Da Enxada à Cátedra [ 46 ]

A primeira “preleção” (era a denominação das aulas de então) ficou a cargo de prof. Alarich Schultz, catedrático de botânica. Por sinal um excelente professor tanto pelo conhecimento da sua especialidade quanto pela didática em transmitir os conteúdos e despertar o interesse dos alunos. Antes de começar a tratar dos conteúdos propriamente ditos, dedicou as primeiras horas de aula para oferecer aos alunos uma espécie de dicionário explicando o sentido da origem grega e latina dos muitos termos técnicos que fariam parte do linguajar científico da Botânica. Esse mini dicionário foi extremamente útil para as demais disciplinas e para os alunos que vinham do ensino médio que incluía o latim na época, porém, num nível introdutório e sem noção mínima do grego. Para mim essa aula introdutória foi extremamente gratificante porque me dei conta que o bacharelado em Línguas Clássicas, conquistado três anos antes, me dava subsídios preciosos para transitar com conhecimento de causa na linguagem científica. No primeiro semestre ainda constava a disciplina “Fundamentos e Teorias Biológicas”. O catedrático veio a ser o prof. Romeu Mucillo, de profissão médico. Como a maioria dos professores universitários da época costumavam proferir suas preleções de terno e gravata, protegido por um jaleco branco, o prof. Mucillo aparecia no seu posto de professor catedrático impecavelmente trajado. Esse hábito fez com que os alunos, principalmente as alunas, apostassem para adivinhar com que terno e que gravata se apresentaria na aula seguinte. Guardo na minha memória, como se tivesse sido ontem, a postura impecável, o linguajar nada empolado mas de um nível e precisão na formulação dos conceitos que não deixava nada a desejar. À professora Nídia Lacerda coube a disciplina de Zoologia. Muito esforçada, conhecedora dos conteúdos que lhe foram confiados, conquistou a simpatia dos alunos pela sua simplicidade e a forma objetiva e cordial com que sabia administrar eventuais desacertos de compreensão dos assuntos tratados em aula. Lembro-me de uma ocasião quando eu um dos meus colegas que se assumia como ateu, entramos numa polêmica um tanto agressiva, se não me engano quando estava em pauta a teoria da Evolução. A professora Nídia permaneceu em pé no seu estrado e acompanhou o embate sem interferir. Terminada a munição de um e do outro lado, pediu licença e continuou na sua exposição. O episódio em nada afetou a amizade e entendimento entre meu colega ateu e eu um jovem jesuíta com convicções opostas. Mais tarde como professor na URGS e na Unisinos essa experiência de discordar e, ao mesmo tempo respeitar e não levar para o plano do relacionamento pessoal uma convicção contrária, foi de uma utilidade enorme. Mais abaixo destacarei episódios semelhantes acontecidos em situações as mais diferentes quando do embate de ideias divergentes e em casos menos frequentes, opostas. Ainda no primeiro ano – vale lembrar que o bacharelado em História Natural na época era seriado – constavam no currículo as disciplinas de Mineralogia, Cristalografia e Petrografia. O catedrático foi o engenheiro de minas José Azambuja, conhecido como Juca Azambuja”, como os demais professores um senhor entre os 50 e 60 anos, estatura em torno de 1,90, corpulento, calmo e de uma admirável índole pacífica. Não exercia a profissão de engenheiro de minas. Com dedicação integral ao magistério das disciplinas acima citadas, na Escola de Engenharia e História Natural. Dois professores assistentes lhe davam suporte: Ely Denhardt na mineralogia e cristalografia e o professor de cujo nome não me recordo na Petrografia. É por todos sabido que na década de 1950 os recursos da tecnologia atual utilizados no estudo da formação e estrutura dos minerais, cristais rochas, não passavam de um sonho. Os recursos didáticos reduziam-se a diagramas e modelos desenhados e impressos somados a microscópios e lupas especialmente projetados para essa finalidade com uma visão tridimensional dos objetos. Nas aulas práticas o recurso básico foi o “Diagrama de Wulf”. Cada aluno dispunha do seu. Sobre ele aprendiam a projetar as faces dos cristais e identificar suas propriedades. Para examinar as microestruturas do cristais e rochas em geral recorria-se ao microscópio adaptado a uma visão tridimensional. Da mesma forma a Lupa tridimensional acompanhava qualquer estudioso de petrografia a fim de identificar a estrutura e composição de rochas. As nossas aulas teóricas e práticas foram dadas no complexo da Escola da Engenharia na esquina da Sarmento Leite, Osvaldo Aranha e praça Argentina. Cada vez que me lembro daquelas preleções surge na minha memória a figura grande de corpo e maior ainda de dedicação, um autêntico ‘boa gente”, do Juca Azambuja, em pé no estrado explicando os conteúdos da aula, reforçando-os com desenhos a giz no quadro negro. E que desenhos! Perfeitos como saídos de um programa de computador de hoje!

