A primeira “preleção” (era a denominação das aulas de então) ficou a cargo de prof. Alarich Schultz, catedrático de botânica. Por sinal um excelente professor tanto pelo conhecimento da sua especialidade quanto pela didática em transmitir os conteúdos e despertar o interesse dos alunos. Antes de começar a tratar dos conteúdos propriamente ditos, dedicou as primeiras horas de aula para oferecer aos alunos uma espécie de dicionário explicando o sentido da origem grega e latina dos muitos termos técnicos que fariam parte do linguajar científico da Botânica. Esse mini dicionário foi extremamente útil para as demais disciplinas e para os alunos que vinham do ensino médio que incluía o latim na época, porém, num nível introdutório e sem noção mínima do grego. Para mim essa aula introdutória foi extremamente gratificante porque me dei conta que o bacharelado em Línguas Clássicas, conquistado três anos antes, me dava subsídios preciosos para transitar com conhecimento de causa na linguagem científica. No primeiro semestre ainda constava a disciplina “Fundamentos e Teorias Biológicas”. O catedrático veio a ser o prof. Romeu Mucillo, de profissão médico. Como a maioria dos professores universitários da época costumavam proferir suas preleções de terno e gravata, protegido por um jaleco branco, o prof. Mucillo aparecia no seu posto de professor catedrático impecavelmente trajado. Esse hábito fez com que os alunos, principalmente as alunas, apostassem para adivinhar com que terno e que gravata se apresentaria na aula seguinte. Guardo na minha memória, como se tivesse sido ontem, a postura impecável, o linguajar nada empolado mas de um nível e precisão na formulação dos conceitos que não deixava nada a desejar. À professora Nídia Lacerda coube a disciplina de Zoologia. Muito esforçada, conhecedora dos conteúdos que lhe foram confiados, conquistou a simpatia dos alunos pela sua simplicidade e a forma objetiva e cordial com que sabia administrar eventuais desacertos de compreensão dos assuntos tratados em aula. Lembro-me de uma ocasião quando eu um dos meus colegas que se assumia como ateu, entramos numa polêmica um tanto agressiva, se não me engano quando estava em pauta a teoria da Evolução. A professora Nídia permaneceu em pé no seu estrado e acompanhou o embate sem interferir. Terminada a munição de um e do outro lado, pediu licença e continuou na sua exposição. O episódio em nada afetou a amizade e entendimento entre meu colega ateu e eu um jovem jesuíta com convicções opostas. Mais tarde como professor na URGS e na Unisinos essa experiência de discordar e, ao mesmo tempo respeitar e não levar para o plano do relacionamento pessoal uma convicção contrária, foi de uma utilidade enorme. Mais abaixo destacarei episódios semelhantes acontecidos em situações as mais diferentes quando do embate de ideias divergentes e em casos menos frequentes, opostas. Ainda no primeiro ano – vale lembrar que o bacharelado em História Natural na época era seriado – constavam no currículo as disciplinas de Mineralogia, Cristalografia e Petrografia. O catedrático foi o engenheiro de minas José Azambuja, conhecido como “Juca Azambuja”, como os demais professores um senhor entre os 50 e 60 anos, estatura em torno de 1,90, corpulento, calmo e de uma admirável índole pacífica. Não exercia a profissão de engenheiro de minas. Com dedicação integral ao magistério das disciplinas acima citadas, na Escola de Engenharia e História Natural. Dois professores assistentes lhe davam suporte: Ely Denhardt na mineralogia e cristalografia e o professor de cujo nome não me recordo na Petrografia. É por todos sabido que na década de 1950 os recursos da tecnologia atual utilizados no estudo da formação e estrutura dos minerais, cristais rochas, não passavam de um sonho. Os recursos didáticos reduziam-se a diagramas e modelos desenhados e impressos somados a microscópios e lupas especialmente projetados para essa finalidade com uma visão tridimensional dos objetos. Nas aulas práticas o recurso básico foi o “Diagrama de Wulf”. Cada aluno dispunha do seu. Sobre ele aprendiam a projetar as faces dos cristais e identificar suas propriedades. Para examinar as microestruturas do cristais e rochas em geral recorria-se ao microscópio adaptado a uma visão tridimensional. Da mesma forma a Lupa tridimensional acompanhava qualquer estudioso de petrografia a fim de identificar a estrutura e composição de rochas. As nossas aulas teóricas e práticas foram dadas no complexo da Escola da Engenharia na esquina da Sarmento Leite, Osvaldo Aranha e praça Argentina. Cada vez que me lembro daquelas preleções surge na minha memória a figura grande de corpo e maior ainda de dedicação, um autêntico ‘boa gente”, do Juca Azambuja, em pé no estrado explicando os conteúdos da aula, reforçando-os com desenhos a giz no quadro negro. E que desenhos! Perfeitos como saídos de um programa de computador de hoje!
