1974) objeto de análise de capítulo posterior, foi um dos geneticistas mais importantes da segunda metade do século XX. Entre os muitos artigos e livros que publicou sobre sua especialidade “A Herança e a Natureza do Homem (1964) é o que se ocupa com as questões de fronteira entre as Ciências Naturais com ênfase na genética, Ciências do Espírito e Ciências Humanas. Reservamos o penúltimo capítulo também a um geneticista, desta vez o Diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético humano, Francis Collins e seu livro que ainda está marcando época “A Linguagem de Deus” (2006). E para finalizar os nosso trabalho apresentamos o “livro “A Criação – como salvar a vida na terra” (2006) de Edward Wilson entre os maiores especialistas em Entomologia e estudioso dos ecossistemas naturais e humanizados e se auto-classificou como Humanista Secular.

Obviamente a lista de cientistas, teólogos, filósofos, humanistas, literatos e artistas que de alguma maneira se empenharam em trabalhar as fronteiras do conhecimento  nas respectivas especialidades somam muito mais. Dar a devida atenção a todos e às suas propostas, ultrapassa as nossa pretensões.

A Natureza como Síntese #25

Balduino Rambo  - 5
Uma proposta de síntese
Numa reflexão anotada no diário de 17 de julho de 1946, Rambo deixou um esboço da síntese abrangendo todos os campos do saber que se propunha a elaborar. Assumia essa tarefa como a missão maior da sua vida. Conta que ele e seu irmão de ordem Pe. Jorge Steiger, estavam elaborando o discurso que o recém eleito cardeal D. Jaime de Barros Câmara pronunciaria na homenagem que os intelectuais de Porto Alegre lhe fariam na ocasião. Conversa vai conversa vem e o assunto só poderia ser algo de nível para os dois intelectuais que eram o Pe. Rambo  e  o Pe. Steiger. A certa altura este observou que a partir da Idade Média não se formulou mais nenhuma síntese que abrangesse o conhecimento na sua totalidade. O que Tomás de  Aquino e Alberto Magno foram para a Alta Idade Média algum sábio moderno deveria ser para os tempos atuais. Essa observação despertou e pôs em ebulição todo um universo de preocupações científicas, filosóficas e religiosas que, há anos, formaram, por assim dizer, o eixo em torno do qual giravam  as  reflexões do Pe. Rambo e foram o motor a dar sentido à sua atividade científica. Passar das reflexões sem compromisso formal, para concretizar a formulação daquela abrangência, pressupunha em primeiro lugar uma avaliação até que ponto a síntese elaborada por Tomás de Aquino, Alberto Magno e demais pensadores e sábios da Idade Média não se tronara obsoleta ou então até que ponto era preciso validá-la no cenário criado pelas Ciências Naturais. Rambo chega questionar a utilidade do sistema aristotélico-tomista como suporte para lidar com o novo cenário. Pergunta se não convinha abandonar os dois sistemas e começar tudo de novo a partir de Platão. Nesse caso o sistema aristotélico-tomista seria chamado a contribuir na medida em que fosse necessário ou conveniente. Para ele o velho racionalismo que é o cerne desse sistema não oferece potencial suficiente para entender a  complexidade da natureza. Permanece útil apenas se enquadrado nas “leis perenes do pensamento humano”, pois
Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata  da palavra, como do som subliminar que emite a ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se  prestou muito pouca atenção. Bem considerada, ela não é um som secundário e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do Homem. (Rambo, 1994, p. 265)
Bem interpretada  essa afirmação leva à conclusão de que nem as Ciências com sua capacidade analítica dos fenômenos naturais, nem Filosofia e a Teologia com se poder análise sintética, são capazes de chegar ao cerne da questão, isto é, oferecer o elemento, ou os elementos que fundem numa mega-síntese os conhecimentos obtidos via analítica e sintética. Recorrendo a uma metáfora. Qual é natureza do conhecimento, “ a pedra de fecho” que faz com que estruturas convergentes se “fechem” num arco ou numa cúpula. Para Rambo essa “pedra de fecho”, sem a qual não se completa a síntese universal é o conhecimento adquirido pela intuição, pela percepção sensorial, levando ao conhecimento condensado, é o que de fato permite falar em síntese.
A ideia força sobre a qual deve fundamentar-se uma síntese global foi assim resumida por ele:
Uma verdadeira síntese das Ciências Naturais deve abranger o seguinte pensamento universal: tudo que acontece na natureza é uma reversão para a unidade e para Deus. Sugestivo em extremo se torna este pensamento, ao nos servirmos da seguinte analogia: da multiplicidade máxima, a Natureza retorna à unidade máxima no ser humano. E a Ciência Natural igualmente procura regredir da máxima dispersão para a simplificação  e a unidade. (Rambo, 1994, o. 265)
É oportuno chamar  a atenção para a semelhança senão uma outra versão dessa concepção da natureza de Teilhard de Chardin. A metáfora dos meridianos terrestres que partem do polo sul, do “alfa”, em direção ao equador, para se multiplicarem e diversificarem e aparentemente se dispersarem, para retornarem em busca da unidade no polo norte, o “ômega”. Não consta que os dois cientistas e filósofos jesuítas contemporâneos, se tenham conhecido e estavessem ao par do pensamento um do outro. O retorno à unidade é uma tendência em todos os elementos da natureza, incluindo os elementos químicos anorgânicos e orgânicos, as leis e os fenômenos físicos, todas as formas de vida, a começar pelas arqueobactérias, até as formas mais complexas, tudo comandado pela evolução. Esse poderia ser o conteúdo da primeira  parte da obra sobre a Síntese proposta por Rambo.
