Da Enxada à Cátedra [ 73 ]

Como se pode perceber, a partir do final da Segunda Guerra Mundial os tempos mudaram radicalmente afetando em cheio o personagem humano moldado pela pequena propriedade familiar com sua produção direcionada, antes de mais nada, para suprir as demandas da família. A última fronteira de colonização ao modelo consagrado pelos imigrantes alemães, italianos, poloneses e de outras procedências da Europa, encerrou-se com a ocupação das terras ainda disponíveis no oeste do Paraná. Paralelamente à industrialização tomou fôlego e multiplicou e diversificou as oportunidades e opções de trabalho nos centros urbanos para os excedentes das famílias ainda numerosas no interior colonial. Os meios de comunicação com o acesso ao rádio primeiro e da televisão um pouco mais tarde, impulsionados pela eletrificação também do meio rural, resultaram em dois efeitos complementares. Em primeiro lugar, o agricultor entrou em contato com o que acontecia além das fronteiras que delimitavam sua comunidade e tomou conhecimento dos avanços da industrialização, da disponibilidade de novas tecnologias e, de modo especial, das oportunidades de trabalho. Aconteceu com isso uma profunda transformação na percepção do mundo pelo agricultor. Costumes, hábitos, valores, todo um estilo de vida de “colono” transformou a cosmovisão dessa gente e moldou-a de acordo com o figurino urbano. Assistimos a uma autêntica urbanização das mentes. As famílias numerosas de 10 ou mais filhos foram dando lugar a casais com dois ou três filhos no máximo. A oferta de oportunidades de trabalho desencadearam uma crescente onda migratória do meio rural para o centros urbanos. Em poucas décadas inverteu-se a situação do Brasil de um país predominantemente rural para um país em urbanização acelerada. Hoje as tecnologias de comunicação permitem aos agricultores conectar-se com o mundo todo até nos intervalos dos trabalhos na lavoura. Aos filhos dos colonos ofereceram-se sempre mais oportunidades e facilidades para se formarem no ensino médio e terem acesso ao superior. Com os respectivos certificados e diplomas na mão, os leques de oportunidades de trabalho multiplicaram-se absorvendo uma porcentagem importante da mão de obra disponível no meio rural. Inúmeros filhos e filhas de agricultores encontraram trabalho na construção civil, no setor de serviços, no exercício de profissões liberais, no comércio, nas indústrias, no funcionalismo público, nas forças armadas e por aí vai. O processo de urbanização daí resultante exigiu e continua exigindo empenho crescente das administrações públicas responsáveis, no limite de suas competências, um empenho todo especial no disciplinamento da formação de novos bairros periféricos. São fundamentais nesse esforço políticas, ações e estratégias centradas no saneamento básico, abastecimento de água potável, mobilidade urbana, escolas e educação, saúde pública e, sobretudo, o acesso aos produtos que formam o complexo de uma alimentação qualitativa e quantitativamente adequada.

O “trabalho” é um dos pressupostos para a realização integral das pessoas, do “humano no homem. É importante refletir sobre essa questão não apenas de forma teórica e abstrata, mas inserida num contexto regional concreto, por ex., o vale do rio dos Sinos e os demais que formam a bacia do Guaiba. Requerem-se propostas tecnicamente elaboradas por equipes devidamente credenciadas e habilitadas para tanto. Depois de nos demorarmos em mostrar a dinâmica da urbanização do leito do rio dos Sinos impulsionada pela industrialização e seus reflexos sobre a infraestrutura, sobre a revolução social, cultural, econômica, etc., inerente ao próprio fenômeno da passagem da cosmovisão rural para a urbana, um outro complexo de potencialidades da região, chama a atenção. A geomorfologia dos curso médio e superior do Sinos como dos demais rios que terminam no Guaíba, não permitem monoculturas ao modelo do grande agro negócio. As florestas originais que cobriam as várzeas dos rios e arroios e subiam até as bordas dos Campos de Cima da Serra, deram lugar à pequena propriedade familiar, em torno de 70 hectares no começo. A produção diversificada destinava-se, em primeiro lugar, para o sustento da família. Passados 200 anos depois do desembarque dos primeiros imigrantes, os lotes coloniais foram sucessivamente repartidos para 10 ou menos hectares. A agricultura familiar e a criação de animais domésticos caminha para a extinção. Nas encostas dos morros onde há 70 anos as roças de milho, feijão, batata e mandioca subiam até onde era possível a prática da agricultura de enxada, foram substituídas e estão sendo tomadas por uma floresta secundária parecida à original ou reflorestadas com acácia e/ou eucalipto. Por estranho que possa parecer, nesse cenário que vai tomando conta do espaço da agricultura familiar, abrem-se perspectivas para implantar um modelo de produção que encontra na expansão urbana um potencial de consumo sempre maior e mais exigente. Vai nessa perspectiva que aponta a solução tanto da produção de alimentos quanto da abertura de postos de trabalho para os que se sentem atraídos por um estilo de vida e, ao mesmo tempo, por uma realização profissional e pessoal fora da rotina e das opções que oferecem os centros urbanos. Isso vale tanto para os filhos dos agricultores, mesmo que concluam apenas o primeiro ou segundo grau, quanto para àqueles jovens que conquistam títulos universitários. Aliás são mais do que louváveis as escolas de agronomia, veterinária, engenharia florestal e outras que oferecem em seus currículos opções para os que os frequentam, se especializarem para atuar e assim melhorar os resultados nesse setor de vital importância para cobrir as demandas do quotidiano dos centros urbanos.

Essas observações aplicam-se por ex., às condições geomorfológicas, geográficas, demográficas, econômicas e demandas de abastecimento em geral, aos vales dos rios que convergem para a capital e terminam se fundindo, formando o lago Guaíba. Vale a pena comentar algumas das sugestões mais relevantes deixadas pela equipe de técnicos responsável pelo projeto de“Valorização do Vale do Rio dos Sinos” na década de 1960 do qual já nos ocupamos mais acima. O lugar da tradicional policultura de subsistência pode ser perfeitamente preenchido com a produção de hortaliças e legumes para suprir a demanda em franco crescimento com a expansão urbana. Para tanto há áreas disponíveis com solos adequados em toda a extensão do vale. A configuração topográfica, tipo de solos e variação climática, permitem o desenvolvimento da fruticultura de todas as espécies, menos as eminentemente tropicais, sempre bem vindas para o consumo local e regional. Nos espaços planos e nas meias encostas os cítricos, pêssegos, figos, uvas de mesa, abacate e outras variedades subtropicais, encontram condições propícias para render bons dividendos para quem os cultivar. Mais para o alto, de 500 metros ou mais podem ser cultivadas peras, maçãs, ameixas, marmelos e outros que exigem temperaturas mais baixas por um bom período do ano. Todas essas áreas oferecem condições favoráveis para pastagens e criação de gado leiteiro. Mas há um outro setor de não pouca importância. Falamos do reflorestamento com espécies de uso diário como acácia e eucalipto para lenha e tanino a primeira e madeira para a construção e lenha a segunda. Todas essas atividades, praticadas com o uso das modernas tecnologias de manejo oferecem um potencial difícil de dimensionar de mão obra e, portanto, perspectivas de trabalho saudável e retorno garantido para quem se interessar, independente do nível de formação escolar ou acadêmica. A posse do conhecimento teórico e prático da realidade agrária e o emprego da tecnologia abre espaço para técnicos e técnicas formadas em escolas de nível médio e agrônomos e agrônomas, veterinários e veterinárias, portadores de diploma universitário. A combinação do trinômio trabalho-produção-abastecimento com o trinômio natureza-preservação-cultivo temos em mãos o pressuposto para fazer do vale do Sinos e de muitos outros ecossistemas humanizados altamente produtivos, ecologicamente equilibrados, esteticamente belosChamo a atenção para o modelo de manejo que está rendendo excelentes resultados formulado pelo agrônomo da Embrapa João Klutkowski natural de Apucarana, conhecido como João K para evitar confusão com JK ex-presidente do Brasil. O sistema é conhecido IAPF – Integração Agricultura, Pecuária, Floresta. O sistema está sendo testado com excelentes resultados em fazendas degradadas no centro oeste do País. Adaptado atende até áreas menores de terra. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes pois, estão disponíveis no meu livro “A Nossa Casa”Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado, não só para cuidar e guardar o existente, como também para trabalhar nele e cultivá-lo afim de que produza frutos”, observou o Papa Francisco na “Encíclica Laudatdo si”, centrada na preservação do meio ambiente.

Da Enxada à Cátedra [ 72 ]

A Urbanização. No começo da década de 1950 a população brasileira rural predominava absolutamente sobre a urbana. Vivíamos num país rural com todas as suas características culturais, religiosas, hábitos familiares, hábitos sociais, valores morais, relacionamento solidário com os membros das comunidades, como referência do comportamento individual e coletivo. Em menos de 3 décadas aconteceu a inversão no nível demográfico. O País passou rapidamente de rural a urbano numa velocidade acelerada. Para esse fenômeno não contribuiu apenas a transferência física das pessoas, geralmente mais jovens para espaços urbanos e o abandono e ou modernização da agricultura familiar. Percebem-se também os primeiros sinais da entrada em cena do agronegócio a começar pelo Rio Grande do Sul com o cultivo do trigo e soja nos campos da Serra, Missões Alto Uruguai para depois avançar para o norte e centro oeste do País, sobre os campos naturais e cerrados, com a explosão da cultura mecanizada do trigo, soja, milho, sorgo, canola, batata inglesa, amendoim, girassol, algodão e por aí vai.