A geologia, junto com a biologia, a botânica e a zoologia, completavam as quatro pilastras mestras que formavam o arcabouço do bacharelado em História Natural. Não há necessidade de lembrar que a mineralogia, a cristalografia e a petrografia, acima mencionadas fazem parte do vasto campo da geologia. Na prática, porém, nos foram oferecidas quase como que paralelas. Não cabe aqui entrar nos detalhes dessa situação prática. O fato é que a geologia veio a ocupar um lugar de destaque pois, em abril de 1957 foi instalado o bacharelado em geologia na UFRGS. O corpo docente da cátedra de geologia da História Natural, com seu titular Irajá Damiani Pinto e a assistente Yvonne Sanguinetti e as instalações e laboratórios localizados no mesmo prédio, serviram de ponto de partida para o funcionamento do Curso de Geologia. Aos dois docentes já mencionados somaram-se em seguida os professores Darcy Closs, Amneris Cauduro, Patrick Delaney e outros. O recém oficializado bacharelado em geologia, instalado nas mesmas dependências e com o mesmo corpo docente atuando também na História Natural, resultou numa estreita relação entre os professores e os alunos dos dois cursos. Os conteúdos da área de geologia foram ministradas aos alunos dos dois cursos reunidos na mesma sala. O contato com a mineralogia, a cristalografia, a petrografia e agora com a geologia e nas suas diversas subáreas, atraíram cada vez mais meu interesse. Abandonei a minha escolha ao iniciar o curso de me especializar em genética, para concentrar meus interesses na geologia. Para essa guinada foi decisivo, além da área de conhecimento em si, a vinda dos Estados Unidos do prof. Patrick Delaney. Como eu falava sofrivelmente o inglês e ele precariamente o português, a primeira aproximação se deu no nível da língua. A isso veio somar-se o crescente interesse pela geologia de modo especial a observação direta em campo. Em sendo a observação e pesquisa de campo uma das especialidades do prof. Delaney e eu conhecia razoavelmente o vale do Gravataí e do Sinos, ele me convidou para acompanhá-lo nessas excursões. Aceitei na hora o convite levado pelo duplo interesse de apropriar-me do conhecimento da história e formação geomorfológica da região e de cobro aperfeiçoar o meu inglês. Havia mais um detalhe que favoreceu essa parceria. Ele era católico descendente de imigrantes irlandeses e eu jesuíta, numa época em que os membros dessa Ordem gozavam de um grande prestígio especialmente nas universidades de alto nível sob sua jurisdição e responsabilidade nos Estados Unidos. Durante um bom tempo, não me recordo exatamente quanto, embarcávamos num jeep ou numa camionete com tração nas quatro rodas. Descia até a nossa sede na Paulo Gama, guardava a batina e o chapéu clerical no gabinete do prof. Delaney e felizes partíamos para o campo. Para começar percorremos os arredores de Porto Alegre para depois, avançar até os campos de cima da Serra e terminar no Taimbé. O foco das observações centrava-se na geomorfologia e na geo-história da região. Nunca esquecerei essas saídas para o campo. Além de aperfeiçoar o meu inglês o mais importante foi conhecer “in loco” os resultados da dinâmica geomorfológica que moldou a fisionomia da paisagem dessa parte do sul do Brasil. Uma autêntica universidade ao ar livre, sem jaleco, se retórica de cátedra, sem recurso a amostras de rocha acomodas em museus especializados. De posse das observações feitas, o prof. Delaney propôs montarmos uma maquete da estrutura geológica do planalto tendo como inspiração o Taimbé que exibe nos paredões do canion os sucessivos derrames formando rochas de basalto de cores e textura diferentes. Fomos procurar em diversas lojas especializadas os componentes que misturados reproduzissem a densidade e as cores dos diversos derrames de basalto. Só me lembro que o açúcar foi o mais volumoso. Dos demais não me recordo. Para a montagem e solidificação da maquete utilizamos um aquário de bom tamanho. Não sei que fim levou aquela maquete, se é que não foi extraviada nas posteriores mudanças de sede tanto da História Natural quanto da Geologia. O prof. Delaney ensinou-me como desenhar perfis tridimensionais de paisagens usando como base mapas do Serviço Geográfico do Exército disponíveis no quartel do bairro da Serraria em Porto Alegre. Naquele remoto 1957, 1958 e 1959, não se dispunha obviamente de toda parafernália eletrônica, os satélites e demais recursos de hoje para dar conta desse tipo de mapas. Acontece que na década de 1950 o Serviço Geográfico do Exército decidiu mapear todo o território nacional com o que de mais atualizado se dispunha na época. Instalaram na barriga da fuselagem de um Convair um aparelho filmador e, sistematicamente foram filmando em faixas as diversas regiões do País. Com base nos filmes foram desenhados os mapas contendo as curvas de nível de 100 em 100 metros de altitude. Buscamos esse tipo de mapas referentes ao Rio Grande do Sul e valendo-me deles desenhei o perfil do vale do rio Uruguai na altura de Irai. Esse tipo de exercício não fazia parte das tarefas obrigatórias previstas no currículo. Fascinado pela geologia e a infinidade de paisagens moldadas no decorrer de milhões e bilhões de anos pelas forças telúricas, passava feriados inteiros e fins de semana em vigílias noturnas madrugada adentro nesse tipo de exercício. Não me tornei geólogo de profissão por razões que pretendo apontar mais abaixo, embora convites não faltassem, inclusive da Petrobras, em rápida fase de consolidação e carente de recursos humanos nativos. A justiça manda deixar registrado aqui uma nota de gratidão a esse grande mestre, amigo e parceiro que foi para mim o prof. Patrick Delaney. Depois de formado em História Natural e Geologia, nunca mais nos encontramos mas guardo na minha memória aquela figura de um homem jovem, bem apessoado, dedicado inteiramente à sua missão de mestre abrindo os olhos dos alunos para a maravilhosa e engenhosa arquitetura do planeta terra, “nossa casa”, nossa “mãe e pátria”. À mineralogia, à cristalografia, à petrografia, à geomorfologia física, seguiram semestres de Geologia Histórica e Paleontologia. O conteúdos da disciplina de Geologia Histórica ficaram a cargo da profa. Amneris Cauduro. Muito sistemática transmitiu aos alunos uma visão sintética da sequência e das características das eras e respetivos períodos da história geológica e biológica da terra. Guardo uma grata recordação dessa docente discreta, competente e avessa a qualquer tipo de exibicionismo. Coube ao prof. Darcy Closs a disciplina de Paleontologia. Recém regressado da Alemanha com doutorado nessa área. Esbanjava o entusiasmo característico dos jovens professores recém laureados com um título de doutor, uma raridade na época no ambiente universitário brasileiro.

Alonguei-me um pouco mais falando da minha formação na área da geologia na qual pensava em me especializar e fazer carreira como professor e pesquisador. Adquiri uma série de obras básicas, que mais tarde cedi para a biblioteca setorial da Geologia da Unisinos. Infelizmente esses livros foram mais uma vítima do incêndio que destruiu os prédios localizados na quadra onde foi construídaanovaprefeituradeSãoLeopoldo.Mas,vamosàsdemaisdisciplinasconstantes no Curso de História Natural. Mais acima já comentei a Botânica sob a batuta do prof. Alarich Schultz. Também já lembrei a Zoologia sob a responsabilidade da profa. Nidia Lacerda. Falta a Fisiologia a cargo do prof. Celso Jaeger e a Genética e Evolução com a profa. Euterpe Cauduro Jaeger e o prof. Antônio Cordeiro e Flávio Levgoy. Mais acima já lembrei que sentia uma forte simpatia pela genética. O flerte com essa especialidade não prosperou em primeiro lugar porque descobri que a geologia oferecia na época um potencial muito mais amplo e mais satisfatório para minha curiosidade pelo lugar que cabia ao homem como espécie ontologicamente radicada na natureza e, ao mesmo tempo, o lugar ou não lugar de Deus na complexidade do planeta terra, a “nossa casa”. Em segundo lugar pesou, e não pouco, o desempenho da professora responsável pela disciplina. Acabara de voltar dos Estados Unidos depois de um estágio de aperfeiçoamento em genética e não conseguiu-me entusiasmar pela especialidade. Mas, havia ainda um motivo mais complicado que arrefeceu meu interesse por esse campo de pesquisa. Naquele momento a universidade ainda não dispunha de um laboratório de pesquisa adequadamente equipado para aprofundar as pesquisas e por isso o que foi oferecido não passava dos dados disponíveis no manual de Sinnott – Dunn - Dobzhansky – “Principles of Genetics”. A genética constava como uma espécie de área subsidiária do estudo da Evolução sob a responsabilidade do prof. Antônio Cordeiro. Para ele o Darwinismo tinha resposta para “o como” de todos os eventos que a vida do nosso planeta passou. Gostava de uma polêmica com cientistas que não apostavam todas as fichas na solução darwinista, especialmente a versão defendida por Julião Huxley e Ernest Haeckel. Chegou organizar um debate nesse sentido com meu irmão, o Pe. Rambo, catedrático de Etnografia e Etnologia, na presença dos alunos que frequentavam comigo aquela disciplina. Guardo até hoje a impressão negativa daquele embate de ideias nitidamente conduzido para constranger o convidado. Recorreu à velha recozida e regurgitada interpretação literal do Gênesis, superada 15 anos antes pela Encíclica Divino Afflante Spiritu de Pio XII e pela Encíclica Humani Generis de 1950 do mesmo papa. O Pe. Rambo deixou muito clara nas suas aulas de Ciências no Colégio Anchieta, nos seus escritos, palestras e conversas informais a sua defesa do evolucionismo, remetendo para o criacionismo questões como alma humana e outras nesse nível bem de acordo com as duas encíclicas que acabamos de lembrar. Mas, enfim, foi um episódio típico, como inúmeros outros que ainda acontecem hoje, em que cientistas de um lado e filósofos e teólogos do outro não abrem mão dos seus pontos de vista convencidos do acerto dos seus arrazoados. Parece que com o que anotei sobre o Curso de História Natural, dei uma ideia do formato, da abrangência e da visão interdisciplinar que o portador do título de bacharel levava para a vida. Salvo melhor juízo, tenho a impressão qua a fragmentação posterior desse autêntico programa com o objetivo de compreender a complexidade da natureza numa perspetiva interdisciplinar vista a partir de todos os seus ângulos, perdeu muito do seu potencial para contribuir na construção do conhecimento. Para mim pessoalmente os conhecimentos da natureza que foram oferecidos nesse bacharelado foram de um valor difícil de avaliar quando, por razões que lembrarei mais abaixo, a minha docência e pesquisa foram direcionados para a Antropologia, a História e a Filosofia. Se for para lembrar um senão no Curso de História Natural apontaria o fato de termos tido pouca oportunidade para observarmos a natureza in loco com destaque para a botânica a zoologia e a geologia. Eu fui brindado com a rara felicidade de percorrer o vale do Gravataí e do Sinos em companhia do prof. Patrick Delaney, a fim de estudar a geomorfologia da região, como já lembrei mais acima. A lacuna a que me referi há pouco seria preenchida para mim pessoalmente pelas visitas por dias seguidos, durante o período de férias, acompanhando meu irmão Balduino e por vezes também o Pe. Luiz Sehnem, em suas coletas na região de Cambará, mais exatamente no Taimbézinho. Mais abaixo voltarei com maiores detalhes a essas jornadas científicas pela natureza. Em dezembro de 1959 aconteceu a solene formatura dos bacharéis em História Natural no salão de atos da reitoria da UFRGS, com a presença do arcebispo D. Vicente Scherer que nos brindou com um solene cochilo afundado na sua poltrona na mesa de honra, ao lado do meu irmão Pe. Balduino, o reitor e outras autoridades acadêmicas cujos nomes não guardei. Depois de concluídos os atos protocolares na reitoria, obviamente seguiu uma confraternização entre os recém formados e seus familiares no saguão do salão de atos. Junto com meu primo Odilo também entre os formados subimos até o Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias, onde o reitor nos esperava com comes e bebes em comemoração à nossa formatura. A essa altura, com 29 anos de idade, já registrava no meu currículo 4 bacharelados: Línguas Clássicas, Filosofia, História Natural e Geologia. No ano seguinte começaria a Licenciatura em Teologia. Mas, esse capítulo fica para depois.