O pensamento central a orientar a segunda parte da obra ocupar-se-ia com os diversos graus ou níveis que levam ao retorno da unidade. Não se trata de avanços aleatórios, sem regra, mas de uma forma organizada, talvez melhor, planejada, e por isso mesmo, conduzida por uma teleologia. Partindo desse pressuposto foi composta a tábua periódica dos elementos, a taxonomia no reino animal e vegetal e a sucessão das eras geológicas. Nesse processo percebe-se de saída que se trata de uma dinâmica e os diversos componentes avançam em ritmos diferentes, algumas ramificações definham e morrem no meio do caminho, enquanto outras mais bem adaptadas se robustecem e seguem vitoriosas até que a mudança das circunstâncias interfere ao ponto de frear o dinamismo e até inviabilizar a continuidade da sua existência. O responsável pela unidade das espécies vivas é o resultado da unidade na direção ou, se preferirmos, pela teleologia que orienta o todo e as partes individuais. Preserva-se assim a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade que se constitui na tese dessa síntese universal. Acontece que a teleologia que comanda o acontecer na natureza pressupõe, por sua vez, unidade de origem.
Na época em que Rambo fez essas anotações em seu diário, isto é, 1946, a genética e a biologia molecular fornecendo a prova maior para a unidade de origem de todas as espécies vivas, estava  apenas engatinhando com as pesquisas de Thodosius Dobzhansky e outros especialistas na área. O que na época ninguém punha mais em dúvida eram as leis de Mendel com sua validade universal, tanto para animais quanto para vegetais. O grau de identidade do genoma, tanto na sua composição química, quanto na sua importância na condução da evolução, no sucesso das espécies vivas, no surgimento de novas e  na eliminação de tantas outras, ficaria evidente somente na seis décadas posteriores. Hoje 80 anos depois em que dispomos de todas evidências científicas apontando para a unidade essencial do genoma, desde as arqueobactérias até as formas de vida vegetal e animal mais complexas e evoluídas, o autor provavelmente não escreveria mais que a unidade tinha “provavelmente” (Rambo, 1994, p. 266), mas “evidentemente” ou mesmo “certamente” um argumento sólido da “origem comum”.
Postas essas premissas  seriam necessários os seguintes passos para a formulação do corpo da síntese. Primeiro. A leitura e a compreensão das síntese elaboradas pelos mestres do passado, com destaque para Platão, Santo Agostinho, Aristóteles, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa, principalmente. O importante nesse esforço deveria ser um encontro direto com esses sábios e suas obras buscando compreendê-los no original, deixando de lado versões e interpretações  que ocupam estantes inteiras em inúmeras  bibliotecas. Neste particular coloca-se obviamente um dos maiores desafios para quem se dispõe a abraçar a tarefa de formular uma síntese compreensiva da natureza no seu todo. Para começar pede-se um conhecimento profundo do espírito da língua grega e latina, para arriscar uma compreensão o menos possível viciada pelas idiosincracias  pessoais dos tradutores e intérpretes e mais próximas possíveis do entendimento objetivo dos autores. No caso de Aristóteles o desafio torna-se praticamente insuperável pois, as versões latinas de sua obra foram baseadas em traduções  árabes do original grego. A leitura das obras de Platão, Agostinho, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa podem ser feitas no original e por isso oferecem dificuldades menores, sob a condição do conhecimento profundo do grego e do latim. Em segundo lugar é preciso inventariar os resultados das pesquisas e descobertas científicas que se tornaram marcos referenciais, desde o final da Idade Média até hoje.
Na introdução da segunda parte é indispensável que se apresente o cenário criado pela dicotomia que resultou da divisão do conhecimento pela Ciência de um lado e o da Fé, do outro ou, se preferirmos, os conhecimentos fornecidos pelas Ciências Naturais, as Ciência do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. Nesse embate em que as Ciências Naturais e as demais Ciências encastelaram-se cada  qual no próprio casulo hermético, reivindicando, num clima de fundamentalismo a exclusividade para dar respostas conclusivas sobre a natureza do universo, da natureza e do homem. O clímax desse dessa guerra que nunca foi necessária e na qual ambos arraiais saíram perdendo, aconteceu na segunda metade do século XIX e no começo do século XX. Salvo melhor juízo, os momentos de maior acirramento se concentraram nos anos do Concílio Vaticano I, na década de 1870 e no pontificado d Pio X, nos primeiros 15 anos do século passado. Depois, em começos do século XX começam a perceber-se os primeiros sinais de armistício entre as duas partes. As descobertas da leis fundamentais da hereditariedade pelo monge Gregor Mendel, as pesquisas sobre o funcionamento das colônias de formigas e térmites, conduzidas com o máximo  rigor científico, do jesuíta Erich Wassmann, a formulação da teoria do Vitalismo por Hans Driesch e outras propostas nessa linha, foram os primeiros indícios de que, em pensando bem, o radicalismo  científico e o radicalismo filosófico e teológico, com suas posições fundamentalistas, poderia ser superado. A autoridade máxima da Igreja Católica faria o seu primeiro pronunciamento oficial na Encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII de 1943 e, de modo especial,  ma Carta Encílcia “Humani Generis” de 1950. Nesses  documentos oficiais da Igreja liberavam-se oficialmente os católicos e os religiosos a falar e admitir teses cruciais vindas do lado das Ciências Naturais, como a Evolução em geral e o Darwinismo em particular, obviamente no que se refere aos processos biológicos. Questões teológicas como a Criação divina, a alma imortal e outras questões desse nível permaneciam, no âmbito privativo da doutrina oficial da Igreja. Dos  seis sucessores de Pio XII cinco ampliaram essa abertura em favor da legitimação e consequentemente aceitação das conquistas da Ciência. O papa Francisco brindou  em junho do presente ano cientistas, teólogos, filósofos, ecólogistas e todos que de algum modo se ocupam e preocupam  com o nosso planeta, ou a nossa “querência” se preferirem,  com magnífico e lúcido documento que é a Carta Encíclica  “Laudato Si”. Nela reforça que os seus antecessores, desde Pio XII, ensinaram sobre a relação da Ciência com os ensinamentos da Igreja Católica e entrando fundo nas grandes questões que envolvem a compreensão da Natureza e seus reflexos sobre a fé, sobre a relação existencial do homem com o meio ambiente e obrigação moral de zelar pelo bem comum que é a Natureza.