Um segundo fator que acelerou a transformação do Brasil dum país rural em um país urbano foi a popularização dos meios de comunicação em massa. Em outro momento já mencionei que dei o meu primeiro telefona quando tinha 20 anos, isto é, em 1950, num desses telefones de manivela hoje artigos de museu. Normalmente os distritos dos municípios, hoje muitos deles evoluídos para municípios, dispunham de um único telefone instalado em alguma casa de comércio, cartório ou residência. Os telefonemas ou fonogramas chegavam ao destinatário levados a pé ou a cavalo pelo responsável pela central. Quem quisesse telefonar para alguma pessoa ou cliente obrigava- se a procurar o telefone mais próximo disponível. Se estou bem lembrado já mencionei mais acima que meu irmão comprou em 1940 um Rádio Galena com dois fones de ouvido, o único no hoje município de Tupandi. Captava apenas as transmissões em ondas longas, como a rádio Farroupilha, Difusora e Gaúcha. Como a segunda guerra mundial estava em pleno andamento, esse meu irmão escutava os noticiários e ao escurecer os vizinhos vinham para tomar um chimarrão debaixo do enorme plátano em frente da casa, para se informarem e atualizarem sobre o andamento do conflito e outras notícias que lhes interessassem. Esse rudimentar rádio galena alargava a visão daqueles colonos exaustos pelo quotidiano da lavoura para além de suas plantações e do topo dos morros que delimitavam as fronteiras do seu pequeno e limitado mundo comunal. Notícias sobre as frentes de combate nas planícies da União Soviética começaram a povoar a imaginação dos colonos, como também sobre as batalhas na Normandia, os vinhedos da Borgonha, os vinhedos e castelos do Reno e Mosela, dos Alpes da Suíça, Áustria, Baviera e norte da Itália etc. Passada a guerra rádios de válvulas começaram a invadir as casas do interior colonial. Nas horas vagas dos intervalos do trabalho no meio dia e, principalmente, ao anoitecer e noite adentro as costumeiras conversas sobre assuntos do quotidiano, deram lugar para o ouvir os noticiários transmitidos pelo rádio, programas humorísticos, novelas, música etc. Começara sem retorno e em ritmo acelerado, paralelamente à urbanização demográfica, a “urbanização das mentes. A população do interior colonial entrou em contato com os costumes, as modas, os valores, a movimentação, as novidades oferecidas pelo grande comércio, a própria religiosidade entrou nessa dinâmica. O impacto sobre o estreito mundo e mente comunal foi de curiosidade, de susto, de espanto, de temor e até de rejeição na primeira fase do turbilhão causado pela popularização do rádio e o contato físico com o meio urbano. Em seus contos e cartas em dialeto endereçados aos colonos, em não poucas oportunidades o Pe Rambo descreveu a dinâmica dessa “abertura” para o grande mundo e a reação das comunidades no interior colonial. Permito- me reproduzir um excerto desses contos que tem como personagem o Joãozinho e o pai dele, o João, ambos à margem do padrão habitual dos demais colonos.

“Aconteceu assim. O Joãozinho completara quase quatro anos de frequência da escola e o padre começou com as instruções para preparar as crianças para a comunhão solene. O Joãozinho, no entanto, nunca estudava as lições do catecismo. Na igreja passava o tempo conversando, olhando para trás e, quando perguntado, dava respostas bobas e malcriadas. Quando as outras crianças rezavam ajoelhadas na mesa da comunhão, Joãozinho limpava a boca suja na toalha que a cobria.

O padre perdeu a paciência e mandou chamar o velho João. Como ele não apareceu resolveu descer o morro para conversar com ele. “Por meu filho eu garanto e que nenhum padre ou professor se meta. Se for impedido de participar da comunhão solene, mando-o para um colégio da cidade. Aí vocês vão ver como meu filho se tornará uma pessoa de valor”.

Não quero imaginar o marginal que resultará do seu filho, sentenciou o padre e voltou para casa. No dia seguinte, a picada já fora informada de que o velho João mandara o Joãozinho para a cidade. Por um longo tempo não se ouviu nada dele. Na época do Natal, porém, passou duas semanas em casa. Caramba, que menino elegante. Os sapatos reluziam de tanta graxa, as calças passadas e alisadas, o casaco e chapéu novos em folha. Quando colocava o chapéu na cabeça, aparecia o cabelo todo lambuzado de “glostora” e impecavelmente penteado. Sobre o nariz portava óculos azuis enormes, a gravata pintalgada parecia-se com penas do papa ovo. O Joãozinho parecia um doutor. Recusava o nome de Joãozinho. Exigia que o chamassem de João. Não queria mais falar alemão, só português. Nos domingos quando ia para a igreja, para se exibir, criticava a missa rezada em alemão assim como o sermão do padre em alemão. Na cidade, dizia, as coisas eram diferentes. Ninguém falava alemão e, se arriscasse fazê-lo, parava na cadeia.

E as outras maravilhas que o Joãozinho contava da cidade! Dizia que lá se trabalhava apenas oito horas por dia e nos sábados recebia-se, sem falta, o salário. Ninguém trabalhava na roça imunda. A maioria andava de automóvel e, à noite, havia cinema em toda a parte, custando apenas alguns centavos e, além de tudo, era a coisa mais divertida de se imaginar. Havia bailes todos os dias e mais ou menos cada mês uma grande festa, com música e foguetes e tudo de graça.

Só não contou nada da igreja. Perguntado a respeito, respondia apenas que na cidade só se pregava em português e havia tantos padres que era impossível conhece-los todos. Enquanto o Joãozinho falava, os outros paravam em sua volta, olhavam sua gravata e pensavam: quem nos dera viver também na cidade. O Joãozinho enfiava a mão no bolso, fazia tilintar as moedas, tirava os óculos azuis, os limpava com o lenço e continuava: A vocês rapazes posso garantir que quem quiser ver alguma coisa, precisa ir para a cidade. O colono cheirando a esterco não vale mais nada hoje em dia!

Para o Pedro que fora colega de escola do Joãozinho, a afirmação enchera todas as medidas. Agarrou-o pela gravata pintalgada e disse: O que disseste? Tu, um torresmo, um terneiro lambido! Falas em colono cheirando a esterco. Vou te mostrar o que é um colono cheirando a esterco! Sacudiu o Joãozinho com tamanha fúria que seus olhos saltaram das órbitas e os óculos pararam no meio da grama. No exato momento em que ia agarrá-lo para enchê-lo de pancadas, apareceu o professor e apartou os dois.

No mesmo domingo, o padre fez um violento sermão contra o ir para a cidade. Há pais, falou, que permitem aos filhos ainda quase crianças, irem para a cidade, onde trabalham como empregados e em questão de poucos anos naufragam física e espiritualmente. Há mães que não se envergonham e permitem que suas filhas, em troca de alguns mil réis, executem tarefas de escravas junto a famílias desconhecidas. Em não poucos casos tornam-se vítimas da sedução e da vergonha. Observai os rapazes que retornam da cidade, alisados e passados a ferro e corrompidos até a raiz, a cabeça cheia de cinema, de bailes, de deboche e desprezo pelos honrados colonos. Observai as meninotas que voltam da cidade, equilibrando-se sobre saltos absurdamente altos, o vestido curto demais, as unhas vermelhas, os lábios recém-pintados, parecendo voltar de um festim de antropofagia. Para a cidade são colonas demais, para a colônia muito finórias. Todas elas parecem aves caídas do ninho. Povo da minha comunidade, permaneça fiel ao honrado povo da colônia e abandone a cidade para a qual não foste feito.

O padre disse ainda mais. Naquele domingo, reinou na igreja um silêncio sepulcral. Apenas as senhoras de mais idade olhavam discretamente para se certificar se o João e seu doutorzinho se encontravam na igreja. Não estavam. (até aqui o conto do Pe. Rambo)

Como jovem vivenciei essa primeira fase da urbanização demográfica acompanhada da urbanização das mentes e 80 anos mais tarde tenho a graça de apreciar os seus resultados, uns muitos bons outros nem tanto. O Pe. Rambo foi um profundo conhecedor dos hábitos, costumes e valores dos colonos, onde se encontravam suas raízes, onde nasceu, viveu a infância e adolescência e acompanhou com preocupação essa reviravolta pela base desse mundo bucólico, com a abertura para o grande mundo que se perdia no horizonte além dos morros que delimitavam seu mundo comunal. Não falamos apenas de horizontes geográficos mas, principalmente, de horizontes onde a urbanização e a modernização, começavam a abalar toda uma tradição considerada sagrada e intocável, consolidada por séculos, para não falar em milênios.

A entrada triunfal dos meios de comunicação começando pelo telefone a manivela e passando pelo rádio, televisão somada à toda parafernália de comunicação de que dispomos hoje, o mundo rural de até a metade século XX, passou para os museus da história. Para a geração nascida a partir de 1960 toda essa história perde-se ou submerge nas brumas do tempo.

Entrando um pouco em detalhes, embora superficialmente, o impacto da urbanização demográfica e, especialmente, a urbanização das mentes, afetou em cheio a família como instituição, como base da organização religiosa, social, política econômica. Em resumo. Enfraqueceu a sua importância como fundamento das instituições humanas, para chegar ao ponto de se contestar a própria razão de ser da família ou degradá-la à condição de repositora de novas gerações de cidadãos para servir ao leviatã do Estado. Está sendo despojada da condição de base e embrião da educação no primeiro estágio da formação dos cidadãos. O princípios praticados nas escolas de comunidade, com ênfase para as confessionais católicas e protestantes, numa das quais adquiri minha formação elementar, encontra-se no jornalzinho “Mitteilungen”. No n° 4, p. 26 de 1901 pode-se ler o resumo sobre a quem cabem os direitos sobre a educação e formação dos filhos. O autor do artigo resume numa pergunta a questão: “A quem cabe, pela sua própria natureza, a educação da criança?” e responde:

Essa questão deve ficar bem clara antes de delimitar a quem cabe a tarefa de educar e em que nível de responsabilidade. Que os pais são depositários imediatos da educação dos filhos, ou que eles foram chamados por Deus parece tão óbvio que não requer prova. O homem entra livre na existência, mas já ao entrar no mundo vê-se rodeado de necessidades. Quem forneceu alimentos e dispensou cuidados aos filhos de Adão? Tiveram por acaso que clamar e esperar que a primeira comunidade ou o primeiro estado os assumisse? A família é anterior a qualquer comunidade ou qualquer estado. Ambos, comunidade e estado, vieram mais tarde impostos por novas necessidades e das exigências mais complexas, que acompanham a evolução normal de uma sociedade. Ou, o que vem antes, a casa ou o material com que foi construída?”.

Depois dessa reflexão introdutória o autor da matéria discrimina e justifica o direito da Família, a Igreja e do Estado no tocante à educação. Na escala dos direitos sobre a educação o direito primário pertence à família. Os argumentos a favor dessa tese foram assim resumidos.