Com as anotações que acabo de registrar dou por concluídas as lembranças que guardei na memória acontecidas um pouco mais de 60 anos passados ao conquistar o bacharelado em História Natural e Geologia.

Da Enxada à Cátedra [ 45 ]

Bacharelado em História Natural na UFRGS

Concluído o tirocínio dos 3 anos de Filosofia encontrava-me em condições de partir para uma nova etapa da formação como jesuíta, isto é, 3 anos de “magistério”. Em outras palavras. Os egressos da Filosofia costumavam ser destinados para as mais diversas instituições de ensino a cargo dos jesuítas. O meu destino foi o Colégio Anchieta em Porto Alegre, então situado na rua Duque de Caxias, com a dupla missão de ministrar aulas no colégio e frequentar o Curso de História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Em fins de novembro veio a mudança para o Colégio Anchieta. Levei na minha bagagem o microscópio Baush&Lomb, presente do Carlos Roberto Cirne Lima, como já mencionei mais acima, além da máquina de escrever Erika cedida pelo Pe. Balduino, também já referida. Para morar foi-me indicado um quarto no terceiro andar logo abaixo do telhado com a janela para a rua Duque de Caxias. Foi o meu canto durante os três anos que morei no Anchieta. Não havia algazarra na rua durante a noite nem ronco de automóveis pois o trânsito era tranquilo e muito distante da loucura de hoje, mais se 60 anos depois. A única perturbação, se é que se pode classificar assim, vinha da passagem do bonde pela rua Duque de Caxias. Bem na frente da minha janela havia uma conexão dos trilhos e cada passada de bonde ouvia-se um estalo quando as rodas passavam por aquele ponto. Par evitar confusão no registro relativos ao magistério no colégio e a frequência as preleções na universidade no bacharelado de História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, começo pelo segundo.

Logo depois de me instalar e tomar conhecimento das dependências do colégio e me familiarizar com a rotina diária, o “prefeito geral”, Pe. Emílio Hartmann convocou-me para integrar a comissão dos exames orais, se não me falha a memória da 3a série do ginásio, sob a presidência do prof. Agostinho Thiesen. Essa primeira tarefa ocupou uma semana inteira. Concluídos os exames e as solenidades de encerramento com a colação de grau do ginásio e do Colégio – Científico e Clássico, chegara a hora de partir para as férias na casa de retiros que os jesuítas mantinham no Morro das Pedras, no sul da Ilha de Santa Catarina, bem em frente à Ilha do Campeche. A maioria optou por enfrentar a viagem de ônibus na empresa “Anjo da Guarda” que cobria o itinerário entrePorto Alegre e Florianópolis, levando em torno de 20 horas. Não se pode esquecer que na época todo o trajeto a partir de Gravataí, acontecia em estrada de chão batido somado a todos os inconvenientes e contratempos imagináveis nessas condições. Meu colega Ivo Etges e eu optamos por uma outra modalidade na época oferecida pela FAB. Além de aproveitar a oportunidade de voar pela primeira vez de avião, o serviço era gratuito. Em resumo. Tratava-se do transporte do pessoal da força aérea e seus familiares. Sobrando vagas admitiam para o voo civis, previamente inscritos numa lista de espera. Ocorrendo uma vaga avisavam o primeiro ou os primeiros para se apresentarem para o embarque. Essa estratégia implicava que os candidatos ficassem atentos para a qualquer momento serem avisados da existência de uma vaga em algum voo. Deixamos a nossa bagagem pronta e esperamos até que recebemos o comunicado que havia duas vagas no voo a Florianópolis no dia 21 de dezembro de manhã às 7h. Levantamos cedo, pegamos a bagagem que não era grande coisa e um táxi nos levou até o aeroporto Salgado Filho. Lá nos esperava um velho DC 3 com uma aparência lá não muito agradável ao lado dos sempre com a pintura impecável aviões de carreira da VARIG. A primeira surpresa foi que, em vez de poltronas alinhavam-se ao longo da fuselagem dois compridos bancos de alumínio, munidos de cintos de segurança e jornais velhos sobre o alumínio. Mas tudo bem. Valeria pela aventura. A segunda surpresa veio quando o piloto acionou o arranque dos motores. Um deles pegou sem problema e continuou rodando. O segundo arrancou mas, cuspindo fumaça pelo cano de descarga empacou e não houve como fazê-lo arrancar de novo. O piloto não perdeu tempo. Chamou um dos integrantes da tripulação e pediu para ir até as oficinas da VARIG e conseguir um distribuidor recondicionado. O velho foi trocado pelo recondicionado numa operação que levou mais de meia hora. Tudo no seu devido lugar o piloto acionou o arranque e o motor respondeu na primeira tentativa. Rolamos até a pista e o velho DC 3 gemendo e chacoalhando por todos os poros decolou sem problema e foi ganhando altura. Pela primeira vez na vida contemplei o mundo do alto. Uma visão magnífica deslisava sob as asas do velho DC 3, provavelmente veterano de muitas peripécias anteriores. Primeiro a grande planície do rio Gravatai, depois do médio e alto Rio dos Sinos, emendando na encosta da Serra em Direção a São Francisco de Paula. O campo que me era familiar por terra desde as férias no Rincão dos Kroeff, exibia toda a sua majestade, beleza e multiplicidade de descampados, capões sobressaindo as araucárias sobreviventes do machado dos madeireiros, a borda do planalto coberta de floresta escura. Quando voávamos na altura de Cambará o piloto avisou que decidira mudar de rota, isto é, descer a serra e continuar a viagem perto da praia, com observação que naquela rota dispunha de mais locais propícios para um eventual pouso de emergência. Essa decisão naturalmente nos deixou apreensivos principalmente a nós dois voadores de primeira viagem. Felizmente não aconteceu nenhum contratempo e lá pela meia manhã pousamos no aeroporto de Florianópolis. Como a distância até a casa de retiro do Morro das Pedras não é grande e nós éramos jovens de 26 e 27 anos, arregaçamos as batinas e fomos caminhando para chegar no destino pouco antes do meio dia.