É preciso também não perder de vista de que a Filosofia Clássica e a Escolástica nascidas no contexto da Idade Média, são essencialmente especulativas, descoladas do mundo real que a Ciência foi descobrindo a partir da Renascença. A Filosofia Natural da antiguidade é de natureza inteiramente especulativa. A Fé perpassava todo o pensamento da Idade Média. Com isso passou despercebido que  a multiplicação, a diversificação e o aprofundamento das Ciências Naturais foram revelando uma dimensão do universo e do mundo que não encontra lugar na tradição teológica e filosófica que predominou absolutamente até o começo da Renascença. Nesse contexto a revelação que contava era àquela transmitida pelas Escrituras Sagradas e interpretadas ao pé da letra. O contexto em que foram escritas com suas particularidades históricas e circunstanciais não admitia que essas narrativas viessem carregadas de cacoetes histórico culturais inspirados na tradição judaico cristã. Não se admitia na interpretação dos textos sagrados que a narrativa  se valia de recursos literários como metáforas, alegorias e outros mais. Encontrar nesses textos raízes e influências como do Livro dos Mortos do Egito, ou Gulgamesh da Mesopotâmia, costumava ser interpretado como heresia. Até a advertência de São Paulo na Carta aos Romanos de que ninguém está escusado por não conhecer Deus porque a natureza é o livro aberto que O revela a todos que souberem interpretá-la, parece que não era levada muito a sério.