“A criança ao nascer necessita do amparo dos pais para sobreviver. A condição de pai e mãe vem acompanhada das devidas obrigações. A própria ordem natural estabelece pois, que os pais acompanhem e garantam aos filhos os respectivos cuidados de ordem material e sedimentem neles os valores fundamentais indispensáveis para a formação da personalidade. Se Deus obriga os pais a prover os meios para a sobrevivência dos filhos, conclui-se que eles também gozam do direito primário de educá-los. Se aos pais for tirado o direito e a responsabilidade pelas bases da educação, não podem ser responsabilizados pelo comportamento futuro dos filhos. Esse raciocínio parece dar suporte à realidade antropológica, histórica e sociológica de que à família, nos seus diversos formatos: monogâmica, poligâmica, indissolúvel, consensual, comunitária e outras modalidades, pela sua própria natureza, cabe a tarefa e o direito de educar os filhos. Além da garantia material da alimentação, proteção, abrigo etc., o mais importante resume-se na consolidação dos valores indispensáveis para a formação da personalidade do adolescente, do jovem e do adulto: valores éticos e morais, o correto uso da liberdade, valores, costumes e hábitos indispensáveis para um convívio civilizado na família, na comunidade e ou sociedade, consciência dos direitos e deveres como cidadãos de um estado. Não por nada nas sociedades preconceituosamente chamadas de “primitivas” no nível da organização de hordas, clãs, tribos e outras formas, nômades ou sedentárias, os “mestres escola”, costumavam ser as pessoas de idade. Reunidos no aconchego do fogo das tendas ou acampamentos, no refúgio das cavernas e ou na sombra de uma árvore da floresta narravam para as crianças e adolescentes a história, os valores, hábitos e costumes e, assim, impediam que a tradição sofresse rupturas ou se corrompesse. Como seria gratificante se nos fosse dado assistir uma “aula” desse feitio numa caverna, num acampamento ou simplesmente à luz de uma noite de lua cheia. A memória das tradições relembradas pelos mais velhos, o relacionamento e comportamento entre os membros da família, e esses no convívio social com os demais membros do clã ou tribo, educavam para formar uma sociedade solidária e comprometida com o bem estar e a sobrevivência do grupo. Classificar essa forma de educação característica da fase de “baixa, média ou alta barbárie”, não passa de um insulto ao humano no homem de 15.000 anos passados e, pasme-se, às tribos no interior da floresta amazônica algumas ainda hoje vivendo no neolítico da pedra polida ou de alguma comunidade humana numa ilha isolada e perdida nos confins do Pacífico.

Suponho que essa digressão contribua de alguma forma para ilustrar que a questão da educação exige uma reflexão séria, antes de mais nada, sobre a sua natureza como um dado que faz parte da perenidade que perpassa a história como uma referência diacrônica. O panorama que acabamos de desenhar pede o destaque e aprofundamento de alguns dos traços que marcam de uma forma mais visível as características da fisionomia civilizatória na entrada da terceira década do século

Antes de mais nada é preciso não confundir os dois conceitos: religiosidade e religião, para evitar compreensões equivocadas. A religiosidade refere-se à preocupação de as pessoas encontrarem respostas para explicar os mistérios da natureza e, principalmente, os que dizem respeito ao “donde” vem a humanidade como um todo e as pessoas como indivíduos, o “para que” estamos neste mundo e “para onde” vamos. Os dados etnográficos e etnológicos de que dispomos confirmam que esses questionamentos foram e continuam ocupando o centro das preocupações dos indivíduos e dos povos da história da humanidade de alguma forma conhecida. E se foi a preocupação do homem historicamente conhecido permite projetar essa mesma preocupação acompanhando a humanidade desde que o primeiro da espécie, deu o passo inicial para a caminhada que soma milênios, quem sabe milhões de anos.

Da Enxada à Cátedra [ 71 ]

O Mapa Mundi redesenhado. Depois de terminada a segunda guerra mundial a história da humanidade enveredou, por assim dizer, para uma adaptação às novas realidades, consequências do conflito de dimensões planetárias. O mapa do mundo foi redesenhado pelos acordos dos vencedores Estados Unidos, Inglaterra, França e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Países foram repartidos e tratados como troféus de guerra, como a Alemanha, metade sob o domínio soviético e a outra sob o dos demais vencedores. Berlim foi zoneada em quatro partes, províncias inteiras foram arbitrariamente incorporados em estados fronteiriços. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes do que aconteceu em outros países e continentes. O exemplo da Alemanha vem a ser emblemático para inúmeras outras situações. Neste contexto em que evidentemente as razões geoestratégicas ditaram os acordos, as populações, culturas e etnias derrotadas envolvidas nesse jogo de xadrez, não tiveram voz. Para encurtar. Nesse caldo de interesses e conveniências dos “donos do mundo” ficou aos poucos evidente que aqueles senhores tinham celebrado alianças com a finalidade de por de joelhos o Nacional Socialismo e varrer da Europa a ditadura perversa de Hitler e seus comparsas. Não demorou que interesses geopolíticos, geoeconômicos e geoestratégicos subjacentes fizessem valer seus postulados. Ficou evidente que a União Soviética comandada pela voracidade insaciável em ampliar o mais possível o espaço de sua dominação e influência, abocanharia o maior número possível de países e territórios localizados nas suas fronteiras ou próximos a elas. Ao definir-se a linha “Oder-Neisse” como delimitadora entre o ocidente inglês, americano e francês e o oriente soviético, a Alemanha foi cortada ao meio, Áustria, Iugoslávia, Hungria, Bulgária, Romênia, Polônia, a República Theca e as Repúblicas do Báltico: Letônia, Estônia e Lituânia passaram para o domínio soviético. Nesse nível estagnou a aliança entre essas grandes potências ao derrotarem a Alemanha nazista. No fundo no fundo a visão do mundo soviético e a visão dos países do mundo ocidental não passava de água e óleo que até podem servir para encher um recipiente comum, porém, jamais se misturam. Essa animosidade, melhor, incompatibilidade estrategicamente posta de lado durante a guerra, subliminarmente vinha à tona em determinadas ocasiões. Lembro duas que não deixam dúvidas. Ambas contaram como personagem emblemático o general americano Jorge Paton. Consta que ao alcançar a margem esquerda do Reno na ponte de Remaghen, recebeu ordem superior de não atravessar o rio porque os russos já ocupavam margem direita. Paton teria reagido à ordem com a observação: “já que chegamos até aqui com todo nosso poderio militar em homens, blindados e artilharia, porque estamos perdendo tempo e não avançamos para fazer recuar o verdadeiro inimigo que são as tropas russas?”. O mesmo ânimo oposto ficou evidente num banquete do alto comando dos aliados para comemorar a vitória. Novamente coube a Paton deixar claro o conceito que tinha dos comandantes russos. O marechal Jukov propôs um brinde à vitória. Paton negou-se com a frase “Não brindo com um f. p.” Jukov respondeu“És um f. p. também”. Paton respondeu: “Nesses termos aceito brindar”. Não me lembro em que publicação tive conhecimento desse episódio. Mas, gravei na memória a foto que ilustrava a reportagem Paton e Jukov em pé erguendo a taça do brinde.

Não vou me alongar em lembrar o que aconteceu nas décadas que se seguiram. A criação da ONU, o mundo literalmente partido em dois. O ocidente sob a influência e a tutela dos Estados Unidos, Europa Ocidental e no Oriente Remoto e Pacífico: Japão, Coreia, Filipinas, Indonésia, a revolução comunista de Mao Tse Tung na China continental e a implantação da República da China Nacionalista na ilha de Formosa comandada por Chiang Kai-Shek. Simultaneamente celebraram-se os pactos militares do Atlântico Norte (NATO), em contraposição ao Pacto de Varsóvia sob o comando da União Soviética. Não é minha intenção escrever uma história do final da segunda guerra mundial e suas consequências pelo mundo afora. Historiadores muito mais credenciados já se ocuparam com o tema. O objetivo resume-se aqui no desenho de um panorama de fundo, para entender o turbilhão que se abateu, junto com resto do mundo, também sobre o Brasil. Mais, acima já lembrei que o término da guerra marcou também o final da ditadura de Vargas e do Estado Novo com todas as suas aberrações. A redemocratização consolidada pela eleição pelo voto popular do marechal Eurico Gaspar Dutra e a proclamação da Constituição em 20 de setembro de 1946, ditou o rumo político do País até a intervenção militar em 1964. Minha formação acadêmica incluindo os quatro últimos anos do ensino do ginásio, o bacharelado em Línguas e Literaturas clássicas, o bacharelado em Filosofia, o bacharelado em História Natural e Geologia e, finalmente, a licenciatura em Teologia concluída em 1963, aconteceu nesse período. Paralelamente a partir de 1960 comecei a lecionar Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Geologia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo. Não entro em maiores detalhes pois, já foram contemplados mais acima. Nesse período de menos de duas décadas começaram a desenhar-se no horizonte da história os prenúncios do “temporal”, conceito que serviu de título para o capítulo em pauta.

Enumero alguns dos fatores que considero mais relevantes nessa guinada histórica cujas consequências terminaram em moldar em ritmo sempre mais acelerado a civilização do começo do terceiro milênio. E, pelo visto, seu potencial “revolucionário” não dá sinais de arrefecimento a curto e médio prazo. Lembrando a metáfora inspirada em Nietzche que a história da humanidade vem a ser igual à travessia de um abismo equilibrando-se sobre uma corda, pode-se afirmar que no momento histórico em que vivemos, o balançar da corda assumiu uma intensidade preocupante. As raízes desse fenômeno remontam ao ano de 1922 e foram-se consolidando aqui no Brasil, de forma sutil nos 10 ou quinze anos do após guerra, para irromper como um temporal a partir do começo da década de 1960. De tão sutil foi esse fenômeno que os nascidos há 80 ou mais anos falam de 1950 como “a década dos anos de ouro”. Não nos passava pela cabeça que, na verdade, vivíamos numa calmaria que prenunciava uma tempestade na qual se gestava uma nova era histórica. Ainda é cedo para afirmar se melhor ou pior. Embora o fenômeno fosse de proporções planetárias em linhas gerais, nessas minhas recordações pretendo dar ênfase ao reflexo sobre minha trajetória de 60 anos para cá e sobre o entorno histórico cultural em que atuei com docente em duas universidades, sobre a evolução da minha personalidade, sobre a minha visão do mundo e sobre a minha produção como pesquisador e escritor. Vamos aos fatores que considero de maior impacto nesse autêntico terremoto em que a humanidade se debate.