A geologia, junto com a biologia, a botânica e a zoologia, completavam as quatro pilastras mestras que formavam o arcabouço do bacharelado em História Natural. Não há necessidade de lembrar que a mineralogia, a cristalografia e a petrografia, acima mencionadas fazem parte do vasto campo da geologia. Na prática, porém, nos foram oferecidas quase como que paralelas. Não cabe aqui entrar nos detalhes dessa situação prática. O fato é que a geologia veio a ocupar um lugar de destaque pois, em abril de 1957 foi instalado o bacharelado em geologia na UFRGS. O corpo docente da cátedra de geologia da História Natural, com seu titular Irajá Damiani Pinto e a assistente Yvonne Sanguinetti e as instalações e laboratórios localizados no mesmo prédio, serviram de ponto de partida para o funcionamento do Curso de Geologia. Aos dois docentes já mencionados somaram-se em seguida os professores Darcy Closs, Amneris Cauduro, Patrick Delaney e outros. O recém oficializado bacharelado em geologia, instalado nas mesmas dependências e com o mesmo corpo docente atuando também na História Natural, resultou numa estreita relação entre os professores e os alunos dos dois cursos. Os conteúdos da área de geologia foram ministradas aos alunos dos dois cursos reunidos na mesma sala. O contato com a mineralogia, a cristalografia, a petrografia e agora com a geologia e nas suas diversas subáreas, atraíram cada vez mais meu interesse. Abandonei a minha escolha ao iniciar o curso de me especializar em genética, para concentrar meus interesses na geologia. Para essa guinada foi decisivo, além da área de conhecimento em si, a vinda dos Estados Unidos do prof. Patrick Delaney. Como eu falava sofrivelmente o inglês e ele precariamente o português, a primeira aproximação se deu no nível da língua. A isso veio somar-se o crescente interesse pela geologia de modo especial a observação direta em campo. Em sendo a observação e pesquisa de campo uma das especialidades do prof. Delaney e eu conhecia razoavelmente o vale do Gravataí e do Sinos, ele me convidou para acompanhá-lo nessas excursões. Aceitei na hora o convite levado pelo duplo interesse de apropriar-me do conhecimento da história e formação geomorfológica da região e de cobro aperfeiçoar o meu inglês. Havia mais um detalhe que favoreceu essa parceria. Ele era católico descendente de imigrantes irlandeses e eu jesuíta, numa época em que os membros dessa Ordem gozavam de um grande prestígio especialmente nas universidades de alto nível sob sua jurisdição e responsabilidade nos Estados Unidos. Durante um bom tempo, não me recordo exatamente quanto, embarcávamos num jeep ou numa camionete com tração nas quatro rodas. Descia até a nossa sede na Paulo Gama, guardava a batina e o chapéu clerical no gabinete do prof. Delaney e felizes partíamos para o campo. Para começar percorremos os arredores de Porto Alegre para depois, avançar até os campos de cima da Serra e terminar no Taimbé. O foco das observações centrava-se na geomorfologia e na geo-história da região. Nunca esquecerei essas saídas para o campo. Além de aperfeiçoar o meu inglês o mais importante foi conhecer “in loco” os resultados da dinâmica geomorfológica que moldou a fisionomia da paisagem dessa parte do sul do Brasil. Uma autêntica universidade ao ar livre, sem jaleco, se retórica de cátedra, sem recurso a amostras de rocha acomodas em museus especializados. De posse das observações feitas, o prof. Delaney propôs montarmos uma maquete da estrutura geológica do planalto tendo como inspiração o Taimbé que exibe nos paredões do canion os sucessivos derrames formando rochas de basalto de cores e textura diferentes. Fomos procurar em diversas lojas especializadas os componentes que misturados reproduzissem a densidade e as cores dos diversos derrames de basalto. Só me lembro que o açúcar foi o mais volumoso. Dos demais não me recordo. Para a montagem e solidificação da maquete utilizamos um aquário de bom tamanho. Não sei que fim levou aquela maquete, se é que não foi extraviada nas posteriores mudanças de sede tanto da História Natural quanto da Geologia. O prof. Delaney ensinou-me como desenhar perfis tridimensionais de paisagens usando como base mapas do Serviço Geográfico