A Casa de Retiros localiza-se num promontório que avança sobre o mar aberto, a base formada por enormes blocos de granito avançando para dentro do oceano, cobertos na parte submersa por milhões de mexilhões. Na frente, a poucos quilômetros oceano adentro a paradisíaca ilha do Campeche, à direita, mais para os fundos um arco de montanhas de boa altura coberta com mata virgem e ao pé uma praia também em forma de arco, naquela época totalmente isolada, nas duas extremidades possantes blocos de granito entrando mar adentro. Poucos aventureiros acampavam e pescavam naquele pedaço de paraíso. Mais abaixo volto àquele recanto delicioso com seu arroio de montanha cristalino descendo do alto e milhares de palmitos sobressaindo à vegetação nativa. À esquerda quem sobe ao Morro das Pedras a superfície da Lagoa do Pery cintilava como um espelho de prata refletindo a moldura de morros e florestas que a emolduravam pelos fundos. Os morros dos fundos da lagoa prolongavam-se atrás da Casa de Retiros e subiam a uma considerável altura também tomados pela mata virgem. Em resumo esse foi o cenário em que gozei duas semanas de férias especiais. Elas se repetiriam mais tarde no mesmo cenário como estudante de Teologia. Para evitar repetições remeto para as anotações das férias no mesmo local de 1960-1961 e 1961-1962, as lembranças em detalhes das inúmeras ocasiões e modalidades para cultivar a “mens sana in corpore sano”, isto é“a mente sadia num corpo sadio” naquele recanto do mundo hoje profanado e desfigurado pela fúria da voracidade imobiliária a serviço de um turismo de lazer predatório. Com isso concluo as lembranças das férias de 1956- 1957. Lá pelo dia 10 de janeiro de 1957 estava na hora de voltar para o Colégio Anchieta e me preparar para o vestibular de História Natural da UFRGS em fevereiro. Para a volta optei pela mesma modalidade da ida: a carona num avião da FAB. Desta vez meu companheiro foi o Pe. Marcus Bach. Não houve inscrição em lista de espera. Fomos de manhã cedo até o aeroporto e esperamos até que um avião com destino à base aérea de Canoas dispusesse de dois lugares para civis. No meio da tarde embarcamos num Beach Kraft da força aérea e, em questão de uma hora e pouco pousamos em Canoas. Embarquei num ônibus que me deixou no centro de Porto Alegre depois subi até o Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias. A parir do dia seguinte dediquei-me em tempo integral na preparação para o vestibular para entrar na UFRGS e conquistar o meu terceiro bacharelado, isto é, o de História Natural que, no formato de hoje, abrangia o que englobava a Biologia, Botânica, Zoologia e Geologia. O vestibular consistia numa prova escrita com questões referentes às Ciências Naturais, uma prova de português e outra de inglês. Na semana seguinte esses mesmos conteúdos foram objeto de provas orais. Para falar a verdade, terminados os exames fui para o meu sótão no Colégio Anchieta com uma péssima impressão do meu desempenho. Cheguei a chorar com a possibilidade de reprovação e a consequente frustração dos meus sonhos. Mas, qual não foi o meu espanto quando da publicação dos resultados. Não quis acreditar. Lá constava que fora aprovado com a segunda média mais alta. Meu primo Odilo (in memoriam) ficara com o terceiro lugar. Os dois pegamos o ônibus e fomos festejar o resultado inesperado num dos matinhos perto do lago do Cristo Rei em São Leopoldo. Na semana seguinte cumprimos os rituais da matrícula e na primeira semana de março de 1957 teve início o primeiro semestre na ala logo à direita de quem vem pela Osvaldo Aranha e dobra para a Paulo Gama.

Da Enxada à Cátedra [ 44 ]

Já que estou recordando férias passo às recordações do período de “férias maiores” entre o segundo e o terceiro do bacharelado em Filosofia, entre dezembro de 1955 e janeiro de 1956, gozadas novamente no Rincão dos Groeff. Dessa vez o “bedel de férias” foi um colega meu. Sem compromissos resolvi aproveitar ao máximo as oportunidades que aquele cenário único oferecia. Costumava levantar cedo e ao clarear do dia o Pe. Marcus Bach e mais algum colega tomávamos um banho na água fria e cristalina de uma cascata a meio quilômetro distante na beira do campo. Rejuvenescidos com aquela ducha gelada, assistíamos à missa num depósito fechado com uma porta de entrada e duas aberturas só com tampões. Durante uma daquelas missas uma vaca resolveu participar. Enfiou a cabeça pela abertura e nos brindou com um daqueles mugidos de despertar defunto. Depois de dar a sua contribuição no ato litúrgico foi pastar tranquilamente no campo próximo à capela improvisada. Em companhia de um ou dois colegas saíamos todos os dias para vasculhar a floresta virgem na beira do campo e na encosta do planalto. Três magníficas cascatas costumavam servir de ponto de parada para tomar um lanche e às vezes para almoçar. Cada dia nos esperava com uma surpresa. Naqueles idos de 1955 para 1956 aqueles campos, capões isolados e mata virgem na borda permaneciam quase intatos. Apenas manadas de gado engordavam naquelas passagens nativas, porém, sem agredir a beleza da natureza. Muito pelo contrário, acrescentando-lhe mais um elemento significativo que a partir de meados do século XVII transformou os Campos de Cima da Serra na historicamente conhecida e lendária “Vacaria dos Pinhais. Um senão de não pouco significado paisagístico e ecológico não pode ser esquecido. Nos 10 anos que precederam as nossas férias no Rincão dos Groeff, centenas, milhares e atrevo- me a afirmar, milhões de araucárias, copas encostando umas nas outras, formando como que um guarda-chuva cinco ou mais metros acima do mato branco, deixaram de existir. Por toda a parte nos capões e, de modo especial, na faixa de floresta na beira do planalto, os esqueletos de nós das copas deixadas para trás testemunhavam a sanha e ganância dos madeireiros. Em questão de uma década, salvo bolsões dispersos, a majestade das florestas de araucárias foi varrida da paisagem do planalto. Reboques e mais reboques parecendo carreiros de formigas transportando tábuas desciam de São Francisco de Paula em direção ao porto de Porto Alegre. O Pe. Balduino chamava-os de “coveiros dos pinhais”. Hoje protegidos pelas leis ambientais os novos complexos de araucárias vão-se recuperando, pelo menos em parte. Uma mancha intocada da floresta original pode ser observada na encosta à direita onde o Taimbé muda de direção. Exemplares isolados podem ser observados em locais onde não foi impossível tirá-los como na descida do Taimbé perto da sede do parque.