A Natureza como Síntese #24

Balduino Rambo  - 4

Seria um grande engano pensar que o Pe. Rambo dava vazão à compreensão do Mundo e da Natureza e à relação  existencial que cultivava com ela, quando em contato com cenários que nunca tinha visto de perto. Por ocasião da sua permanência no Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da coleção “De Angelis” na Biblioteca Nacional desenhou num intervalo, a paisagem das montanhas que formam o anfiteatro da cidade.
Ai sentava eu, creio que foi na tarde de sábado santo, junto à janela e alongava o olhar em direção ao Corcovado. Pouco antes tinha chovido, mas agora o ofuscante sol tropical brilhava sobre rochas, matos e cidade. As listas de água que pouco antes tinham desabado, precipitavam-se em forma de furiosos regatos outeiros abaixo, deslizando agora como feixes de metal faiscantes por entre a ramagem rasteira num colorido verde-claro. As palmeiras ao pé dos rochedos e o vale alcantilado balançavam silenciosas os seus leques na brisa, que soprava em direção à planície. Qual tapete de alfombras com centenas de matizes de verde estendia-se a mata virgem por sobre as colinas oblíquas, diluindo-se  à distância no firmamento cerúleo. Bem lá no alto serpejava um manto azulado de neblina e de sol doirado, em volta da imagem do Cristo Redentor da montanha.
Longas horas eu sentava ali abismado com a imponência da selva tropical. Sentia imensa nostalgia dos tempos de antanho, quando me era dado apanhar, sem mais, as imagens contempladas nas malhas da linguagem escrita e entretecê-las com os pensamentos mais sublimes de minha alma, como reluzente e preciosa pedraria. Parecia-me então ser indigno de mim deixar-me afogar no trabalho externo, enquanto a melhor parte da minha humanidade estiolava e se deteriorava. Parecia-me que todo o esforço para a aquisição de novos conhecimentos não compensava o preço  elevado que todo o dia eu pagava por isso; que eu devia chamar de volta os espíritos amistosos dos tempos idos, quando então buscava com menos afã a erudição fria, sentindo-me, no entanto, bem mais  enriquecido de coração, mais rico em criatividade, mais rico em Deus. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)
A paisagem com a qual, consolidou, desde o final dos anos de 1930 até o seu falecimento, uma relação existencial tão profunda que a chamou de “minha pátria na terra”, foi o planalto do Rio Grande do Sul, com seus campos, capões, matas, pinheirais, canyons, escarpas e precipícios. Cambará e arredores são  o ponto de referência e convergência desse cenário. As anotações que deixou foram extraídas do diário que escreveu durante uma estadia, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1948, naquela região.
Essas caminhadas pela neblina, essas noites com seu leve prurido de chuva junto à janela, as gotas continuamente estalando nas árvores, chamam para a interioridade. Então a alma liberta-se dos fogos fátuos do dia resplandecente, e ela entra em silêncio no seu mundo mais íntimo, no reino do ser envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes se perdem em seu eco e migram através desta terra espiritual carregada de pressentimentos. Alguém caminha na névoa da noite com passos tão leves como o murmúrio da neblina. Ele é único e chama meu nome nesta terra solitária. Ó tu, noite silenciosa e santa solidão.
A orla oriental é constituída pela vista panorâmica para as maiores distâncias, pela sinuosidade brusca das formas perto da planície e com a força perene da névoa em efervescência.
São únicas as pinturas da natureza na bela terra de Deus, como as da garganta da Pedra Branca.  Poderia chamar-se o quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas troantes, de névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata silente e escolhos altos, cheios de clarividências pétreas, de pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para a frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, alguém observa nesta torre solitária de vigia. Ele chama o eco, apascenta a névoa, brinca com o raio e o trovão nos lugares solitários.
Na ampla baixada, os lagos refulgentes e o mar-oceano aos sussurros ficam depois desta paisagem. Ao olhar ao longe da parede anterior, há pressentimento das distâncias infinitas. O sentir predominante é o da preeminência sobre o vapor, a poeira, o calor e a fastidiosa multidão humana. Rochas cinzentas, mata verde, água murmurante e correntes estagnadas, amplas planícies, nuvens migrantes e, finalmente, o mar insondável: também isso é solidão da alma com Deus! O espírito de Deus sopra em toda a parte. Quem ergue o chão de sua alma na solidão de Deus há de levar esse sentimento mesmo em meio à multidão insana.
Nunca esquecerei  minha despedida da orla oriental. Meu cavalo avançou à vontade pelo campo florido. Atrás de mim as névoas condensadas, vindas do precipício rolavam pelo campo. É o atrito da planura inferior que faz surgir esse verdadeiro rolar e rodar. Essas neblina fria rodou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Era a saudade de épocas  geológicas distantes, dos irmãos do Chile e dos parentes de muito além do Oceano Atlântico, nas ilhas solitárias do Mar do Sul.

Agradeço a Deus e levo saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e sereno à sombra dos pinheirais. (Rambo, Balduidno. Diário. 09 de fevereiro de 1948).

