Partindo da convicção de que os primeiros humanos eram portadores de um cérebro capaz de operações reflexas, na sua essência iguais às do homem atual, temos condições de imaginar como tudo começou. Não faz grande diferença se o potencial de raciocínio de então era menor do que o do homem de hoje. O que importa é que em ambos os casos está presente o grau de reflexão suficiente para desencadear operações mentais que levam à construção do conhecimento. Quem sabe uma analogia entre a ontogênese e a filogênese do homem seja útil nesse esforço. Não é da nossa intenção requentar a discussão de cem anos passados, quando Ernst Haeckel formulou a “Lei Biogenética Fundamental”, que afirma que a ontogênese, a evolução individual, era o resumo da filogênese, a evolução em geral. É uma questão a ser resolvida ao nível dos estudos da evolução. De qualquer forma, observa-se um paralelismo muito sugestivo entre o despertar da consciência reflexa de uma criança e a manifestação dos sinais da presença da mesma, há muitos milênios entre os “primitivos” seres humanos. Não há dúvida de que traçar um paralelismo entre a evolução ontogenética e filogenética aplicada à evolução da construção do conhecimento, tem seus limites. O despertar da criança para a consciência reflexa e, a partir daí, para a construção do seu conhecimento, é um fenômeno que podemos acompanhar no quotidiano. O mesmo já não é possível em se tratando da infância da humanidade. Há a saída pelo recurso à analogia e, por que não, à imaginação. Considerando bem, a imaginação nos leva mais longe. Evidentemente a imaginação não pode dispensar, neste caso, um mínimo de objetividade, melhor, uma objetividade possível. E essa objetividade possível nos garante tanto a analogia com o aprendizado de uma criança, quanto a experiência do quotidiano quando as pessoas tomam consciência dos desafios, procuram entendê-los, inventam formas para resolvê-los e criam as tecnologias e instrumentos específicos, traçam o caminho a seguir executam as ações necessárias para solucionar os problemas.
Que essa sequência de procedimentos pressupõe inteligência reflexa, dispensa teorias complicadas. Da mesma forma como o humano do terceiro milênio, os humanos de quinhentos mil anos ou mais atrás, assumiram a mesma atitude frente aos desafios da vida. Não importam nem as circunstâncias, nem a origem, nem a natureza do problema, constata o fato de que entra em atividade o complexo mecanismo do raciocínio. Na identificação dessa situação o instinto contribui em dose mais ou menos elevada. A avaliação que segue requer o concurso da inteligência, requer reflexão. Os dois níveis de conhecimento estão sempre presentes. O processo costuma ser desencadeado pela reação instintiva do homem frente a uma eventualidade. O fato é identificado pelo instinto. A partir do momento, porém, em que se dá a constatação, ou se toma consciência do fato, entra em ação o poder da reflexão. No animal o processo estagna ao nível da constatação e da tomada de consciência. Em consequência também o conhecimento não evolui para além e para cima desse patamar. Observa-se ainda que, por isso mesmo, as respostas de que o animal dispõe, ficam confinadas também no patamar da constatação e da tomada de consciência, o que equivale ao conhecimento instintivo. Nessa situação a resposta só pode ser uma, isto é, aquela prevista pela própria natureza instintiva de cada caso em particular. Em se tratando do homem a constatação e a tomada de consciência são apenas o ponto de partida, a base sobre a qual a inteligência reflexa vai operar, a matéria prima com que vai construir o conhecimento. E nesse processo de construção do conhecimento contribuem diferentes fatores que decidem o rumo que a operação mental vai tomar, a configuração que se vai imprimir e o perfil que resulta no final. E nessas diversas fases e dimensões do processo influem as circunstâncias concretas em que cada situação concreta acontece. Elas são corresponsáveis pela forma como se dá a constatação, os estímulos e a consciência. Tomemos como exemplo a morte de uma pessoa. Constatado o fato e tomado consciência do que aconteceu, entra em ação uma sequência de processos mentais reflexivos sobre o significado daquele fato. Procura-se explicar o acontecimento em si, as repercussões sobre o próprio defunto, sobre seus familiares, sobre as pessoas das suas relações mais chegadas, sobre o grupo social ao qual pertenceu. Tudo isso acontece já ao nível da inteligência reflexa. A morte é vista e avaliada na moldura do cenário cultural em que ocorreu. As reflexões sobre o destino do defunto acontecem na perspectiva do imaginário e das crenças cultivadas no grupo social em que viveu. A repercussão social é avaliada de acordo com o significado do seu status, da posição e importância do falecido no seu grupo social.
No esforço de acompanhar a construção do conhecimento, partindo da base formada pelos estímulos de natureza instintiva, é estimulante percorrer os estágios evolutivos nos quais a inteligência reflexa vai dando as coordenadas. Como não dispomos de dados materiais objetivos, para reconstituir a história do conhecimento daqueles tempos remotos não há outra saída a não ser recorrer a ilações. Formam um caminho legítimo, contanto que se tomem algumas precauções. É importante conduzir a lógica partindo de uma premissa válida e confiável. E parece aceitável como pressuposto suficientemente seguro, a convicção de que a natureza humana permaneceu na sua essência a mesma, desde o primeiro humano dotado de inteligência reflexa até os cientistas de hoje decifrando o código genético ou penetrando no âmago da natureza física e biológica do universo.
Basta observar as reações das pessoas no quotidiano ao se defrontarem com uma eventualidade qualquer. Não importa se são situações pessoais, fenômenos naturais, animais ou acontecimentos coletivos. O primeiro impacto vem acompanhado de reações de natureza instintiva, esperáveis em tais situações. Passado o primeiro susto, admiração e surpresa, entra em cena a inteligência reflexa. A pessoa se recompõe, procura arredar para um segundo plano os efeitos causados pelas reações instintivas e irracionais e trata de encarar a situação com parâmetros racionais. Uma reflexão calma e sóbria permite inteirara-se objetivamente dos acontecimentos, entender ou não entender do que se trata, avaliar as consequências, buscar soluções adequadas, traçar estratégias, optar por meios e ferramentas eficientes e, por fim, tentar solucionar o problema. Essa sucessão de procedimentos nos moldes de um fluxograma usual em projetos, assume no homem no começo da pré-história, contornos de todo espontâneos e informais. Aliás reações parecidas são comuns entre as pessoas do povo simples e pouco letrado. O importante na questão não é como, ou a que nível é levado, à base de que métodos as coisas acontecem, mas a energia, o motor que dá partida e depois move o processo uma vez em andamento, isto é, a capacidade de reflexão. E o pressuposto que permite o raciocínio já esteve presente, na sua essência pelo menos, nos primeiros humanos, assim como nas pessoas mais cultas e sábias de hoje.