Da Enxada à Cátedra [ 70 ]

O outro instrumento paralelo e complementar às agremiações de Ação católica mencionados há pouco, foi a educação de nível médio nos muitos colégios e instituições de ensino a cargo de ordens e congregações, masculinas e femininas, espalhadas pelas capitais e cidades maiores do interior do estado. Nesse nível de formação cabe aos jesuítas o mérito maior. Não é aqui o momento oportuno para escrever, mesmo resumidamente, a importância dos jesuítas na implantação de colégios pelo Brasil afora, desde sua presença na então colônia portuguesa, durante o Império e a República. Limitamo-nos a destacar a sua obra educacional no Rio Grande do Sul e Santa Catarina no período em pauta. Como é do conhecimento geral a primeira instituição de nível médio foi o Colégio Nossa Senhora da Conceição sediado em São Leopoldo sob responsabilidade do Pe. Clemens Faller e Ferdinand Feldhaus em 1869. Já em 1972 as irmãs franciscanas da Penitência e Caridade, vindas da Alemanha, ofereceram para o mundo feminino o Colégio São José também em São Leopoldo. Seguiram-se na década de 1890 o Colégio Gonzaga em Pelotas, o Stella Maris em Rio Grande e em 1905 o Colégio Catarinense em Florianópolis, o Colégio Anchieta em 1910 em Porto Alegre, todos dos jesuítas. O alto nível dessas instituições de ensino médio foi reconhecido pela equiparação ao Colégio D. Pedro II, referência de avaliação para o ensino médio em todo o País. No começo do século XX entram em cena congregações masculinas, como os irmãos Maristas, os Irmãos das Escolas Cristãs ( Lassalistas), as irmãs de Santa Catarina, as irmãs de São José, Divina Providência e outras, tanto masculinas quanto femininas que deram o tom à educação no nível médio no sul do Brasil. Quando se fala hoje em educação no Brasil a importância e o papel que tiveram essas instituições nas décadas finais do século XIX e na primeira metade do século XX, senão ignorada pelo menos não se lhes reconhece a devida importância, quem sabe porque formavam as elites responsáveis pelo bom andamento das instituições públicas e privadas. Aliás falar em “formação de elites” soa hoje como uma aberração politicamente incorreta, pelo clima que hoje domina e alimenta a crise da educação. Numa época em que o nivelamento por baixo do que oferece o ensino em todos os níveis, a começar pelo infantil, passando pelo fundamental e pelo médio, o de nível superior, da pós graduação, dos mestrados e doutorados e os assim chamados pós doutorados, a formação naquelas instituições, se muito merecem um lugar nos museus da história da educação. Sinto-me em condições de falar com conhecimento de causa desse imbróglio pois, vivi, atuei e participei de tudo que aconteceu na educação nos últimos 80 anos.

Depois desse desvio retornemos à formação das elites intelectuais de Porto Alegre junto ao Colégio Anchieta. Acima já lembrei que a modalidade de Ação Católica dos jesuítas vinham a ser as Congregações Marianas nos colégios, inclusive nas paróquias sob sua responsabilidade nas quais costumavam agregar os rapazes e as moças solteiras, as famosas associações das “Filhas de Maria”. Não entro em detalhes desse instrumento pastoral pois, já o desenvolvi e outras publicações sobre os jesuítas no sul do Brasil. Às Congregações Marianas vieram somar-se Apostolado da Oração, os Retiros Espirituais de Sto. Inácio, as associações para crianças os Kinder Jesus Vereine, associações das mães (Müttervereine) e outras mais. O resultado mais importante pode ser resumido na consolidação de uma militância católica de nítido caráter missionário alimentado pela frequência dos sacramentos, pela guarda e defesa da ortodoxia doutrinária e a observância dos preceitos disciplinares ditados pelas autoridades eclesiásticas. Em resumo. Ser católico significava colaborar de alguma forma com a expansão e o sucesso da “Igreja Militante” marcando o seu espaço e sua razão de ser numa civilização laica. Nas manifestações públicas e coletivas como a comemoração de “Corpus Christi”, “Congressos Eucarísticos” e eventos similares contavam obrigatoriamente com a presença dos alunos dos colégios católicos, tanto femininos quanto masculinos, somados aos filiados às organizações católicas das mais diversas categorias. “Os cantos de guerra”, cantados com convicção nas procissões que tomavam conta da Independência desde a altura dos Moinhos de Vento, continuando pela Duque de Caxias para terminar na praça em frente à catedral, ecoavam por todo o centro de Porto Alegre: “Do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras, cerremos as fileiras, soldados do Senhor!”, ou então cantado em latim, língua oficial da Igreja e constante no currículo de todas as instituições do ensino médio: “Papam protege, hostes reprime, stet Petri Cátedra salutis regula!”. (Protege o Papa, reprime os inimigos, a cátedra de Pedro permaneça como guia da salvação).

Essa efervescência religiosa festejou o seu maior vigor e influência nas décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950. O Colégio Anchieta sediava as diversas Congregações Marianas: a dos alunos, a dos estudantes universitários, a dos formados no ensino superior e da que congregava comerciantes, militares, prestadores de serviço, funcionários públicos e outros mais. Das congregações destinadas ao aperfeiçoamento religioso dos alunos e demais segmentos da sociedade emergiu um laicato católico, somada à Ação Católica, também desdobrada em níveis de formação, com já apontado mais acima, que permeava a atmosfera religiosa da capital e em grande parte do interior do Estado, como também Santa Catarina, principalmente Florianópolis. O Colégio Anchieta, ao lado da sua tarefa de instituição de excelência na formação no nível do ensino médio, foi o epicentro de uma elite católica combativa que marcou o período há pouco delimitado. Nele plasmou-se uma geração de intelectuais católicos que além de atuarem como fermento na condição de profissionais liberais, como magistrados, como funcionários públicos, como militares, como políticos, influíram fortemente nos rumos da então Universidade do Rio Grande do Sul Federalizada em começos de 1950. A reitoria de orientação positivista passou em 1937, o comando ao Dr. Armando Pereira Câmara figura proeminente da intelectualidade católica. Quando, no começo da década de 1940, foi criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um número expressivo dos catedráticos fundadores pertencia ou tinha pertencido à Congregação Mariana com sede no Anchieta e munidos de uma boa formação filosófica e teológica pelo Pe. Werner von und zur Mühlen. Predominava naquele período entre os jesuítas mais influentes no meio intelectual do sul do Brasil a convicção de que a docência numa universidade pública, em termos de influência na formação humana e cristã, daria melhores resultados do que manter uma universidade própria que exigiria o comprometimento de preciosas reservas de energias absorvidas pela burocracia administrativa. Deduzo que esse deve ter sido um dos motivos de maior peso na não aceitação por parte dos jesuítas da oferta do arcebispo para assumir a Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a PUCRGS, fundada em 1942.

Da Enxada à Cátedra [ 69 ]

Década de 1960 na UFRGS.

Depois de registradas as lembranças da década de 1960 relativas aos meus compromissos acadêmicos, administrativos, somados ao envolvimento de projetos de extensão na Unisinos, não posso deixar de lembrar o que ocorreu de importante, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os fatos dignos de menção em 1960 e 1961, já foram objeto de anotações mais acima. Em linhas gerais de 1962 a 1970 meus compromissos limitaram-se a dar conta das 12 horas de preleções previstas no meu contrato como professor assistente, nos cursos de História, Geografia e Ciências Sociais. Vale, porém, comentar e analisar o autêntico terremoto que mudaria para o futuro o universo acadêmico, sem grandes perspectivas por enquanto de uma reviravolta para valer, com reflexos profundos sobre a academia em si e sobre cosmovisão que continua predominante até hoje. Vários fatores combinados contribuíram cada um à sua maneira com esse fenômeno. Começo por tentar identificá-los e mostrar a porção que lhes coube nesse processo, sem pretensão de classifica-los em ordem de importância.

A Reforma do Ensino

No contexto em que estou escrevendo não cabe uma análise da Reforma do Ensino de 1960 na sua abrangência sobre todos os níveis. Limito-me à mudança da estrutura acadêmica das universidades. Até entrar em vigor a reforma do ensino as poucas universidades existentes no Brasil ostentavam um perfil mais ou menos semelhante. De uma forma ou outra a “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”, correspondia, por assim dizer à “alma”, a “alma mater” das universidades no jargão corrente quando se falava em universidade. A “alma mater”, de fato, significava a própria universidade. À Filosofia, Ciências Humanas, Ciências Naturais, Letras e Artes, numa perspectiva de concepção interdisciplinar, cabia o papel de fundamento pensante” das faculdades, escolas técnicas, centros de pesquisa responsáveis pela formação especializada nas mais diversas áreas: engenharia, medicina, direito, arquitetura, economia, jornalismo, publicidade e propaganda e tantas outras. À “alma mater” cabia, pelo menos teoricamente, a responsabilidade de consolidar os valores culturais fundamentais para sobre eles consolidar uma cosmovisão coerente e fundamentada, da razão de ser de uma universidade. No começo da década de 1960 havia poucas universidades no Brasil, com destaque para a USP em São Paulo, Universidade federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, além de uma dúzia de outas espalhadas pelos principais centros do País. Todas elas apresentavam, com variações, o perfil que descrevi acima. Muitas delas, por falta de docentes e pesquisadores à altura no Brasil, contaram no começo com o reforço de profissionais habilitadas por universidades da França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e outras procedências. O mais familiar para mim foi o modelo da UFRGS, onde conquistei meu bacharelado em História Natural e Geologia entre 1957 e 1959, fazendo parte da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Todos os meus professores haviam sido formados nessa universidade. Acontece, entretanto, que, quando em 1957 foi criado o Curso de Geologia, na época praticamente uma especialização da História Natural, foi preciso buscar reforços nos Estados Unidos pois, no Brasil os geólogos com formação acadêmica e prática de pesquisa na área, vinham ser uma raridade e a demanda da Petrobras em plena expansão pedia com urgência a formação de geólogos nativos. Mais acima já fiz referência a esse recurso a estrangeiros e o significado para mim por me interessar por esse fascinante campo das ciências Naturais. Pois, a reforma do ensino incluindo a de nível superior terminou por dividir em áreas autônomas a Filosofia e Ciências Humanas, as Ciências Naturais em Biologia, Botânica, Zoologia, geologia e outras especialidades afins, a Física, Química e Matemática e, finalmente as Letras e Artes.