A Natureza como Síntese #23

Balduino Rambo  - 3

O lado do cientista convencional revela-se no Pe. Rambo enquanto sistemata. Percorria o Rio Grande do Sul coletando todas as espécies de planta que encontrava. Não poucas até então desconhecidas pelos especialistas. Acomodava cada exemplar em folhas de jornal e as prensava nas prensas feitas com varetas de bambu que ele mesmo confeccionava. Seguia-se a secagem em estufa, muitas vezes improvisada para, em seguida, seguirem para a acomodação definitiva em caixas de madeira. Uma  ficha de classificação e identificação acompanha cada um dos exemplares dos 90000 números que compõem o “Herbarium Anchieta”. Ainda como cientista convencional enviava sob encomenda ou para permuta espécimes para numerosos herbários na Europa, na América e no Brasil. A correspondência científica mantida com os mais importantes centros de pesquisa em botânica, nacionais e internacionais, comprovam sua aceitação como especialista, no grande mundo científico. Paralelamente o Pe. Rambo publicou dezenas de artigos rigorosamente científicos, em revistas  de trânsito nacional e internacional. Sua reputação de cientista valeu-lhe, em 1956, um convite oficial do governo dos Estados Unidos, para visitar, durante três meses, as grandes universidades, institutos de pesquisa e, de modo especial, os grandes parques e reservas naturais daquele país. Em 1959 viajou para a Europa, também para um período de quatro meses, a convite do governo da então República Federal da Alemanha, para visitar os centros de pesquisa daquele país. Toda essa atividade tecnicamente considerada pelos cientistas convencionais como “verdadeira ciência”, para ele representou apenas uma condição, o pressuposto para, a partir dela,  formular  a sua compreensão do Universo, da Natureza, do Homem e de Deus. Identificar os detalhes desse grandioso cenário foi indispensável embora cobrasse um custo alto “esvaziando a vida afetiva”, como ele mesmo  desabafou. Ou ainda. “A ocupação constante  com as descrições latinas apenas esquemáticas, geralmente áridas e inanimadas, projetam sua cor mortiça sobre a alma, tornando-a embotada, gélida e apática”. (Rambo. 1994. p. 13). O que realmente importava era  colocar os detalhes nos grandes “mapas descritivos”, identificar a sua razão, o seu sentido, quando inseridos no todo, assumindo rosto, “fisionomia” que irradia vida, sugere unidade, sentido, simbolismo e harmonia.
Um “mapa descritivo”, só então pode ser chamado de “Fisionomia” quando desenhado com recursos literários que, ao descrever o caleidoscópio de uma paisagem, são capazes de por em ebulição o que há de melhor no íntimo de uma pessoa. Isto só acontece quando se consegue explorar a riqueza subliminar que os acidentes geográficos, as cores, a vegetação, os rios e arroios, as esculturas naturais, a história, os simbolismos, a harmonia, o lírico, o grandioso e o épico, de alguma “fisionomia” natural. No momento em que o cientista se vale das suas observações para aventurar-se a esse patamar descritivo, não abdica da sua condição de cientista, mas sublima-a como artista. Fazer culminar o estudo da Natureza em obra de Arte deveria ser sonho de todo aquele que se dedica em explorar toda a sua riqueza, toda a sua diversidade, todas as suas utilidades, todos os seus encantos, todos os seus simbolismos. Só os poucos que de alguma forma se aproximaram desse ideal, deram-se conta de que a “Fisionomia” de uma paisagem irradia verdadeira vida, sugere unidade na pluralidade e representa um mundo de harmonia, no qual o viajante se sente “em casa”, na sua “querência”, na sua “Heimat”. 

Na linha dos cientistas que se ocuparam com o problema da unidade da Natureza e a reconciliação dos Ciências Naturais e das Ciências do Espírito, merece uma menção, embora de passagem, o “filósofo da esperança”, Ernst Bloch (1885-1977),[1] contemporâneo, portanto, de todos os cientistas e pensadores com os quais nos ocupamos no presente estudo. Não cabe analisarmos a fundo e nos detalhes seu pensamento. Interessa no presente contexto o livro que escreveu aos 87 anos, sua última imersão na “grande filosofia”, como o classificou seu comentarista Paul-Heinz Koesters. Na obra que daí resultou ocupou-se, nada mais nada menos, do que com o antiquíssimo, mas sempre novo problema, das relações entre o Espírito e a Matéria. Para ele, nem a posição da filosofia cristã idealizada de que “no princípio era Deus”, nem o argumento da  filosofia materialista de que “do nada só pode resultar o nada, portanto, a Matéria é eterna”, oferecem uma resposta  satisfatória.  Propõe uma terceira via para conciliar as duas posições antípodas. Para Bloch a Matéria é “animada”, “tem alma” (beseelt). Nela existe uma força, uma energia – melhor – um Sentido. Avançando mais um passo na suar reflexão concluiu que  a Matéria está orientada para um objetivo último. Este objetivo, entretanto, ainda não foi alcançado. Chama este objetivo final de “Ideal do Bem”. O ideal do bem estará concretizado no momento em que o processo evolutivo em que a Matéria se encontra estiver concluído. Neste momento o “Bem como tal” estará concretizado: O cosmos, nosso mundo, os animais e os homens, todos feitos de Matéria estarão reconciliados no final do processo. Então reinará a “Harmonia”, o estado almejado, consciente ou inconscientemente, por tudo e por todos, tanto pelas pedras quanto pelos homens, quanto pelas estrelas e as moscas na parede. Quando lá tivermos chegado o “Cosmos todo será (uma) Pátria” – “Heimat” – “Querência” (cfr. Koesters. Deutschland deine Denker. 1981. p. 299-300)

O Pe. Rambo foi mestre em desenhar os “mapas descritivos”, de dar rosto e forma às fisionomias que foi observando. A fim de ilustrar a afirmação, recorri ao diário que  escreveu por ocasião da sua visita aos parques nacionais do oeste americano. Ao entrar no parque de Yosemite, flagrou-se diante de um cenário de sonho. Depois de fazer reflexões sobre o significado histórico, humano, antropológico e econômico, da grande corrida do ouro na Califórnia, nos anos cinquenta do século XIX, no vale do rio Merced, cujas nascentes encontram-se no parque, deu vazão às emoções daquele panorama deslumbrante.