do Exército disponíveis no quartel do bairro da Serraria em Porto Alegre. Naquele remoto 1957, 1958 e 1959, não se dispunha obviamente de toda parafernália eletrônica, os satélites e demais recursos de hoje para dar conta desse tipo de mapas. Acontece que na década de 1950 o Serviço Geográfico do Exército decidiu mapear todo o território nacional com o que de mais atualizado se dispunha na época. Instalaram na barriga da fuselagem de um Convair um aparelho filmador e, sistematicamente foram filmando em faixas as diversas regiões do País. Com base nos filmes foram desenhados os mapas contendo as curvas de nível de 100 em 100 metros de altitude. Buscamos esse tipo de mapas referentes ao Rio Grande do Sul e valendo-me deles desenhei o perfil do vale do rio Uruguai na altura de Irai. Esse tipo de exercício não fazia parte das tarefas obrigatórias previstas no currículo. Fascinado pela geologia e a infinidade de paisagens moldadas no decorrer de milhões e bilhões de anos pelas forças telúricas, passava feriados inteiros e fins de semana em vigílias noturnas madrugada adentro nesse tipo de exercício. Não me tornei geólogo de profissão por razões que pretendo apontar mais abaixo, embora convites não faltassem, inclusive da Petrobras, em rápida fase de consolidação e carente de recursos humanos nativos. A justiça manda deixar registrado aqui uma nota de gratidão a esse grande mestre, amigo e parceiro que foi para mim o prof. Patrick Delaney. Depois de formado em História Natural e Geologia, nunca mais nos encontramos mas guardo na minha memória aquela figura de um homem jovem, bem apessoado, dedicado inteiramente à sua missão de mestre abrindo os olhos dos alunos para a maravilhosa e engenhosa arquitetura do planeta terra, “nossa casa”, nossa “mãe e pátria”. À mineralogia, à cristalografia, à petrografia, à geomorfologia física, seguiram semestres de Geologia Histórica e Paleontologia. O conteúdos da disciplina de Geologia Histórica ficaram a cargo da profa. Amneris Cauduro. Muito sistemática transmitiu aos alunos uma visão sintética da sequência e das características das eras e respetivos períodos da história geológica e biológica da terra. Guardo uma grata recordação dessa docente discreta, competente e avessa a qualquer tipo de exibicionismo. Coube ao prof. Darcy Closs a disciplina de Paleontologia. Recém regressado da Alemanha com doutorado nessa área. Esbanjava o entusiasmo característico dos jovens professores recém laureados com um título de doutor, uma raridade na época no ambiente universitário brasileiro.
Alonguei-me um pouco mais falando da minha formação na área da geologia na qual pensava em me especializar e fazer carreira como professor e pesquisador. Adquiri uma série de obras básicas, que mais tarde cedi para a biblioteca setorial da Geologia da Unisinos. Infelizmente esses livros foram mais uma vítima do incêndio que destruiu os prédios localizados na quadra onde foi construídaanovaprefeituradeSãoLeopoldo.Mas,vamosàsdemaisdisciplinasconstantes no Curso de História Natural. Mais acima já comentei a Botânica sob a batuta do prof. Alarich Schultz. Também já lembrei a Zoologia sob a responsabilidade da profa. Nidia Lacerda. Falta a Fisiologia a cargo do prof. Celso Jaeger e a Genética e Evolução com a profa. Euterpe Cauduro Jaeger e o prof. Antônio Cordeiro e Flávio Levgoy. Mais acima já lembrei que sentia uma forte simpatia pela genética. O flerte com essa especialidade não prosperou em primeiro lugar porque descobri que a geologia oferecia na época um potencial muito mais amplo e mais satisfatório para minha curiosidade pelo lugar que cabia ao homem como espécie ontologicamente radicada na natureza e, ao mesmo tempo, o lugar ou não lugar de Deus na complexidade do planeta terra, a “nossa casa”. Em segundo lugar pesou, e não pouco, o desempenho da professora responsável pela disciplina. Acabara de voltar dos Estados Unidos depois de um estágio de aperfeiçoamento em genética e não conseguiu-me entusiasmar pela especialidade. Mas, havia ainda um motivo mais complicado que arrefeceu meu interesse por esse campo de pesquisa. Naquele momento a universidade ainda não dispunha de um laboratório de pesquisa adequadamente equipado para aprofundar