A poética, pela sua própria natureza, especialmente
a lírica, com suas odes e bucólicas e outras modalidades, explora esse caudal
que movimenta e em que se movimenta o “outro mundo”. Nessa linha destacaram-se
na antiguidade os poetas líricos como Píndaro na Grécia e os romanos Virgílio e
Horácio. Quem transitou minimamente pela
literatura grega, teve obrigatoriamente contato com a obra de Píndaro. Da mesma
maneira um interessado na literatura romana deve ter lido algumas das
“bucólicas” selecionadas de Virgílio e das “odes” de Horácio. Em suas obras os
dois poetas retratam com precisão e emoção a alma do povo romano no seu período
ainda pouco ou nada contaminado com os vícios que mais tarde o levariam à ruina
e ao colapso. De outra parte Pauto fustigou com suas “comédias o que já havia de artificial e podre na
sociedade romana. Tácito contrapôs em sua obra mais conhecida “De Germania”,
não em versos mas em prosa, os costumes simples e frugais dos povos germânicos,
à decadência dos romanos, consumindo-se em vícios, em aberrações de
comportamento, superficialidades e artificialidades de toda ordem, somados aos
desmandos dos poderosos esvaindo-se em corrupção, tirania e ambições sem
limites, característicos do ocaso de uma civilização. Não cabe aqui uma análise
exaustiva do conteúdo da poética como gênero literário inspirado no quotidiano
dos povos. Felizmente de algumas décadas para cá o “outro mundo” vem
conquistando a atenção de sempre mais historiadores que nele buscam dados para
enriquecer o fazer história. Depois de décadas de um positivismo levado ao
extremo, o quotidiano do “outro mundo” vai conquistando credibilidade e
legitimidade entre os historiadores, antropólogos e especialistas de áreas
afins.
Um gênero literário
que costuma buscar inspiração em realidades do “outro mundo”, são os
contos. Embora banidos das salas de aula por pedagogos modernosos os contos dos
Irmãos Grimm fizeram com que as crianças pudessem sonhar e fantasiar à vontade.
Fadas, bruxas, duendes, princesas e príncipes, ursos, lobos, cervos, gazelas, corvos, rouxinóis e tantos outros
seres vivos, povoando florestas misteriosas, desfilavam pela imaginação infantil.
Destaco as duas dezenas de contos escritos pelo Pe. Balduino Rambo, entre 1937
e 1960. Retratam com toda a sua riqueza e densidade humana homens, mulheres e
crianças das comunidades rurais do interior do sul do Brasil. Ele próprio
procedente desse cenário, mas exercendo
suas atividades como professor de
classe média urbana, como professor universitário, como cientista de renome
internacional, descreveu, para não dizer, pintou e cantou “o humano no homem” –
“die Menschlichkeit”, seu conceito predileto, na sua autenticidade sem
máscaras.
Da mesma forma
como o “outro mundo” inspirou poetas e contadores de histórias, forneceu
o “Leitmotiv” para peças de música, sinfonias, óperas e de modo especial as
canções populares que tem como tema a história e as tradições dos povos de todo
o mundo. Inspiram-se na riqueza desse “outro mundo” com seus personagens e
atores, suas alegrias, seus sofrimentos, seus lances de heroísmo, seus valores
e compromissos, sua solidariedade, seu amor não viciado e, porque não seus defeitos,
desvios e aberrações. Tudo somado faz parte da fisionomia do “outro mundo”, no
qual a história é escrita pelo “humano no homem”.
Há, entretanto, um gênero literário, ao lado do
conto, especialmente apropriado para retratar o “outro mundo”: o Provérbio. O
dicionário Aurélio o define como sentença de caráter prático e popular, que
expressa de forma sucinta e geralmente rica em imagens. A enciclopédia
“Schweitzer Lexikon, atribui um significado mais apropriado ao provérbio,
quando a ele se recorre como uma forma de construção do conhecimento. Os
provérbios são o fruto de uma poética de como o povo expressa seu pensamento e
vem acompanhado de objetivos pedagógicos, religiosos, políticos e outros.
A intenção com a comparação entre o “mundo oficial”
que determina o compasso do andamento da história da pós modernidade e o “outro
mundo” tem muito a ver com o tema da Encíclica, apontando pela situação preocupante
em que nos encontramos com o tipo de relação com o meio ambiente que predomina.