Acontece que não viajei para a Sierra Nevada à procura de ouro, mas em busca do mais belo vale do mundo, o vale de Yosemite. As montanhas aproximam-se cada vez mais uma das outras. O rio troveja com crescente furor por sobre os escombros de rochas. A floresta permite a visão livre e eu contemplo um cenário de fadas, como não existe outro igual. O Merced, aqui reduzido a um arroio largo rumoreja aos meus pés. A água é tão cristalina que permite contra as pedras no fundo, observar a dança das trutas. Mais para o fundo abre-se um prado coberto de capim verde, de canas com pontas reluzindo como ouro e no meio delas, milhares de flores brancas, vermelhas, amarelas e azuis. Mais adiante ergue-se a floresta formada por árvores majestosas: pinheiros, cedros e pinheiros Douglas. À direita precipita-se a cascata Véu de Noiva, do alto de um vale de mil metros e desfaz-se em espuma. Também à direita sobe a mil metros de altura um bloco de granito tingido de vermelho pelo sol da tarde. Deram-lhe o nome de “el Capitán”. É o rochedo-sentinela no portal de entrada do vale das maravilhas. E, bem no fundo do vale, outro cume de rochedo sobressai às montanhas, o “Half Dome”, o mais famoso da Sierra Nevada. Sobre o panorama todo estende-se o céu azul e sobre ele navegam, suavemente, os brancos veleiros de Deus. (Rambo, Balduino. Diário de viagem nos USA. 1956. Manuscrito. p. 148-149)
Depois de desenhado o mapa panorâmico do vale  de Yosemite, num estilo literário em que sobressai o tom épico, o Pe. Rambo faz a descrição  científica dos componentes do vale, Em primeiro lugar, explica a gênese geológica e a moldagem final da paisagem durante o último  período glacial. Detalha depois a fauna do parque e de modo especial a composição da flora que, na condição de sua especialidade, logicamente chamava-lhe atenção especial. Chama a atenção a um dos maiores inimigos da floresta local, um fungo que se serve de um arbusto hospedeiro para depois atacar as árvores. Informa também que o volume da neve acumulada no vale durante o inverno, permite predizer a disponibilidade de água para a irrigação dos pomares e vinhedos no vale da Califórnia. Depois acomodado no alto de um dos rochedos do qual se tem uma visão global do parque, volta a desenhar mais um dos seus mapas panorâmicos.
Pouco antes do meio dia chegamos ao “Glacier Point”, um rochedo na extremidade superior do vale de Yosemite. Com certeza devem existir poucos lugares na terra, de onde se descortinam  paisagens  tão deslumbrantes. Para a direita a vista alonga-se por sobre as serras intocadas até os cumes cobertos de neve dos picos mais altos. Do lago Merced nasce o rio do mesmo nome, precipitando-se em duas cascatas: o Nevada Fall com 160 metros e o Vernal Fall com 95. Em frente, no lado oposto do vale, ergue-se o maior bloco de granito do mundo, o Half Dome, com 2760 metros acima do nível do mar e 1500 metros a prumo sobre o chão do vale. Para a esquerda desfruta-se uma visão sobre todo o vale, e mais adiante, sobre os altiplanos dos dois lados, inúmeros milhares de pinheiros Jeffrey, isolados, em grupos, ou formando florestas fechadas. Parecem-se com um  exército de soldados, aprestando-se para o assalto aos cumes das montanhas. Onde quer que haja uma saliência, uma fenda, um lugar para um pé, agarram-se os arbustos, carvalhos anões, castanheiras anãs, azaléias anãs. Essas últimas vestem na primavera os gigantes de pedra das montanhas com um manto real de púrpura, nas suas tonalidades mais esplendorosas. Aos meus pés o paredão de rochas precipita-se perpendicularmente por 976 metros. As fitas de um azul negro das estradas com os carros multicoloridos circulando nelas; a faixa azul clara do rio entre a floresta escura e os prados cor de ouro; as cidades de barracas e cabanas ao longo do rio, na floresta, ao pé da grande cascata; as multiformes rochas na beirada; o Half Dome fendido ao meio, os Arcos Reais, o Pináculo das águias, a Torre de Observação, as Torres da Catedral, o Capitão Sentinela: tudo compõe um quadro que somente um foi capaz de conceber: Aquele que, no canto de Habacuc, marcha sobre as montanhas e as faz tremer sob o passo marcial de suas eternidades. (Rambo, Balduino. Três meses na América. 1956. Manuscrito p. 151)