Camufladas nos tufos mais altos do capim do campo as perdizes e perdigões escondiam seus ninhos. Chegando perto levantavam voo e, desenhando um arco elegante, aterrissavam e sumiam no capim 30 ou mais metros adiante. Encontravam-se por toda parte tocas de tatu. Ao escurecer saíam dos esconderijos para se alimentarem de minhocas e frutinhas espalhadas pelo chão da mata. Sabendo onde se escondia a toca e flagrando seu inquilino esgueirando-se pelo campo ou no campo aberto, de preferência em noites de luar, era fácil capturá-lo. Bastava alguém ficar de espreita ao lado da toca com um saco colocado na entrada e os demais surpreender o tatu. Este corria direto para a toca e caía na armadilha. Lembro-me de ter capturado um deles e levado para São Leopoldo onde terminamos por soltá-lo onde hoje se encontra o campus da Unisinos, então coberto de eucaliptos com alguns restos de mata nativa. Numa dessas explorações nos deparamos com um casal de filhotes meio crescidos de cachorros selvagens conhecidos como “raposas” pelos colonos e fazendeiros. Estes também nos acompanharam na volta das férias. Depois de já bem crescidos foram soltos também no mesmo lugar do tatu. Mais tarde foram seguidamente vistos ao entrarmos naqueles refúgios onde inclusive havia um córrego com uma cascatinha e um belo bambusal onde hoje passa a avenida e está localizada a rodoviária do campus e o estacionamento da Escola de Humanidades. Acontece que a captura de espécies silvestre não acabou com as que acabo de citar. Certo dia, ao explorar a mata nos fundos das benfeitorias da fazenda topamos com uma enorme caneleira do mato com um oco na altura de uns 3 metros. Do oco saiu voando um tucano e dentro dele ouvia-se a algazarra dos filhotes. Estes não tardariam em abandonar o ninho e levar sua vida autônoma naquele mundo maravilhoso e cheio de surpresas. Na véspera do término das férias fomos recolher os filhotes para levá-los também até São Leopoldo. Em casa montamos uma gaiola bem grande e os tratamos até estarem condições de se defenderem por conta própria. Depois de um mês, foram soltos naqueles bosques que ainda hoje estão parcialmente preservados à direita da subida da Avenida Unisinos partindo da estação do trem. No lugar do Bairro Cristo Rei a área servia para a pastagem de vacas e plantação de milho. Mas, não terminaram por aí as nossas descobertas de animais nativos. No oco de uma outra árvore centenária localizamos um ninho de macucos com filhotes quase maduros para a vida autônoma. Levamos dois deles para o Cristo Rei. Instalamos um cercado de bom tamanho para acomodá-los em companhia de um inambu capturado numa armadilha. Todos eles foram mais tarde também soltos na área onde se encontra hoje o campus da Unisinos. Não tenho a mínima ideia do que aconteceu com eles depois disso. A última captura de que me recordo foi de um filhote de papagaio dos pinheirais encontrado no oco de uma araucária a uma altura de 10 ou mais metros. Foi preciso laçar um galho da árvore para subir até o ninho. Esse papagaio seria por meses o meu companheiro de quarto. Dormia dentro do meu guarda-roupa e, quando escrevia à máquina adorava pousar no carrinho e viajar inúmeras vezes ida e volta tentando pegar as letras com o bico, enquanto datilografava algum texto.

Naquele período de férias também planejamos um acampamento de dois ou três dias na praia do Barco. Desta vez quem nos levou foi o grande caminhão do Cristo Rei e o motorista o irmão Anselmo Renner, já lembrado mais acima. Do acampamento em si na praia não guardei nada de especial na memória. Na volta, ao chegarmos ao campo já no planalto fomos surpreendidos por uma dessas chuvas pesadas de verão. A estrada de chão batido transformou-se num lodaçal escorregadio e, como anoitecia, o faro do irmão Renner aconselhou não continuar a viagem no escuro da noite. Armamos uma barraca e estendemos uma lona sobre a carroceria do caminhão e passamos a noite ao som da sinfonia da natureza que ecoava, ao mesmo tempo, do campo, da floresta nas bordas e descidas do planalto e do fundo escuro do vale das Três Forquilhas. Durante a noite parou de chover e na manhã seguinte, 6 de janeiro dia dos Reis Magos, o caminhão escorregando e derrapando em cada curva, terminamos sem maiores contratempos, no Rincão dos Groeff. Passamos o dia recolhendo e acomodando os nossos pertences no caminhão para no dia seguinte voltarmos para São Leopoldo.

Não me lembro mais com exatidão se foi no segundo ou terceiro ano de filosofia uma flotilha de caças a jato americanos de última geração percorreu diversos países da América do sul, fazendo demonstrações e, obviamente propaganda para o seu país. Acompanhava-os um gigantesco “Globmaster” de suporte ainda com motores convencionais de hélice. O primeiro piloto a romper a barreira de som em 1947, Chuck Yeager, integrava a flotilha. O acontecimento foi amplamente anunciado pelos jornais e rádios da época. Como eu alimentava um autêntico fascínio por avões a jato, obtive autorização de ir até a base aérea de Canoas em companhia do colega Eládio Monteiro que fora mecânico de manutenção da FAB durante a guerra, fizera curso de treinamento nos Estados Unidos e depois serviu durante vários anos a Panair como mecânico de aeronaves. Resolveu então entrar na Companhia de Jesus no mesmo ano que eu. Tornou-se meu amigo e com ele treinei meu inglês que não passava muito das noções elementares aprendidas em Salvador do Sul e num curso oferecido de três dúzias de lições impressas compilada pela Editora Langesnscheidt, ainda antes da era do linguafone. Resolvemos fazer o trajeto de São Leopoldo até Canoas a pé de batina e chapéu clerical. Na altura do então não existente viaduto de Sapucaia, um caminhão parou no acostamento um pouco adiante e nos convidou para uma carona. Desembarcamos em Canoas na entrada para a base aérea e a sorte de novo nos favoreceu. Um senhor que também se dirigia para a base ofereceu carona até o destino. Aconteceu que o Eládio encontrou entre o pessoal da base um ou outro conhecido do tempo em que servira na FAB. O enorme “Globmaster” de apoio já esperava e não demorou fizemos amizade com um dos oficiais da aeronave, católico e chegado aos jesuítas na sua cidade natal nos Estados Unidos. Explicou as características daquele avião, sua função na Força Aérea Americana, a potência dos 4 motores, sua capacidade de carga e transporte de tropas. Não nos foi permitido entrar no avião, apenas uma espiada pela porta para o seu interior. Lá pelo fim da manhã apareceu no horizonte a flotilha de jatos. Não me recordo exatamente quantos foram. Num voo rasante a pouca altura acompanhado do uivo mesclado com o estrondo e o ronco característico desse tipo de motor, passaram por cima da base para terminar exibindo um espetáculo aéreo de parar o fôlego. Depois de pousar alinharam-se com o avião de apoio e os pilotos desembarcaram para o almoço. Meu colega Eládio saudou um deles e ao perceber que ele falava bem o inglês terminou nos levando até o seu jato e permitiu que dessemos uma espiada na cabine com seus instrumentos de navegação. Lá pela meia tarde um visitante de São Leopoldo nos ofereceu carona para voltar para casa.

Da Enxada à Cátedra [ 43 ]

Férias em São Francisco de Paula

Mais acima já lembrei que as férias maiores, isto é, as duas primeiras semanas ou um pouco mais, incluindo as festas de fim de ano, com término em 6 de janeiro, dia dos Reis Magos, costumavam ser gozadas em algum lugar especial. Durante o bacharelado em Línguas Clássicas o local escolhido foi o Santuário de Caravaggio. O local das férias no período da Filosofia foi a fazenda da família Groeff no interior de São Francisco de Paula, na descida para a Serra do Umbu, também conhecida como o Rincão dos Groeff. Localizada na extremidade sul dos Campos de Cima da Serra em torno de 900 metros de altitude. O campo natural com seus típicos capões de mato branco e araucárias que tinham escapado do machado dos madeireiros, ocupava maior parte da área. A mata fechada que, pelo oeste descia encosta abaixo em direção a Riosinho e Rolante, no sul e oeste em direção a Santo Antônio da Patrulha e Osório, cobria as bordas do Rincão dos Groeff. Com as nascentes no campo desciam quatro ou cinco arroios de montanha de volume considerável e água cristalina, saltando em cascatas paradisíacas da borda do planalto para os vales cobertos de floresta virgem praticamente intata. A queda livre da cascata do Napoleão, a mais volumosa e mais alta, media em torno de 100 metros. As demais desciam pelos vales rochosos formando sequências de mais quedas de menor altitude. Instalamo-nos na casa de moradia, nos depósitos e demais benfeitorias acomodados junto a um belo arroio e uma ponta da mata fechada que subia até o alto vinda da encosta que vai dar no rio dos Sinos na altura de Rolante. O local nos foi oferecido pela mãe de um dos meus colegas, o Paulo Englert, da família Groeff, herdeira daquela propriedade. Para o meu gosto aquele foi o cenário ideal para arejar a cabeça depois de um ano de preleções filosóficas em latim sobre lógica, ontologia, metafísica, ética, cosmologia e por aí vai.