Paralelamente ao desmonte da estrutura acadêmica, isto é, na prática diluindo e dispersando a “alma mater” da universidade por praticamente todas as suas atividades docentes e de pesquisa. A “alma” da universidade deixou de existir, muito menos fazer sentido como incubadora do conhecimento balizado por uma cosmovisão interdisciplinar, integradora e holística, tanto das Ciências Humanas, quanto das Ciências Naturais, Letras e Artes. Salvo melhor juízo começou a partir desse momento a fragmentação da estrutura acadêmica em departamentos e centros de pesquisa. Consolidaram-se em bolhas isoladas em vez de vasos comunicantes intercambiando e complementando conhecimentos e experiências em busca da Verdade. O conceito “alma mater” foi arquivado nos museus da história. O método interdisciplinar perdeu gradativamente espaço para o multidisciplinar e transdisciplinar e as universidades tornaram-se presas fáceis, melhor talvez, campos férteis para proliferarem movimentos intelectuais que foram contaminando a mente e ação dos gerações de docentes e egressos das instituições de ensino superior com reflexos que resultaram na atual civilização errática, fruto do relativismo que minou a própria essência do “humano no homem”, a consciência moral do certo e do errado e, ao mesmo tempo, o correto entendimento da liberdade e seu exercício. O filósofo Alexandro S. Caldera, nosso já conhecido em referências mais acima, caracterizou em poucas palavras essa realidade e nela o papel da universidade: “Vivemos num mundo e nele especificamente a universidade, cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação. A universidade tem que reunir os fatores dispersos, numa unidade que é o ser humano; numa nova síntese, que é o homem, a mulher e o sujeito histórico”. (Caldera, 2004, p. 106)

Mas, não se pode esquecer que o movimento de desmonte da universidade já vinha sendo preparado desde o final do século XIX pelos movimentos anarquistas que culminaram com a greve geral de 1917. O marco decisivo e a adesão ao marxismo-leninismo foi a criação do Partido Comunista Brasileiro em março de 1922, filiado à Internacional Comunista. Nessa condição recebia ordens diretamente de Moscou e não poderia ser tolerado como um partido brasileiro. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes da trajetória do partido comunista nas décadas que se seguiram: as sucessivas extinções e reaberturas até hoje, a Intentona fracassada em 1935, sua atividade no pós guerra, nos episódios da Legalidade, a intervenção militar de 1964, na redemocratização depois dos governos militares até o presente. Em linhas gerais o foco das minhas recordações têm como pano de fundo o começo da década de 1960 e 1970, quando o marxismo começou a infiltrar-se sorrateiramente nas organizações católicas, de modo especial na JUC (Juventude Universitária Católica) e nas demais como a JEC (Juventude estudantil Católica, JAC (Juventude agrária Católica) e a JIC (Juventude independente Católica). Essas organizações e similares como as Congregações Marianas, Círculos Operários e outras, foram instrumentos de importância vital para fortificar e realimentar a assim chamada “Igreja Militante” nos papados de Pio XI e Pio XII, reunidas sob o conceito de “Ação Católica”. Nelas se preparavam as elites católicas para cumprirem o papel de salvaguardas da ortodoxia, disciplina e hierarquia da Igreja no contexto leigo e profissional em que atuavam. A presença e atuação da Ação Católica, de modo especial no nível acadêmico e intelectual muito atuante encontramos nesse período na Itália. Aqui no Brasil as diversas ramificações da Ação Católica acima referidas, encontravam-se sob a autoridade direta da hierarquia eclesiástica. A arquidiocese de Porto Alegre designava um assistente eclesiástico específico para acompanhar o andamento das associações, cuidando para que não se desviassem do caminho da reta doutrina e disciplina católica. Programavam seus encontros regulares na Casa dos Estudantes que também servia de moradia de estudantes vindos do interior do Estado e até fora dele.

As Congregações Marianas, a modalidade preferida pelos jesuítas para a formação religiosa dos leigos, tinha a sua sede no Colégio Anchieta, então localizado na Duque de Caxias, perto da Catedral. Em 1911 o Pe. Estevão Muser fundou a Congregação “Mater Salvatoris” destinada à formação religiosa e humana dos alunos da universidade. Na ocasião só existiam as faculdades que mais tarde formariam a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, no começo da década de 1950 elevada à categoria de Universidade Federal, a atual UFRGS. Desde a sua fundação a “Mater Salvatoris” foi conquistando um número crescente de filiados matriculados nas diversas faculdades. Sem maiores percalços superou a primeira guerra mundial e sua fama de formadora de elites católicas de intelectuais e profissionais liberais de nível superior, tornou-se referência para o Rio Grande do Sul e além de suas fronteiras. Em começos de 1920 o Pe. Muser passou o comando da Congregação para o Pe. Werner von und zur Mühlen. Como sugere o próprio nome esse jesuíta dono de uma aprimorada formação filosófica e teológica, nascera de uma família da alta nobreza de Münster na Vestfália. Abandonara as benesses as honrarias e o poder do seu castelo natal para entrar na Companhia de Jesus e terminou destinado para a Missão que a Ordem mantinha no sul do Brasil. Nas circunstâncias de 100 anos passados o Pe. Werner foi o personagem mais que talhado para assumir a “Mater Salvatoris”, até o seu falecimento em agosto de 1939, isto é, um intelectual de primeira linha educado numa família da nobreza alemã e, acima de tudo, um religioso jesuíta da velha guarda, ouso dizer, da autêntica cepa de Santo Inácio de Loiola, hoje uma raridade senão perdida no crepúsculo do tempo. Naquelas quase duas décadas na direção da Mater Salvatoris esse homem despojado da sua herança secular, que dormia sobre um estrado de tábuas, que levava uma vida tão austera que marcou como ferro em brasa as personalidades dos seus pupilos. Com o intuito de mostrar o que o Pe. Werner significou para os jovens formados e os ainda em fase de formação, reproduzo o introito do discurso pronunciado pelo médico Dr. Antônio Botini, um dos pupilos do Pe. Werner por ocasião do primeiro aniversário da sua morte, dando ênfase, mais nas entrelinhas do que nas próprias linhas, à personalidade que plasmou em Porto Alegre uma elite intelectual que, por décadas fez dessa cidade uma referência.

Chovia. O céu era plúmbeo. Um vento agressivo e álgido soprava inclemente, com lamentos doridos de suspiros angustiados. Dir-se-ia que a natureza mergulhada em tristeza, chorando e soluçando. Era assim aquele domingo, vinte de agosto de 1939. Era a hora do crepúsculo, a hora do recolhimento, a hora em que o homem se volta para dentro de si, só com sua alma para meditar e refletir.

Foi justamente a essa hora que a alma cândida e pura do nosso grande benfeitor e Santo Padre Werner voou aos céus, aos páramos da luz, ao gozo da eterna visão beatífica. Eu sinto-me pequeno, sinto-me obumbrado, sinto-me como que aniquilado diante da grandeza sublime deste varão insigne e notável pela austeridade de sua vida, plena de santidade que o aureolava, pela sabedoria profunda que irradiava. Embora dentro deste paradoxo, eu vos devo falar hoje do Barão Werner von um zur Mühlen, natural de Münster, capital da Wesphalia. Homem de sangue azul, nascido entre tufos de rendas, sedas e flores, na maior opulência, entre grandezas da terra, num magnífico castelo de majestosas linhas arquitetônicas. Nada faltou ali, tudo ele teve a hora e a tempo: conforto, carinhos, flores, desvelos, sorrisos e criadagem. Numa radiosa esperança, a seus pés todas as glórias palpáveis do mundo. Diante de seus olhos grandes, azuis, profundamente serenos, agudamente penetrantes, seus preceptores fizeram desfilar os feitos heroicos da cavalaria alemã. Ao lado das lendas dos Nibelungen que inspiraram o gênio de Wagner, não escaparam por certo à argúcia, a suntuosidade de suas artes e a profundidade de sua ciência. Enfim, o gênio germânico sob todas as modalidades e aspectos. E como remate de tudo isso, um brilhante, um esplendoroso futuro cheio de deslumbramentos, de honrarias diante dos brasões e dos fastos de seus avoengos. Era isso tudo para ele, e, era também num admirável paradoxo, nada!

Escolhi esse depoimento do Dr. Botini como ponto de partida para algumas considerações sobre o Pe. Werner, porque me parece que nele se encontra enunciado e principalmente dito nas entrelinhas, o que esse jesuíta significou nos anos 20 e 30 do século passado, para a formação das elites intelectuais católicas do nosso Estado.

Para de alguma maneira compreender o alcance da atuação do Pe.Werner é preciso, antes de mais nada, ter uma noção das circunstâncias históricas em que desenvolveu a sua atividade. A proclamação da República implantara no País o Estado Laico, consagrando definitivamente a separação do Estado da Igreja. Declarou todas e quaisquer religiões com direitos e deveres iguais, enquanto se empenhava em mantê-las o mais longe possível dos negócios públicos. O Trono e o Altar, a Igreja e o Estado haviam-se divorciado e cada qual fechara-se sobre seus próprios negócios e, não raro, num clima de franca oposição. Esse clima alimentado pelo iluminismo, pelo racionalismo, pelo cientificismo, pelo positivismo, pelo materialismo, pelos socialismo, pelo comunismo e por tantos outros ismos, já orientara antes a institucionalização dos regimes republicanos nas três Américas e liquidara os regimes de cristandade e de padroado na Europa.