Mais  acima já apontamos que o Pe. Rambo nasceu em 1905 numa propriedade rural de pequenos agricultores no vale do rio Caí. Na época havia poucos moradores no planalto da parte superior daquele rio. A casa em que passou sua infância, toda construída em madeira, desde os fundamentos até a cobertura do telhado, ficava  poucos metros da mata virgem que cobria mais da metade da propriedade. Por ter sido o primeiro filho do casal Nicolau e Gertrudes, somado ao fato de o seguinte irmão somente nasceu quatro anos depois, fez de Balduino um menino solitário. Teve como companhia e como brinquedo dos primeiros anos da infância, a floresta virgem com suas árvores, seus pássaros e seus animais silvestres. Com isso interiorizou uma relação profunda, indelével e existencial  com ela. Par ele seria para o resto da vida, uma fonte de reflexões, de simbolismos, de vivências, como nenhuma outra realidade da natureza. Uma caminhada solitária por alguma floresta, despertava nele os sentimentos mais vigorosos, as emoções mais profundas, os simbolismos e as metáforas mais surpreendentes. Parece que, perambulando por alguma floresta, um poderoso vulcão, irrompia do mais profundo do seu ser. Em seu diário relatando a visita ao parque de Yosemite descreveu um desses momentos, ao caminhar pela floresta  de sequoias  gigantes
Em meio à floresta sem igual há um pequeno museu no qual o professor universitário Frank Potter e sua esposa explicam aos hóspedes tudo que merece ser conhecido. Onde as sequoias se concentram em grande número, como em volta desse museu, difunde-se por toda a parte na floresta, o brilho marrom vermelho da sua casca. Centenas de árvores novas que se confundem com ciprestes ladeiam os caminhos. Misturadas com as sequoias e formando a massa principal da floresta, crescem milhares de cedros da Califórnia, pinheiros brancos, pinheiros Douglas. Em altura não perdem para  os gigantes, embora raras vezes passem de dois metros de diâmetro. Um líquen amarelo-ouro reveste o tronco do pinheiro branco. O reflexo mescla-se com o marrom claro da casca da sequoia e, combinando com as manchas de sol e sombra, resulta numa luz colorida de extrema suavidade, envolvendo o chão de toda a floresta. Sem querer, a gente se descobre e sente-se pequenino como um camundongo entre esses gigantes reunidos em conselho. Que cantos não teriam deixado os poetas cantores do Antigo Testamento, ao falarem com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos gigantes de Monte Sião, se tivessem escutado a voz de Deus nessas florestas. Enquanto Davi e Salomão cantavam seus salmos; quando Isaías anunciava ao seu povo a futura vinda do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos dias sentado no trono da sua glória, mais de mil anos já pesavam  sobre muitas dessas árvores. O Gryzzly Gigante contava com dois mil anos quando no Golgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: “Verdadeira árvore na qual pendeu o Senhor, mergulhado em angustia mortal”. O canto de luto do paraíso, o canto da árvores da vida dos deuses germânicos, o canto de vitória da árvore da Redenção. Toda a simbólica das sagas  e da arte da humanidade toma conta do caminhante na penumbra mortiça dessa floresta. Há muitas verdades entre o céu e a terra que não se encontram nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta. (Rambo, Balduino. Três meses na América. 1956. Manuscrito. p. 154-155)
Depois da visita aos parques do oeste a programação previa uma visita ao parque nacional do Grand Canyon. A viagem foi de ônibus. Ao ler os apontamentos do diário em que descreve essa viagem nos mínimos detalhes, desdobra-se diante da imaginação um mapa tão perfeito, tão detalhada e tão real, que simula a impressão da participação física da vivência. A estrada cruza o território que foi o palco da saga da conquista do oeste pelos cawboys. Como era do seu hábito, antes de uma etapa de viagem, o Pe. Rambo lia obras que descreviam as características geográficas e contavam a história e as histórias de que o percurso tinha sido o palco no passado. Alimentava uma indisfarçável simpatia por aqueles  personagens rudes que consolidaram a conquista do oeste americano. Ele deve ter visto nesses pioneiros réplicas dos guerreiros da antiga Hélade que desfilam pelos cantos da Odisséia e da ilíada de Homero, obra que o acompanhava por onde quer que viajasse. Não deixava de ler diariamente pelo menos um ou outro canto no original grego. Descreveu a personalidade do cawboy como sendo o rancheiro modelo de virtudes e o homem que se contrapõe ao vilão igualmente presença obrigatória naquele contexto, portador de todas as más qualidades que um homem é capaz de carregar consigo. O conflito entre os dois é inevitável porque o mau rancheiro é ladrão de gado, bandido mascarado e assassino em série. O bom rancheiro é defensor da lei, protetor dos fracos e um homem que às vezes até reza. Ambos atiram igualmente bem, com uma mão, com as duas, para frente, para trás, simultaneamente para a direita e a esquerda. A ambos acompanha um bando de cawboys que cavalgam tão bem quanto atiram, leais no mal, leais no bem, exímios no beber, exímios no dançar, grandes na bandalheira, contudo cavalheiros até a morte para com a mulher honrada. Mas é contemplando a grandiosidade do Grand Canyon que o Pe. Rambo desenha mais um desses mapas que são marca registrada sua. A natureza inanimada é povoada por animais, pássaros e uma galeria de personagens históricos, procedentes de vários continentes e de diversas culturas, sugerindo uma bela amostra do “melting pot”, do cenário de síntese histórica e cultural que são os Estados Unidos da América do Norte.