Para mim pessoalmente, porém, aquelas férias, final de 1954 e começo de 1955 exigiram um esforço que me levou quase à exaustão. Acontece que o reitor do Cristo Rei designou-me como “bedel das férias”. Explico rapidamente em que implicava essa incumbência. A figura do bedel fazia parte das instituições acadêmicas também leigas. Suas atribuições resumiam-se em cuidar, por ex., que a sala de aula da sua turma estivesse arrumada, limpa, o quadro negro com giz, mapas no seu lugar etc. Ao bedel de férias, entretanto, cabia providenciar tudo que fosse necessário para as duas semanas. A grosso modo reunir os mantimentos básicos não perecíveis e embalá-los para o transporte no caminhão, roupa de cama, utensílios de cozinha, louça, talheres, etc., etc. E por último acomodá-los no caminhão de tal maneira que sobrasse lugar na carroceria para instalar os bancos para os “passageiros”, isto é, para acomodar as cerca de duas dúzias de candidatos às férias. Passei uma boa parte da noite da véspera da viagem carregando caixas, sacos e pacotes distribuindo-os racionalmente na carroceria do caminhão. Obviamente contei com a colaboração de colegas, entretanto, a responsabilidade era toda minha e se alguma coisa desse errado ou faltasse a cobrança cairia sobre mim. No dia marcado partimos ao clarear do dia, a carga e o pessoal acomodado na carroceria do caminhão e no volante o bem disposto, simpático e confiável irmão Anselmo Renner. Na época a estrada São Leopoldo, Gravatai, Taquara, São Francisco de Paula até o Rincão dos Groeff, não tinha um metro de pavimentação. Não me lembro quantas horas levamos mas, lá pelo meio dia e pouco chegamos no destino. O irmão cozinheiro que nos acompanhou, não me recordo do nome, preparou um almoço “quebra galho” enquanto cada qual escolhia o seu canto e arrumava a cama e guardava seus pertences. O resto da tarde circulava de um canto para o outro para me assegurar que tudo estivesse em ordem e no seu devido lugar. Enquanto a maioria dos colegas se dispersou pelos arredores ou cuidava dos seus alojamentos, o irmão cozinheiro e eu terminamos por deixar tudo pronto para começar tranquilamente o período de férias. Exausto e entregue fui tomar um banho frio no arroio e dormi como um tronco a primeira noite naquele ar fresco e leve e o silêncio telúrico, marca registrada dos campos de cima da serra. Na manhã seguinte depois do desjejum caminhei até uma casa de comércio e açougue distante uns dois quilômetros para comprar carne e outros gêneros para a cozinha. Aquela primeira temporada de férias no Rincão dos Groeff, foram para mim um período tudo menos do que uma ocasião de descanso. Além de todas as obrigações na condição de “bedel”, duas outras eventualidades me deixaram de ânimo abalado. Lá pelo dia 20 de dezembro entregaram-me uma carta do Pe. Balduino. Depois de ler o conteúdo fui sentar-me nas raízes de uma árvore aí perto e desandei a chorar. Minha irmã Ana, aquela mencionada mais acima que ficara com a bacia deformada por causa da paralisia infantil, minha confidente e melhor amiga, tinha falecido no dia 17 de dezembro com apenas 32 anos. Essa notícia me derrubou a tal ponto que perdi a vontade de explorar aquele cenário ideal para contemplar, ouvir, cheirar, farejar, apalpar e degustar a mãe natureza em todas as cores e nuances. Daquele episódio levei para o resto da vida uma profunda mágoa com meus superiores da época que não foram capazes de me mandar buscar pois, carro o colégio tinha, para pelo menos depositar uma flor no túmulo da Ana e prestar consolo para minha mãe viúva. A carga foi pesada lembrando que em 11 de janeiro do mesmo ano falecera meu irmão Raimundo, quando também não consegui participar do velório e sepultamento. Logo depois do Natal fui surpreendido por uma gripe e febre alta, dor de garganta e tosse. Um colega meu foi buscar um xarope e sem se dar conta trocou o frasco por um que continha iodo. Engoli uma colherada que me queimou até o estômago. Além de uma dor quase insuportável perdi o gosto por mais de uma semana. Depois de todos esses contratempos não tive condições de participar da excursão que todo grupo fez até o Taimbezinho apesar de toda a vontade de conhecer aquela maravilha da natureza da qual tanto ouvira falar. Fiquei em casa sozinho comigo mesmo o que me rendeu preciosas reflexões.

Na semana depois do Ano Novo planejamos uma excursão até a praia do Barco. Um vizinho ofereceu-se para nos levar no seu velho caminhão de carga, descendo a Serra do Pinto, obviamente toda de chão batido e uma curva fechada emendada na outra. Ao nos aproximarmos da praia do Barco admirei pela primeira vez o oceano que lá longe se confundia com a linha do horizonte. Desembarcamos e armamos as barracas para passar a noite. Sem perder tempo vestimos o calção de banho e fomos até a praia. Pouco me interessei pelo banho. Entrei na água, pulei uma ou outra onda e fui sentar-me fora do alcance da água e por um bom tempo fiquei observando aquele incansável rolar das ondas que há milhões de anos se repete mas nunca cansa. Pelo contrário. O belo grandioso, magnífico e poderoso vem inspirando os poetas desde que o primeiro deles cantou um louvor à magnificência do Criador desse espetáculo da “beleza sempre antiga e sempre nova” de Santo Agostinho, ou o poeta dos poetas Homero deixou há 2500 anos o verso: “To polú pélagos tú kalu ́”“o imenso mar do belo”. Passamos duas noites acampados nas dunas para subirmos novamente pela velha estrada a Serra do Pinto. Com isso as “férias grandes” estavam indo para o final. Nesses últimos dias o Pe. Balduino veio no seu jeep para me levar com ele até o Taimbezinho. Saímos de manhã e voltamos antes da noite. O impacto, quase susto, que me empolgou com primeira visão do oceano, repetiu-se em termos aqui sentado na borda daquela obra impressionante, façanha das forças telúricas que moldaram e continuam moldando e retocando a face do nosso planeta. O Taimbezinho voltará ser objeto de reflexões mais abaixo em circunstâncias mais próprias. O Pe. Balduino percebeu que eu estava exausto, mais cansado do que antes das férias. Ofereceu-se para, na volta de São Francisco de Paula, levar-me a Vila Oliva para passar 10 dias na Casa da Juventude que lá acolhia alunos do Colégio Anchieta para passarem um mês de férias. Ele já combinara tudo com o Pe. Pouquet, diretor daquela casa. Ele me levou até a Casa da Juventude e me instalei num quartinho isolado logo abaixo do telhado. Nos primeiros dias dormi à vontade e depois passei a conhecer os arredores daquele pedaço de paraíso perdido nos confins daquele planalto terminando nas cabeceiras do rio Caí. Foram dias de isolamento, quase de monge, que me fizeram um bem enorme e me temperaram para enfrentar o novo ano de Filosofia que me esperava em São Leopoldo.