Os movimentos modernizadores que comandavam o processo de laicização dos Estados, a separação do Estado e da Igreja, o profano e o religioso e, em não poucos casos, a guerra declarada entre as duas instituições, levou a Igreja a responder com o seu projeto de renovação interna: o Projeto da Restauração Católica. Para marcar a sua posição clara e inequívoca com o retorno à ortodoxia doutrinária e disciplinar do Concílio de Trento, ao mesmo tempo em que definia como autoridade máxima o Papa em Roma e consolidava uma convivência pacífica com os Estados Laicos, ou a rejeição pura e simples de qualquer tipo de composição ou, como foi no Brasil, de convivência civilizada e útil. Na implementação da Restauração Católica a Igreja mobilizou todas as suas reservas, tanto humanas como institucionais, e pôs a seu serviço todos os instrumentos e estratégias de que dispunha.

Aqui no Brasil a restauração Católica assumiu uma feição menos belicosa do que, por ex., na França, Alemanha, México e outros países. As orientações que foram traçadas nesse sentido para a Igreja do Brasil, tiveram como inspirador o Cardeal D. Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro. Pautava-se ele pelo princípio da convivência pacífica e civilizada, produtiva e solidária com as autoridades do Estado Laico. Todos os recursos humanos e institucionais foram mobilizados: o ensino religioso, as agremiações de caráter religioso em todos os níveis sociais, as organizações classistas como os Círculos Operários e, sobretudo, a Ação católica inspirada no modelo de L. Cardjin fundador da Juventude Operária Católica na Bélgica. Aqui no Brasil a Ação Católica, sempre diretamente subordinada às autoridades eclesiásticas, foi organizada em setores tendo como base o estamento social dos associados. Distinguiram-se, como já lembrado mais acima, a JOC – Juventude Operária Católica; a JUC – Juventude Universitária Católica; a JEC – Juventude Estudantil Católica; a JAC – Juventude agrária Católica; a JIC – Juventude independente Católica.

Da Enxada à Cátedra [ 68 ]

O Projeto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

Haviam-se passado 13 anos da oficialização de Filosofia e Letras Clássicas, 10 anos da criação do curso de Pedagogia, oito anos da criação dos cursos de Ciências Sociais e História Natural, o acréscimo às Línguas Clássicas das Línguas Anglo Germânicas e Néo Latinas, 3 anos da criação dos cursos de Matemática, Física e História, 7 anos da criação da Faculdade de Ciências Econômicas e um ano da Faculdade de Direito. Além da consolidação acadêmica foram unificadas as secretarias das diversas faculdades numa central, como também a unificação e racionalização da administração com a criação do Centro Administrativo das Faculdades, o CAF .

Com o número de candidatos ao ensino superior em alta e os impasses financeiros sob controle, a lógica sinalizava para um passo ousado: Implantar uma Universidade. Nesse meio tempo o Geral dos Jesuítas Pe. Pedro Arrupe em visita à província Meridional do Brasil não deixou de fazer uma visita às Faculdades de São Leopoldo. Numa reunião da comunidade dos jesuítas que nelas atuavam foi posto a par das perspectivas promissoras para elaborar um projeto a ser submetido aos superiores da Ordem em Roma e ao Ministério da Educação.

Com a bênção do Superior Geral o projeto de universidade começou a ser discutido primeiro no âmbito dos jesuítas diretamente envolvidos. Em linhas gerais, aqueles mais comprometidos na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras defendiam uma universidade de tamanho mais modesto. Argumentavam que esse formato favorecia a qualidade ao passo que uma massificação de alunos e criação de sempre mais cursos corria o risco de sacrificar a qualidade em favor da quantidade. Argumentavam também que tanto a administração acadêmica, quanto a administrativa mais enxutas exigiam um aparato administrativo mais leve e menos complicado. Argumentavam ainda que a universidade assim dimensionada permitia também que a maioria do corpo docente e administrativo permanecesse nas mãos de membros da ordem, os já ativos e uma dezena ou mais em formação, um bom número no exterior, destinados a atuar em questão de pouco tempo, nos diversos cursos e programas de pesquisa em andamento ou a serem criados. Um efeito colateral de não pouca importância consistia em diminuir em muito as despesas com professores não jesuítas. Resumindo permite-se concluir que os defensores desse paradigma universitário sonhavam com uma instituição de dimensões limitadas pelo potencial de recursos humanos basicamente sob a responsabilidade de jesuítas. Aqui cabe uma observação que a curto prazo levaria a inviabilidade dessa proposta. O Concílio Vaticano II acabara de concluir seus trabalhos e, entre outras novidades, facilitava-se a redução ao estado laico de religiosos mesmo já sacerdotes ordenados. O previsível aconteceu. Um número considerável, para não dizer a maioria, dos ainda em formação no Brasil e em outros países saiu da ordem e com isso o recurso a docentes e pesquisadores jesuítas ficou seriamente prejudicado.

Uma segunda ala dos jesuítas fortemente incentivados e apoiados pelos professores leigos, especialmente da Faculdade de Ciências Econômicas, acalentava o projeto de uma universidade capaz de se equiparar à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e quem sabe até à da Federal do Rio Grande do Sul e a Federal de Santa Maria. Correspondia ao sonho do Pe. Thiesen que deixara claro a sua preferência pela Universidade de Oxford como referência, como já foi lembrado mais acima. É preciso lembrar que naquela remota segunda metade da década de 1960, só existiam no Rio Grande do Sul as três universidades há pouco mencionadas. Caxias e Ijuí começavam a delinear seus projetos. Nem o vale do Caí, nem do Taquari, nem do Pardo, nem do Jacuí contavam com instituições de ensino superior. Como consequência São Leopoldo, com suas faculdades reconhecidas pelo nível de excelência, transformara-se num polo de ensino superior que atraía alunos de todo estado e de fora dele, de modo especial, porém, dos vales dos rios que formam a bacia do Guaíba e que abrigava uma grande concentração humana, industrial e comercial. Para maiores detalhes sugiro o meu livro “Um Sonho e uma Realidade” publicado em 2009 pela Edit. Unisinos. Sobre esse pano de fundo como argumento a ala defensora de um projeto ambicioso, possibilitando um leque amplo para criação de novas faculdades, cursos, centros de pesquisa etc., contou com o apoio e suporte da Associação Antônio Vieira – (ASAV), mantenedora das Faculdades.

Depois de um consenso entre os defensores dos dois modelos de universidade pela proposta de uma instituição mais ambiciosa, formou-se um grupo encarregado da formulação do projeto. A equipe básica contou com o Pe. Marcus Bach que entregara a direção da Faculdade de Ciências Econômicas ao prof. Olívio Koliver, grande entusiasta do empreendimento. O Pe. Marcus atuoucomo “arquiteto chefe” da equipe. Contava como apaixonados pela obra com Alcides Giehl, Arthur Rambo, Alexandre Vertes, Antenor Wink Brum, Joaquim Blessmann, o Pe. João Oscar Nedel, diretor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Lenine Nequette, diretor da Faculdade de Direito, Rui Rubem Ruschel, juiz da Comarca de São Leopoldo e docente na Faculdade de Direito.

Consolidada a equipe o prof. Alexandre e o prof. Olívio Koliver providenciaram uma primeira reunião de estudos num jantar no Restaurante do João em Porto Alegre. Ao que me consta não se redigiu nenhuma ata das conversações e propostas apresentadas. Não se falou em conveniência de fundar uma universidade pois, esse assunto estava resolvido, mas o seu perfil. Em resumo concluiu-se planejar um projeto de universidade ambicioso e de longo alcance, atenta para que direção sopravam os ventos da história, aberta para acolher as mais diversas correntes do pensamento e incentivar o diálogo entre os muitos “ismos” que invadiam o ambiente das academias. Um projeto, portanto, aberto disposto a acompanhar, participar e interagir com os avanços culturais, sociais, econômicos, técnicos e tecnológicos presentes e futuros. Para mim aquela noite, participando da concepção de um projeto de universidade com parceiros todos igualmente entusiasmados e cônscios do que se tratava, representou um daqueles momentos que a memória fixou nos mínimos detalhes, e isto há mais de 50 anos passados. Semanas mais tarde aconteceu uma reunião em que o documento condensando as conclusões daquela noite no Restaurante do João, foi levado ao Superior Provincial, Pe. Edvino Friderichs na rua Marquês de Pombal, também presidente da ASAF, autoridade para dizer sim ou não ao projeto. Integraram a comissão o Pe. Marcus Bach, Pe, Oscar Nedel, Alcides Giehl, Arthur Rambo, Alxandre Vertes, Olívio Koliver, Lenine Nequette, Heinz Kliemann e outros. O Pe. Friderichs aprovou sem restrições o documento e prometeu enviá-lo aos superiores maiores em Roma para a devida chancela. Orgulho-me pela oportunidade de ter dado o melhor de mim para um empreendimento que tão bem expressava a tradição jesuíta, isto é, fazer da educação em todos os níveis um instrumento da missão evangelizadora. Se anos mais tarde tomei a decisão de me desligar da Ordem tem muito a ver com o rumo, melhor desvio, tomado pela Ordem na sua Congregação Geral em 1965, permitindo diálogos e contaminações com “ismos” condenados pela Igreja antes do Concílio Vaticano II. Essa decisão custou-me um preço muito alto e o prognóstico do meu sempre amigo Pe. Marcus Bach, ao informa-lo da minha decisão, não deixou de revelar-se uma dura realidade: “vais engolir pregos com essa decisão”! No momento oportuno retornarei a esse assunto.