as pesquisas e por isso o que foi oferecido não passava dos dados disponíveis no manual de Sinnott – Dunn - Dobzhansky – “Principles of Genetics”. A genética constava como uma espécie de área subsidiária do estudo da Evolução sob a responsabilidade do prof. Antônio Cordeiro. Para ele o Darwinismo tinha resposta para “o como” de todos os eventos que a vida do nosso planeta passou. Gostava de uma polêmica com cientistas que não apostavam todas as fichas na solução darwinista, especialmente a versão defendida por Julião Huxley e Ernest Haeckel. Chegou organizar um debate nesse sentido com meu irmão, o Pe. Rambo, catedrático de Etnografia e Etnologia, na presença dos alunos que frequentavam comigo aquela disciplina. Guardo até hoje a impressão negativa daquele embate de ideias nitidamente conduzido para constranger o convidado. Recorreu à velha recozida e regurgitada interpretação literal do Gênesis, superada 15 anos antes pela Encíclica Divino Afflante Spiritu de Pio XII e pela Encíclica Humani Generis de 1950 do mesmo papa. O Pe. Rambo deixou muito clara nas suas aulas de Ciências no Colégio Anchieta, nos seus escritos, palestras e conversas informais a sua defesa do evolucionismo, remetendo para o criacionismo questões como alma humana e outras nesse nível bem de acordo com as duas encíclicas que acabamos de lembrar. Mas, enfim, foi um episódio típico, como inúmeros outros que ainda acontecem hoje, em que cientistas de um lado e filósofos e teólogos do outro não abrem mão dos seus pontos de vista convencidos do acerto dos seus arrazoados. Parece que com o que anotei sobre o Curso de História Natural, dei uma ideia do formato, da abrangência e da visão interdisciplinar que o portador do título de bacharel levava para a vida. Salvo melhor juízo, tenho a impressão qua a fragmentação posterior desse autêntico programa com o objetivo de compreender a complexidade da natureza numa perspetiva interdisciplinar vista a partir de todos os seus ângulos, perdeu muito do seu potencial para contribuir na construção do conhecimento. Para mim pessoalmente os conhecimentos da natureza que foram oferecidos nesse bacharelado foram de um valor difícil de avaliar quando, por razões que lembrarei mais abaixo, a minha docência e pesquisa foram direcionados para a Antropologia, a História e a Filosofia. Se for para lembrar um senão no Curso de História Natural apontaria o fato de termos tido pouca oportunidade para observarmos a natureza in loco com destaque para a botânica a zoologia e a geologia. Eu fui brindado com a rara felicidade de percorrer o vale do Gravataí e do Sinos em companhia do prof. Patrick Delaney, a fim de estudar a geomorfologia da região, como já lembrei mais acima. A lacuna a que me referi há pouco seria preenchida para mim pessoalmente pelas visitas por dias seguidos, durante o período de férias, acompanhando meu irmão Balduino e por vezes também o Pe. Luiz Sehnem, em suas coletas na região de Cambará, mais exatamente no Taimbézinho. Mais abaixo voltarei com maiores detalhes a essas jornadas científicas pela natureza. Em dezembro de 1959 aconteceu a solene formatura dos bacharéis em História Natural no salão de atos da reitoria da UFRGS, com a presença do arcebispo D. Vicente Scherer que nos brindou com um solene cochilo afundado na sua poltrona na mesa de honra, ao lado do meu irmão Pe. Balduino, o reitor e outras autoridades acadêmicas cujos nomes não guardei. Depois de concluídos os atos protocolares na reitoria, obviamente seguiu uma confraternização entre os recém formados e seus familiares no saguão do salão de atos. Junto com meu primo Odilo também entre os formados subimos até o Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias, onde o reitor nos esperava com comes e bebes em comemoração à nossa formatura. A essa altura, com 29 anos de idade, já registrava no meu currículo 4 bacharelados: Línguas Clássicas, Filosofia, História Natural e Geologia. No ano seguinte começaria a Licenciatura em Teologia. Mas, esse capítulo fica para depois.
Com as anotações que acabo de registrar dou por concluídas as lembranças que guardei na memória acontecidas um pouco mais de 60 anos passados ao conquistar o bacharelado em História Natural e Geologia.