A natureza dessa relação vem a ser essencialmente diferente daquela dos mais de
90% da história em que a humanidade
viveu e sobreviveu coletando e/ou caçando. O homem ocupava seu espaço no meio
geográfico como mais um integrante dos ecossistemas, praticamente sem interferir
na suas fisionomias naturais. A situação começou mudar com a entrada da
agricultura que foi-se desenvolvendo e progredindo na medida em que se
diversificavam e aperfeiçoavam as técnicas de lidar com os solos e as plantas cultivadas. Lentamente os agricultores
aprenderam a impor-se ao seu entorno eliminando as florestas e a vegetação
nativa para substitui-los com suas lavouras e plantações de poucas espécies
produtoras de alimento. Paralelamente, ao desencadear a “revolução dos
alimentos” conforme Darcy Ribeiro, teve início também a “primeira traição da
natureza”, no entender de Edward Wilson. De então, até 250 anos atrás, a
humanização das paisagens naturais foram-se multiplicando substituindo em
grande parte as terras planas nas margens dos rios, savanas, pradarias e
florestas. Creio que se pode afirmar que até a entrada da máquina predominou o
padrão cultural e civilizador que descrevemos acima como sendo o “outro mundo”.
Com a entrada da máquina e as tecnologias em constante aperfeiçoamento e eficiência
da tecnologia, a partir de 250 anos para cá, inaugura-se, valendo-nos da
metáfora do oceano, uma era de crescente
“mau tempo” na superfície. No começo do terceiro milênio esse “mau tempo” virou
um furacão de proporções apocalípticas e sem perspectiva de amainar a curto ou
médio prazo. O motor dessa dinâmica tem na sua essência um paradigma
civilizatório moldado pela tecnologia indispensável ao progresso em todas as
áreas da atividade humana. O clímax veio com a entrada triunfante e
avassaladora da cibernética, da informática, dda automação, dominando a produção
bens e serviços e modificando pela raiz a comunicação e o relacionamento entre
as pessoas. O lado perverso da tecnologia resume-se no poder que confere aos
que a dominam e dela se valem para produzir sempre mais e com maior eficiência.
Com isso ela deixa de ser uma ferramenta para se transformar em instrumento de
poder. Sendo assim seu uso perde a característica da neutralidade ética para,
em nome do progresso, justificá-la em
função dos fins mais discutíveis e/ou flagrantemente antiéticos ou imorais.
É preciso reconhecer que
que os produtos da técnica nãos são neutros, porque criam uma trama que acaba
de condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha
dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções que parecem
puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social
que se pretende desenvolver. (Laudato si, 107)
Vivemos, portanto, numa era em que o paradigma do “outro
mundo”, em que as calmarias e a tranquilidade do fundo do oceano vão sendo
ignoradas e esquecidas. A humanidade
impotente frente ao poder e a tirania da tecnologia concentrada nas mãos
de poucos, deixa-se arrastar indefesa pelas tempestades, maremotos e tsunamis
que se sucedem na superfície. Chegou-se ao ponto em que não se pensa, pior, não se suspeita que
exista um outro modelo, um “outro
mundo”, que foi “a casa”, a “mãe e pátria” da humanidade durante 99% da sua
história. A Encíclica fala desse drama.
Não se consegue pensar que
seja possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como
mero instrumento, porque hoje o paradigma tecnocráticos tornou-se tão dominante
que é muito difícil prescindir de seus recursos, e mais difícil ainda é
utilizar os seus recursos sem ser dominado pela sua lógica. Tornou-se anti cultural
a escolha dum estilo de vida, cujos objetivos possam ser, pelo menos em parte
dependentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e
massificador. Com efeito, a técnica tem a tendência a fazer com que nada fique
fora da sua lógica férrea, e o homem que é seu protagonista sabe que, em última
análise, não se trata de utilidade nem de bem estar, mas de domínio no extremo
da palavra. Por isso procura controlar os elementos da natureza e,
conjuntamente os da existência humana. Reduzem-se assim a capacidade de
decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa
dos indivíduos. (Laudato si, 107)