A comissão constituída para a formulação do projeto a ser enviado ao Ministério da Educação foi presidida pelo Pe. João Oscar Nedel assessorado pelo Pe. Marcus Bach, Alcides Giehl, Arthur Rambo, Alexandre Vertes, Lenine Nequette, José Cinel, Sérgio C. Gomes, Olívio Koliver, Rui Rubem Ruschel e outros mais. A justiça manda registrar que ao Pe. Marcus Bach coube o papel de “cabeça pensante”. Nas muitas reuniões formais e informais que se seguiram o projeto foi sendo referenciado e delineado de acordo com as linhas mestras que deveriam constituir-se no cerne da “alma mater” da universidade a ser implantada. Em primeiro lugar a universidade deveria destacar-se pela excelência e o rigor científico, uma “Casa de Sabedoria” com que sonhara o Pe. Thiesen já em 1957. Em segundo lugar, o saber, o conhecimento de alto nível somado às pesquisas avançadas e o desenvolvimento de tecnologias de ponta a serem produzidas, deveriam ter, de alguma forma, uma destinação social, isto é, reverter de alguma forma em benefício do público direta ou indiretamente influenciado pela instituição. Aliás as iniciativas como a remoção dos moradores da Xácara da Prefeitura, da Pesquisa Sócio Econômica em Dois irmãos e de modo especial, o projeto da “Valorização do Vale do Rio dos Sinos” acima descritos, demonstraram na prática a vontade e a capacidade de reverter para a sociedade em geral do que vinha sendo ensinado e aprendido nas salas de aula. Em terceiro lugar, a universidade deveria fazer o papel de caixa de ressonância sensível aos apelos dos diversos momentos históricos. Na sua proposta organizacional e institucional foi preciso prever caminhos capazes de atender as demandas a se apresentarem no andar do tempo.

Na formulação do perfil da universidade um outro fator não podia ser ignorado. Uma porcentagem considerável de candidatos que se apresentavam, procedentes do interior do Estado e de fora dele, muitos de pouca idade, falta de maturidade, carentes de formação intelectual, egressos de instituições de formação média de qualificação que deixava muito a desejar, não tinham clareza sobre a carreira a seguir no futuro. Outros mudariam de rumo durante os primeiros semestres, o que representava uma preciosa perda tempo além do desperdício de recursos financeiros normalmente escassos. Nesse sentido a Reforma universitária, prevista na Lei 5.540 para entrar gradualmente em vigor na Unisinos a partir do primeiro semestre de 1970, garantiu o suporte legal do projeto sem, entretanto, comprometer o perfil do ideal de instituição de ensino superior, que evoluiu a partir de 1954 com a implantação do Curso de Filosofia oficializado. Numa série de matérias na época publicadas no jornal Vale do Sinos, o público foi informado sobre o tipo de formação acadêmica e profissional que teria à disposição frequentando a Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Todos os alunos, independentemente do curso profissional futuro pretendido passariam obrigatoriamente pelo Ciclo Básico contando 20 créditos. Esses se somariam mais tarde ao número de créditos exigidos pelo respectivo curso profissional. Por ex., de um curso de 240 créditos, 20 eram obrigatoriamente do Ciclo Básico comum a todos os cursos em andamento ou a serem criados no futuro. Na versão original, portanto, os 20 créditos do Ciclo Básico eram pré-requisito obrigatório para matricular-se em algum curso profissional. Contava com 4 disciplinas obrigatórias e uma opcional. Obrigatórias foram: Antropologia, História do Pensamento Humano, Lógica e Metodologia e Realidade Brasileira, somando 16 créditos. Os 4 outros critérios resultavam da opção pelo Português, Inglês ou Matemática. Com esse formato o aluno entrava “na” universidade e não num curso específico “da” universidade. Essa proposta perseguia vários objetivos. Dentre os que me parecem mais importantes destaco em primeiro lugar a familiarização dos futuros profissionais tanto da área humanística, das Letras, e Artes, quanto da Comunicação, Direito, Ciências Naturais, e todas as essencialmente tecnológicas, com uma cosmovisão da realidade antropológica, histórica, geográfica e cultural no sentido amplo. Pretendia-se alertar que os futuros profissionais em todas as modalidades imagináveis tivessem consciência que não se resumiam em excelentes manipuladores de instrumentos, leis, ou inventores de métodos e tecnologias de ponta, mas, de alguma forma lidando com pessoas humanas e suas circunstâncias. Só para exemplificar. Um economista com essa formação básica entenderia que o fato econômico fundamenta-se em última análise numa pressuposto antropológico, o jurista lidaria com os códigos e legislações como fenômenos históricos criados pela necessidade de os agrupamentos humanos se fundamentarem na regulamentação dos direitos e deveres mútuos. O mesmo valia de algum forma para toda e qualquer profissão pois, o homem vem e ou deveria vir a ser, no final das contas, a razão de ser e o destino das suas conquistas em todos os níveis e áreas.

A opção pelo Ciclo Básico obrigatório para todos os alunos da Unisinos contou com um outro motivo. O universo dos alunos que confluíam para São Leopoldo costumavam ser egressos de escolas de ensino médio, muitas delas, devido às circunstância, de um nível de ensino discutível. Oferecia-se a eles, por isso, três disciplinas optativas de importância fundamental para futuramente exercerem sua profissão: português, matemática e inglês.

Aos dois objetivos citados cabia ao Ciclo Básico uma terceira tarefa, isto é, a convivência durante um semestre ou mais de alunos candidatos às mais variadas opções profissionais. Futuros engenheiros colegas de futuros filósofos; futuros sociólogos frequentando com colegas de História do Pensamento Humano; futuros arquitetos ou jornalistas assistindo preleções sobre Antropologia com colegas que mais tarde seriam historiadores ou sociólogos. Esse convívio evitaria em grande parte a fragmentação e as bolhas herméticas, que infelizmente caracterizam em inúmeros casos a formação acadêmica da juventude tanto nas universidades públicas, quanto nas particulares de hoje. O resultado resumia-se no estímulo de um clima favorável à prática da troca de conhecimentos, respeito à diversidade de opiniões, complementariedade dos conhecimentos, a prática do método interdisciplinar e assim evitar a praga da tirania da hegemonia do politicamente correto, para não dizer a tirania do pensamento único, ou da ideologia dominante, arquivando nos museus da história o autentico conhecimento. Os alemães diriam que as universidades, nem todas, entregam ao mercado profissional técnicos até de alta qualidade - “Kenner” mas pouco se empenham para formar autênticos sábios – “Weise”.

Acrescento mais um motivo da razão de ser do Ciclo Básico. O testemunho de alunos que ainda o frequentaram a lembram. As turmas eram formadas por candidatos aos mais diversos cursos profissionais. Futuros estudantes de Engenharia, Direito, Letras, Filosofia, História, Economia, Arquitetura e outras. Esse contato favorecia a troca de ideias sobre as diversas carreiras acadêmicas, clareava dúvidas sobre a escolha dos cursos e, em não poucos casos, alunos mudavam de opção sem risco de perderem tempo ou dinheiro pois, os 20 créditos faziam parte da soma dos créditos dos respectivos cursos profissionais. Esse convívio numa perspectiva interdisciplinar, foi apontado por ex-alunos da Unisinos como mais uma das justificativas da existência do Ciclo Básico. Num caderno especial publicado no dia 9 de março de 1970 a Zero Hora divulgou o conteúdo curricular e o significado de cada uma das disciplinas do Ciclo Básico no todo da concepção da universidade. Vale a pena deixar registrado um resumo daquele caderno especial da Zero Hora. O excesso de disciplinas e de especialização prematura compromete o sentido unitário da forma dos estudantes do ensino superior. Para de alguma forma evitar que tal aconteça a Unisinos colocou como obrigatória a Antropologia no formato de “Uma Introdução ao Estudo do Homem”, pressupondo que a espécie humana insere-se ontologicamente na natureza mas destaca-se das demais espécies vivas por ser portadora de “inteligência reflexa” e, por issomesmo, em condições de desenvolver culturas e construir uma história em constante renovação, adaptação e evolução. Em outras palavras a compreensão da humanidade no tempo e no espaço. Para uma Introdução ao Estudo do Homem como aqui proposta, os aspectos mais importantes a serem abordados com os alunos resumem-se nos seguintes: A história da vida sobre a terra; O homem e o meio físico; A genética humana, eugenia e evolução; O homem um ser à parte; o homem na era da tecnologia; ética e moral na era tecnológica. A fim de facilitar o acesso a esses conteúdos os professores Reinholdo Ullmann e Arthur Rambo compuseram um manual para subsidiar os alunos.

A segunda disciplina obrigatória do Ciclo Básico vem ser a “História do Pensamento Humano”. A carência de uma perspectiva histórica objetiva, bem estruturada e bem conhecida, causa constantemente nos estudantes desvios e falhas no julgamento dos fatos históricos e deficiência na discriminação dos valores de uma civilização ou de uma cultura. Foi para propiciar uma visão histórica ampla, objetiva, um conhecimento seguro dos fatores que construíram as civilizações e dos fatores negativos que causaram sua destruição, a Unisinos optou por tornar obrigatória no Ciclo Básico a disciplina “História do Pensamento Humano”. Obviamente num semestre não se dispõem nem de espaço nem de tempo para familiarizar os alunos com uma visão a história do pensamento de todas as culturas e civilizações mais importantes. Na prática, dada a extensão da matéria haverá limitação dos tópicos a serem tratados. Na verdade pretende-se oferecer um grande painel da Cultura Ocidental, causas que impulsionaram os ciclos de progresso, estagnação e decadência que se alternaram nos últimos três milênios. Sobre esse pano de fundo forampropostos os conteúdos da disciplina “História do Pensamento Humano”, dividida em 4 partes, começando pela Civilização Clássica” com a presença do Pensamento Greco-Romano na composição da cultura Ocidental; a Civilização Medieval” e seu perfil, e o papel da Igreja na Civilização Medieval, a civilização urbana e a formação das nacionalidades modernas;“Renascsença”; “A Civilização Moderna” com suas características econômicas, Revolução Industrial e Comercial, características sociais como o crescimento da burguesia, características políticas, como o absolutismo, características religiosas como a quebra da unidade religiosa europeia e o significado da Reforma; “A Civilização Contemporânea”: Revolução Francesa e seu significado político-social, o Liberalismo político e econômico, o desenvolvimento cultural dos séculos XIX e XX.

Seguindo o exemplo da Antropologia, os professores José Antônio G. Tavares e Maurílio Ártico organizaram uma coletânea de textos históricos – um ensaio de interpretações através de textos. A primeira edição foi retrabalhada e ampliada numa segunda edição pelos professores Beatriz V. Franzen, Elmar J. M. da Silva, Maurílio Ártico, Miriam Fialkow, Olímpio Remussi e Werner Altmann.