Da Enxada à Cátedra [ 42 ]

Depois dessa contextualização, vamos à instalação do laboratório no quarto que nos foi cedido. Para começar dispúnhamos do microscópio, do micrótomo e da lupa que Pe. Hauser trouxera, mais alguns ingredientes necessários para preparar as lâminas. Mas, para começar o trabalho científico propriamente dito foi preciso providenciar por água destilada. A saída foi recorrer à criatividade. O irmão cozinheiro cedeu uma panela de ferro fora de uso. Na sua tampa adaptamos uma serpentina que passava por uma vasilha pela qual circulava água fria e assim o vapor vindo da panela condensava e dispúnhamos da água destilada, porém, em quantidade insuficiente. Acontece que, a pouca distância o Colégio mantinha uma série de instalações, entre elas uma marcenaria, uma ferraria, garagem para caminhão e um destilaria para extrair o óleo das folhas do eucalipto que formava uma floresta onde hoje fica o campus da Unisinos. Um dos subprodutos da destilação era água destilada que fluía de uma tubulação da caldeira. Depois dessa descoberta dispúnhamos de água destilada mais do que o necessário. Tudo instalado o trabalho científico pôde começar. O Pe. Hauser que há anos se vinha especializando na regeneração de Planárias, retomou suas pesquisas nessa área, e eu sob sua orientação aprendi as técnicas de preparação de lâminas para observação microscópica. Não é aqui o momento para descrever essas técnicas. Como matéria prima fui capturar alguns preás que povoavam a vegetação rasteira em torno da horta e da lagoa nas proximidades. Amostras de músculos, vísceras, cérebro e outras partes serviram para a preparação das minhas primeiras lâminas. Lembro-me como se tivesse sido ontem, quando num domingo de tarde, observei no microscópio uma dessas primeiras lâminas e contemplei com entusiasmo o maravilhoso, misterioso e complexo mundo de cromossomos do interior de uma célula. Daí para frente passava todos os momentos disponíveis naquele laboratório improvisado. Não me imaginava que, sob a batuta do Pe. Hauser e em parceria com ele acabávamos de dar vida ao embrião do qual evoluiriam poucos anos depois (1958) os laboratórios de biologia do curso de História Natural da Unisinos.

O episódio que acabo de lembrar consolidou em mim a convicção de, na etapa seguinte da minha formação acadêmica, depois do bacharelado em filosofia, partir para o bacharelado em História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Neste meio tempo o Pe. Hauser já fizera contato com os docentes daquele curso e com eles mantinha um ativo intercâmbio de informações. No segundo semestre de 1956, último dos três anos da filosofia, levou-me até as instalações da História Natural da UFRGS, na época na rua Paulo Gama no prédio vizinho da Reitoria, na esquina da Av. Osvaldo Aranha. O objetivo foi conhecer os laboratórios e as possibilidades de pesquisa que ofereciam. Conversamos um bom tempo com o Prof. Antônio Cordeiro titular da disciplina de Genética, uma área que despontava como um campo de pesquisas promissor sob o ponto de vista teórico e, de modo especial, na sua aplicação prática em muitas áreas, com por ex., na medicina. Um segundo motivo dessa visita foi colher informações e orientações sobre os conteúdos e a preparação do vestibular que iria enfrentar em fevereiro de 1957. Saí daquela visita mais do que nunca determinado a mergulhar fundo no fantástico universo da Natureza. Obviamente não tinha condições de, naquela altura, decidir em que área específica iria me especializar. É verdade que percebia em mim uma inclinação especial pela genética. Num encontro posterior com o Pe. Balduino, meu irmão, o pus à par da minha decisão e ele, sem mais nem menos, observou que pensasse seriamente de me especializar em genética pois, no seu entendimento entre o grupo de cientistas jesuítas que, em 1956 fundaram o “Instituto Anchietano de Pesquisas”, um especialista em genética acrescentaria muito. Mais abaixo volto ao assunto para explicar o motivo por que não evolui para um especialista em genética como aliás, não terminei me especializando em nenhum dos muitos campos da História Natural.

Mas, não terminaram aí as atividades paralelas ao estudo da filosofia. Já falei da catequese, das aulas para os “afonsinos” e da instalação do laboratório de pesquisas. No mesmo período traduzi para o português o livro do Dr. Wolfram Metzler “Rettewir unsere Kolonien” “Salvemos as nossas Colônias”. Essa obra teve como foco os problemas que enfrentavam os agricultoresfamiliares na década de 1950, com destaque para o manejo correto dos solos, adubação orgânica, renovação e melhoria genética dos animais domésticos e por vai. Essa obra faz parte de uma série de providências que estavam sendo implementadas pela Sociedade União Popular. Incluíam, além das já mencionadas, o estágio de um ano ou mais de filhos de colonos em estabelecimentos modelo de produção agrícola e criação de aves, gado leiteiro, suínos e outros, na Alemanha, Suíça e Áustria,

Por um bom tempo viajava todos os domingos de manhã para Porto Alegre para encontrar-me com meu irmão o Pe. Balduino a fim de fotografar as dezenas de milhares de espécies de plantas colhidas durante mais de duas décadas e devidamente acondicionadas em caixas de madeira. Para esse trabalho tinha à disposição um aparelho fotográfico Laica devidamente montada num tripé, operando com filme preto e branco. Ao mesmo tempo ele me pediu para fazer uma cópia datilografada do fichário da coleção de plantas. Para tanto cedeu-me uma máquina de escrever Erika portátil mecânica, as elétricas eram praticamente desconhecidas no país naqueles idos de 1950. Levei a máquina e uma caixa de fichas para São Leopoldo. Nos espaços de tempo disponíveis no intervalo entre as outras tarefas, copiei milhares de fichas. Quantas exatamente não me recordo. Guardo como uma lembrança preciosa desse meu irmão mais velho essa máquina “Erika”, ainda em perfeito estado de conservação e funcionamento, trazida por ele da Alemanha no começo da década de 1930, depois de concluído o curso de Filosofia em Pullach, perto de Munique.

Das minhas vivências dos três anos do bacharelado de Filosofia falta ainda registrar a conclusão com um exame final oral incluindo todos os conteúdos básicos do currículo dos três anos, excluindo as “questões seletas”. Fui examinado, evidentemente em latim, por uma banca composta pelos docentes das disciplinas-tronco. Os questionamentos levaram praticamente uma manhã inteira. Fui aprovado com folga e com isso declarado em condições de mais tarde entrar na licenciatura de Teologia na categoria de “Teologia Maior”. O significado do termo já deixei explicado mais acima.

Da Enxada à Cátedra [ 41 ]

No segundo ano da Filosofia, isto é em 1955, fui destacado para dar catequese no grupo escolar Ipiranga, também à beira da Br. 116, porém em São Leopoldo, na subida do atual viaduto e em frente ao antigo restaurante Tirolesa. Por um semestre ou dois ainda ministrei aulas de história, geografia e ciências para os rapazes internos num anexo do Colégio Cristo Rei. Chamavam essainstituição de Escola de Santo Afonso e os internos de “afonsinos”. Os meninos e adolescentes, os “afonsinos” preparavam-se para entra na Companhia de Jesus como irmãos leigos. Eles veneravam como padroeiro Santo Afonso Rodrigues, irmão leigo jesuíta, nascido em Segóvia na Espanha em 1532.

Depois disso encerrei minha caminhada de catequista, para dedicar-me todo tempo disponível além da Filosofia, à iniciação à pesquisa científica sob a orientação do Pe. Hauser. Pela importância dessa orientação, que se transformaria numa parceria para o resto da vida com o húngaro expulso do seu país por ser jesuíta, merece ser registrada em detalhes. A primeira imagem do Pe. Hauser que gravei na memória data de maio de 1954. Toda a comunidade do Cristo Rei, professores, irmãos leigos, teólogos e filósofos acabavam de se reunir no refeitório comum para o almoço. Foi então que acompanhado pelo superior entrou aquela figura de estatura abaixo da média ostentando uma calvície precoce. O reitor o apresentou como sendo o Frater Josepf Hauser, húngaro que vinha para terminar os estudos de teologia e ordenar-se sacerdote. Mais tarde viriam mais três jesuítas da diáspora húngara da Ordem com sede provisória no exílio no Canadá: o Pe. Gésa Köveces, o Pe. João Ruff e o estudante de teologia Homorodi. Poucos dias depois recebi o pedido para me encontrar com o Hauser. Acontece que ele não conseguia comunicar-se com os colegas de teologia porque ninguém entendia o “portunhol”, um espanhol precário misturado com fragmentos de português. De outra parte nenhum dos estudantes de teologia se dispunha a conversar com ele em alemão. Daquele dia em diante costumava encontrar-me com ele no tempo livre, no recreio depois do almoço. Nos primeiros encontros o pus a par das minhas intenções de dedicar-me a alguma área das Ciências Naturais. Ainda não definira em qual. Meu “faro” me direcionava na direção de uma especialidade relacionada com a compreensão da natureza, sua estrutura e funcionamento e nela o lugar de Deus e do homem.