A margem oposta eleva-se a 1700 metros. A maior altitude alcança os 2500 metros, quase encostando na região das altas montanhas. Um anfiteatro único no mundo descortina-se diante dos olhos. Sobre o leito do rio eleva-se  gradativamente o Tonto Plateau, coberto pelo Sagebrush (arbusto de lugares semi-desérticos), até ser substituído pelos terraços, as torres e os castelos de rochas mais acima. Os degraus envoltos nas cores amarelo, marrom, ferrugem, recuam cada vez mais. Sobrepõem-se na medida em que sobem, até terminar em dorsos isolados de  montanhas com formato de mesas e pontas rombudas, não poucas vezes distantes uns dos outros. Os americanos buscaram os nomes no mundo dos deuses e das lendas para essas montanhas singulares. Ergue-se aí o templo de Shiva, de Buda e de Brahma da mitologia indú; o templo de Confúcio da antiguidade chinesa, o templo de Zaratustra da antiga mitologia persa; o Walhala das lendas dos deuses germânicos, o trono de Siegfried da canção épica alemã. Mais abaixo ergue-se a pirâmide de Quéops da antiga história do Egito. Mais para além desse conjunto de torres, pirâmides, tronos, templos e milhares de castelos de rochas em ruínas, na margem norte, 30 quilômetros distante, duas faixas de rochas brancas, fecham a paisagem. Nuvens de tempo bom velejam sobre o vale. Um falcão peregrino precipita-se no abismo. Um Chipunk (esquilo terrestre), célere como um raio e uma ave semelhante à nossa gralha dos pinhais, disputam um petisco na frente dos meus pés. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. Manuscrito. p. 180-181)
Depois dessa descrição da fisionomia geográfica e geológica do Grand Canyon e apontar as simbologias histórica que os americanos souberam encarnar nos seus grandiosos acidentes, o Pe. Rambo mostra toda a sua maestria literária ao descrever o amanhecer e o entardecer naquele grandioso cenário.
Nos dias seguintes passei muitas horas sentado aqui no alto contemplando o Grand Canyon, apreciando o jogo da alternância da luz e das cores. Quando os primeiros raios do sol da manhã, vindos da direção do Painted Desert, derramam a sua luz sobre os abismos escuros, os rochedos do leste brilham na tonalidade ouro de uma delicadeza impossível de precisar, enquanto nas encostas do oeste os vales e  abismos jazem mergulhados em cores negro-azuladas. Pela hora do meio dia as cores fortes vão desmaiando para o amarelo cinza, o marrom cinza, o vermelho ferrugem e o branco. No final da tarde, repete-se, na sequência inversa, a mudança dos jogos de luz e de sombra da manhã. Mas o vermelho dourado do sol da manhã cede lugar ao vermelho púrpura do ocaso. A maioria das fotos coloridas reproduzidas em livros, foram tiradas naquele horário. Deixam a impressão de que o Grand Canyon veste por natureza esse manto colorido. Pouco depois do por do sol, o vermelho passa para o púrpura escuro e as tonalidades cinza, amarelo e verde modificam-se para o azul fantasmagórico, que vai mergulhando cada da vez mais na escuridão da noite. (Rambo, Balduino. Treses Meses na América. 1956. Manuscrito. p. 181)



[1] Paul Heinz Koesters no seu livro “Deutschland deine Denker”  traça o perfil do filósofo da esperança  Ernst Bloch. Ernst Bloch, o filósofo da Esperança, nasceu 1885 em Ludwigshafen no Reno. No centro do seu pensamento encontra o conceito “Heimat” (querência). Entre as obras que o levaram a esse conceito estão os romances de aventura de Karl May. Entre índios, búfalos, pradarias – nesse panorama o jovem Bloch sentiu-se pela primeira ez “em casa”, na Heimat. Heimat só pode existir lá onde ha Liberdade. O judeu e marxista  Blochque emigrou para a América por causa dos nazistas e abandonou a Repíblica Democrática d Alemanha em 1961, lecionou ainda em Tuebingen onde faleceu com 92 anos em 1977. Num mundo que sofre pesadamente com a desesperança, Bloch ensina o homens a terem esperança. Num bloco de pedra de rocha rústico com milhões de anos lê-se a inscrição: “Pensar significa transpor o princípio da Esperanaça”.