A terceira disciplina obrigatória do Ciclo Básico vinha a ser a Lógica e Metodologia. Tratava-se de uma disciplina familiarizando o estudante com dois conteúdos complementares de importância fundamental para o futuro do exercício de uma profissão qualquer que fosse.

Na Lógica oferecia-se ao futuro profissional a oportunidade de testar a solidez de uma argumentação; técnicas para aprofundar argumentação em concatenações de raciocínios apresentando-os de forma simples e inteligível; métodos para definir e dividir qualquer conteúdo e analisar criticamente as definições e divisões existentes em livros ou compêndios escolares; métodos para inferir a veracidade de afirmações a partir de outras informações apresentadas pela ciência. Todo programa pretende aprofundar os aspectos práticos, funcionais, operacionais do conceito, juízo e raciocínio, com a finalidade de facilitar aos alunos um caminhar rápido e seguro no campo das ciências.

A Metodologia tem como objetivo familiarizar o estudante com práticas para orientá-lo no estudo facilitando uma a leitura proveitosa, anotações em sala de aula e nos estudos pessoais, preparar- se para os exames de conteúdos objetivos, ou ensaios e dissertações, o discurso, a organização de horários de estudo, como estudar matemática, línguas, ciências, etc. Pela Reforma Universitária o Português e a Metodologia do Trabalho Científico, no Ciclo Básico da Unisinos, desempenham um papel de grande importância. A par de uma revisão crítica de todo o processo da expressão, procura-se desenvolver a capacidade de elaborar relatórios, trabalhos científicos, dissertações, teses e por aí vai.

A quarta disciplina obrigatória vinha ser Moral e Cívica exigida como obrigatória pela reforma do ensino. No Ciclo Básico da Unisinos constava como “Realidade Brasileira”. Também para essa disciplina foi elaborado um texto básico para os alunos coordenado pelo prof. Pe. Odelso Schneider.

Somadas às quatro disciplinas obrigatórias contando 16 créditos. O Ciclo Básico oferecia três optativas: Português, Matemática e Inglês. A elas cabia a função de servirem de auxiliares e de preencherem lacunas e deficiências na formação do nível médio. Na formulação do programa pensou-se seriamente em incluir a Matemática entre as disciplinas obrigatórias. E por estranho que possa parecer um dos defensores mais insistentes dessa inclusão foi um prof. de Literatura, argumentando que a Matemática era tão indispensável quanto a Lógica, o Latim e o Grego na formação em cursos de Letras. Por fim a Matemática terminou entre as disciplinas optativas contando 4 créditos para os 20 previstos para completar o Ciclo Básico.

A maioria dos alunos, ao entrar na universidade, imaginaram seguir uma tal ou qual profissão. O período que chamamos acima de “vestibular estendido”, fez com que não poucos tomassem consciência que não era bem aquela opção. Tomaram conhecimento de outras alternativas profissionais subsidiados com o serviço de orientação profissional oferecido pela universidade, decidiram por outra modalidade profissional.

Avaliado sob a ótica desses parâmetros o Ciclo Básico, fez na verdade também o papel de um vestibular estendido, podendo até se prolongar por dois semestres de acordo com as conveniências dos alunos. Muitos alunos, de acordo com suas disponibilidades financeiras e ou disponibilidade de tempo, davam conta dos 20 créditos no primeiro semestre para em seguida ingressar no curso profissional escolhido. Muito poucos foram obrigados a levar dois semestres para completar os 20 créditos obrigatórios do Ciclo Básico. Para tanto foram oferecidos cursos intensivos de todas disciplinas nas férias de verão e no mês de julho. Dessa forma alguém que cursara três disciplinas no primeiro semestre tinha a oportunidade de cursar uma nas férias de verão e outra em julho e no segundo semestre matricular-se no curso profissional de sua preferência.

Não se pode esquecer que o Ciclo Básico atendia também a uma demanda financeira. A procura da nova universidade foi se multiplicando de ano para ano e obrigava os candidatos a obter 20 créditos antes de entrar no curso profissional, garantia uma matrícula maciça e, com isso, um dado importante para o planejamento econômico financeiro da instituição.

No todo da elaboração do projeto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos a consolidação do Ciclo Básico com seu formato original coube-me a mim, em parceria com o prof. Reinholdo Ullmann, sob a orientação do Pe. Marcus Bach. Na reunião do Conselho Universitário reunido para analisar e aprovar a proposta, coube-me a tarefa de detalhar para os presentes o significado de um Ciclo Básico e a proposta das disciplinas para atende-lo. Devida a importância no contexto da formação acadêmica propus que o Ciclo Básico fosse considerado como uma unidade acadêmica com status das então “escolas” ou “institutos” profissionais. A proposta foi aprovada acompanhada da decisão que, sob o aspecto acadêmico, fosse implantado como uma unidade praticamenteautônoma, confiada à responsabilidade de um “coordenador” para cuja função fui indicado. Exerci por pouco tempo a função de Coordenador do Ciclo Básico pois, continuava como chefe do Departamento de História e Ciências Sociais além de ser nomeado Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na composição da alta cúpula da universidade pelo Presidente da Mantenedora (ASAV) , e superior provincial, Pe. Leopoldo Adami. Passei a coordenação da Ciclo Básico para prof. Reinholdo Ullmann. A justiça manda registrar uma homenagem póstuma a esse professor que desempenhou a tarefa por mais de uma década com um autêntico espírito missionário.

Em resumo. O Ciclo Básico foi concebido para oferecer aos estudantes uma visão interdisciplinar abrangente das realidades históricas e circunstanciais em geral, em meio à qual exerceriam futuramente a sua profissão, fosse qual fosse, e, paralelamente evitar uma visão estreita e precocemente bitolada da sua função dentro de um mundo plural, base da diversidade de opções profissionais à disposição no mercado de trabalho. Foi por isso que Unisinos gozava da fama de “universidade funil”, fator que a destacava como fora do padrão das demais instituições de nível superior. A estratégia resumia-se em facilitar o acesso à universidade e depois submeter os estudantes a exigências crescentes na medida que se aproximavam da conclusão do curso escolhido. E o acerto por esse formato rendeu aos egressos dela uma alta vantagem competitiva no mercado de trabalho profissional. Há registros, por ex., de anúncios em jornais do centro do País oferecendo vagas para recém formados em Economia, com a observação, “de preferência da Unisinos”.

Pela sua natureza interdisciplinar no rigoroso sentido do termo, isto é, servir de instrumento de formação de uma cosmovisão colocando a diversidade dos caminhos fundamentados na unidade ontológica do todo, ou então a consciência de que a perenidade perpassa como fio condutor a transitoriedade dos fatos históricos. Ou ainda chamando a atenção que o conhecimento é um só enquanto as doutrinas são múltiplas – “doctrina multiplex, veritas una”. Pela sua própria natureza, portanto, o Ciclo Básico configurava-se como uma unidade que servia de fundamento a todas as demais da universidade.

Mais acima já lembrei que o decreto do presidente Costa e Silva criando a Universidade do Vale dos Sinos foi publicado em 31 de julho de 1969. Nos 4 meses que seguiram a Comissão encarregada do formato acadêmico e administrativo trabalhou, por assim dizer, dia e noite para dar o perfil definitivo, tanto acadêmico, quanto administrativo da instituição. Incontáveis reuniões, não poucas noites praticamente em claro foram dedicadas à estrutura da universidade em seus mínimos detalhes. As reuniões de trabalho não raro terminavam pelas 4h da madrugada, para às 7h. retomar o mesmo ritmo. Numa quarta feira, dia dos meus compromissos com a UFRGS, depois de dormir duas horas embarquei no meu fusca para chegar a tempo em Porto Alegre. Na época não fora construído ainda o viaduto que dá aceso à Av. D. João Becker. O acesso a Br.116 dava- se por um retorno no nível da própria estrada. Depois de uma noite praticamente em claro não percebi um caminhão que vinha de Novo Hamburgo. A colisão foi inevitável. Fui jogado com meu fusquinha no acostamento. Felizmente o resultado resumiu-se na lataria amassada e alguns arranhões sem maior importância. O caminhão sofreu estragos insignificantes e o motorista sem um arranhão. Resolvemos o incidente na maior tranquilidade no Detran onde assumi a responsabilidade e me comprometi pagar o conserto do caminhão. Foi o único acidente de proporções maiores que sofri nos 50 anos que circulei regularmente entre Porto Alegre, o Vale do Sinos, para Santa Catarina e até o Matogrosso do Sul, até resolver não renovar minha carteira de habilitação em 2017.

Em meados de novembro de 1969 o perfil da universidade devidamente alinhavado e burilado estava pronto para ser implantado. A instalação oficial foi programada para o dia 12 de dezembro. O cerimonial contou com a presença do governador do Estado Perachi de Barcelos e alguns secretários com todo o aparato de segurança. Foi presidido pelo superior provincial dos jesuítas, Pe. Leopoldo Adami, no pátio interno dos prédios antigos da Unisinos no centro de São Leopoldo. Na ocasião tomaram posse o reitor Pe. João Oscar Nedel, o vice reitor acadêmico Pe. Marcus Bach, o vice reitor administrativo, prof. José Cinel e os diretores das faculdades e institutos centrais. Concluído o cerimonial da instalação propriamente dito, os convidados dirigiram-se até a Sociedade Orfeu para uma janta solene abrilhantada sem ônus pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) convidada pelo Prof. Alexandre Vertes. O Pe. Urbano Thiesen, o idealizador responsável, infelizmente pouco lembrado em toda a trajetória da realização do seu grande sonho, não participou da instalação da universidade. Encontrava-se hospitalizado com câncer terminal e veio a falecer 3 dias depois, 15 de dezembro. Se há alguém que merece um monumento num lugar de destaque no Campus da Unisinos é o Pe. Urbano Thiesen. Da minha parte, rendo-lhe a minha homenagem póstuma pelo que ele foi como meu professor de História da Filosofia, responsável pelo primeiro curso de filosofia oficializado e embrião da universidade, pela visão do significado do que é uma universidade como polo de produção do conhecimento, geração de tecnologias postas a serviço do desenvolvimento econômico e promoção humana na realidade em que se acha inserida e, por isso mesmo, comprometida.