Como já lembrei mais acima o Pe. Hauser se doutorara na Universidade de Innsbruck, referência em várias áreas do conhecimento: filosofia, teologia, biologia e outras. Naquela época, meados de 1950 o biólogo Ludwig von Bertalanffy entrou em cena com seus estudos sobre sistemas. Na década de 1920 quando von Bertalanffy dava os primeiros passos na sua trajetória científica predominava entre os cientistas das mais diversas especialidades a visão mecanicista na compreensão dos seres vivos. Partia-se da convicção de que decompondo o ser vivo até as últimas minúcias dos seus componentes morfológicos e químicos, era possível identificar a própria natureza da vida e a infinidade de modalidades em que se manifesta. Pois, o jovem biólogo von Bertalanffy, como não poucos outros convenceu-se de que por essa via de abordagem não se dava importância ou até se negava o essencial, isto é, em que consiste o essencial da vida, melhor o “que é a vida”. Essa mesma preocupação e questionamento perpassa as publicações de Erich Wassmann, ainda hoje referência no estudo de como se dá a simbiose entre fungos e formigas e térmites. Por coincidência o veterano Wassmann que conquistara o respeito e a admiração domundo científico e filosófico com sua obra referência “Theoretische Biologie” e os memoráveis embates com Ernst Haeckel no começo do século XX, publicou suas conclusões sobre o fenômeno da vida em “Stimmen der Zeit”, no 100, 1921. Com a evolução das pesquisas e reflexões sobre o que vem a ser na sua essência o estofo da vida e como funciona um ser vivo, levaram Bertlanffya condensar suas conclusões nas duas obras acima lembradas: “Biologisches Weltbild” e Theoretische Biologie”. Para o Seminário de Questões Seletas de Biologia o Pe. Hauser escolhera proposta no “Biologisches Weltbild, isto é, a compreensão de que a vida funciona como um organismo, à maneira de um sistema e não de uma máquina”. Esse Seminário provocou um efeito colateral que mexeu com a orientação da disciplina da Cosmologia ministrada pelo Pe. Luiz Müller. Este fundamentava suas preleções em Hans Driesch e suas experiências com ouriços do mar. Driesch chegou à conclusão que pelo Darwinismo não havia como responder os fenômenos mais complexos da natureza como por. ex., a estrutura e, de modo especial, o funcionamento do organismo vivo. Como tentativa de superar esse impasse teórico propôs a teria do Vitalismo como alternativa ao Darwinismo. Em resumo o Vitalismo concebe o organismo, de um lado formado pelas estruturas e funções orgânicas e, do outro pela “Entelequia” ou “Princípio Vital”. A relação entre as duas realidades acontece à semelhança de um navio comandado por um capitão. O organismo biológico corresponde ao navio e à Entelequia, ao Princípio Vital, cabe a função de comandá-lo e imprimir-lhe a rota certa. Assim, Driesch não logrou superar o velho dualismo que perpassava em grande parte o pensamento ocidental: corpo e alma, espírito e matéria, princípio vital estrutura orgânica, entelequia e funções orgânicas. Por ter chegado a essas conclusão via pesquisa científica e não especulação filosófica e racional, forneceu a munição para o nosso professor de Cosmologia para refutar com dados científicos o evolucionismo, em particular a versão darwinista. A proposta organísmica, mais tarde, enriquecida e complementada com mais dados e com o recurso a modelos matemáticos, levou Bertalanffy a propor “Teoria Geral dos Sistemas” publicado no original em inglês em1968 e sua tradução para o português pela Vozes de Petrópolis em 1977 a primeira edição e a segunda em 2008. Aconteceu então o inevitável. O seminário de Hauser bateu de frente com as preleções do professor de cosmologia. Para uma boa parte de nós jovens estudantes de filosofia ficou claro que o titular da cátedra, com todos os méritos que a justiça lhe manda contabilizar, estagnara no tempo. Nas últimas décadas as Ciências Naturais tinham penetrado fundo nos arcanos da vida e vinham oferecendo evidências cada vez mais definitivas de que os organismos vivos não eram apenas máquinas no entender dos materialistas seguidores de Ernest Haeckel e Julião Huxley, apelidado de o “buldogue de Darwin” e outros. De outra parte também não se resumiam em máquinas operadas por um princípio vital, uma entelequia, uma alma, um “capitão” mantendo o navio na rota certa, com que argumentavam os filósofos e teólogos alinhados com compromissos doutrinários. Chegou ao ponto de um dos meus colegas mais afoitos resolver enfrentar em público o nosso professor de cosmologia.

Prolonguei-me de propósito um pouco mais nesse seminário de “Questões Seletas” para chamar a atenção que foi ministrado na época em que As Ciências Naturais, a Filosofia, a Exegese e a Teologia encontravam-se em franca aproximação e alinhamento. Pio XI criara em 1937 a Pontifícia Academia de Ciências posta a funcionar a todo vapor por Pio XII, integrada por cientistas das mais diversas orientações confessionais, inclusive agnósticos e ateus. Pio XII publicara em setembro de 1943 a Encíclica Divino Afflante Spiritu insistindo na interpretação das Sagradas Escrituras de acordo com as circunstâncias temporais e espaciais em que foram escritas. O mesmo Pio XII publicara em 1950 também a Encíclica Humani Generis, na qual definiu as competências das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito no que tange à origem e evolução do homem.

Compreende-se nesse contexto a repercussão que teve o Seminário de Hauser abrindo as janelas para nós jovens estudantes de filosofia para um panorama renovado, senão revolucionário, do conhecimento a partir das descobertas científicas nos mais diversos campos especializados com destaque para a genética.

Nas nossas conversas quase que diárias fui-me informando sobre a trajetória do Pe. Hauser. Combateu como oficial na Segunda Guerra Mundial incorporado no exército alemão contra as forças soviéticas. Deste período levou para o resto da vida sequelas que marcaram a sua personalidade e a sua maneira de ser. Não entro em detalhes pois, não me sinto com credenciais para tanto. O que, entretanto, valeu foi o fato de que, em questão de pouco tempo, amadureceu a ideia de montar um laboratório de pesquisas. Acontece que, depois da oficialização do Curso de Filosofia os superiores maiores dos jesuítas no sul do Brasil, decidiram dar um passo adiante no lançamento das bases para uma futura universidade. Não demorou para que o Curso de Línguas Clássicas que eu concluíra em 1953 em Pareci Novo, também fosse oficializado pelo Ministério da Educação. Ao Pe. Theobaldo Franz, como “Prefeito dos Estudos”, isto é, responsável pelo bom andamento e ampliação do ensino médio e superior sob a jurisdição da Província Sul brasileira da Companhia de Jesus, decidira implantar o Curso de História Natural pois, o cultivo das Ciências Naturais, fazia parte importante da história da Província. Foi com essa finalidade que convidou o Pe. Hauser com doutorado na área na universidade de Innsbruck como já lembramos acima. Em sua bagagem ele trouxera um microscópio binocular de última geração, uma lupa e um micrótomo da famosa indústria ótica “Zeiss, além de reagentes básicos para a preparação de lâminas. O reitor do Colégio Cristo Rei cedeu um quarto no segundo andar para instalar o “laboratório”. Foi oembrião para que mais tarde, já implantados o bacharelado em Filosofia, Línguas Clássicas e Pedagogia além de, em 1957, esses cursos fossem abertos ao público leigo e instalados nos antigos prédios no centro de São Leopoldo e em 1958 implantado o bacharelado em História Natural e Ciências Sociais. Só para não haver mal entendidos. Na época obtinha-se o bacharelado cursando primeiro as disciplinas dos conteúdos específicos da área e a licenciatura numa etapa posterior de dois semestres de disciplinas didático-pedagógicas para obter a licenciatura.