REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 69


Depois dessas considerações todas voltemos às preocupações da Encíclica na sua análise da realidade do “gargalo” que precisa ser transposto, tendo em vista o modelo tecnológico reducionista e seus efeitos perversos, do qual já nos ocupamos mais acima, quando aplicado à questão ambiental. A Encíclica resumiu o tamanho, a extensão e a profundidade do desafio a ser vencido nessa corrida suicida que com o mau uso da Ciência e Tecnologia. Não afeta apenas a agressão ao meio ambiente com todas as suas consequências, como também a realização do “humano no homem” na sua própria essência.

Assim podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do mundo atual, está principalmente a tendência, nem sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objetivos da tecnociência segundo um paradigma e compreensão que condiciona a avida das pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a toda realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio ambiente, mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afeta avida humana e a sociedade em todas as suas dimensões. (Ludato si, 107)

Nesta citação destacam-se algumas questões que são de fundamental significado quando se pretende compreender, na sua essência, a direção errática em que a humanidade se move ao lidar com “sua casa”, “sua mãe e pátria”. A grande mídia, todas as formas de comunicação social, encontros internacionais, políticas e propostas de ação, organizações não governamentais, e por aí vai, defendem, com raras exceções, o modelo reducionista da moda. O desenvolvimento de tecnologias sempre mais eficientes ignora e não toma em consideração que a tecnologia por sua própria natureza é um mero instrumento para turbinar o progresso. Acontece que o paradigma tecnocrático em vigor, moldou uma cosmovisão que não é incapaz de enxergar que existem outros paradigmas para resolver os problemas que afligem a humanidade metida num “gargalo” ou num túnel que não parece ter saída. Esse paradigma é o responsável pelo fato de os avanços tecnológicos não serem neutros, isto é, nem bons nem ruins pois, são direcionados para o exercício do poder e controle sobre o que acontece no dia a dia das pessoas e do ambiente em que vivem. O resultado mostra a marcha errática da humanidade pós moderna exibida na mídia em todas as suas modalidades. Os ecos dessa mídia perversa se fazem sentir nos rincões mais remotos de planeta viciando, perturbando e distorcendo o quotidiano das crianças, jovens, adultos e idosos. Todos são obrigados a respirar essa atmosfera e por isso mesmo não há como proteger-se  dos efeitos desse hálito apocalíptico que atordoa as pessoas de todas as idades e níveis de instrução. Os noticiários que se ocupam com esse mundo nada animador, dominam os meios de comunicação escritos, as redes de rádio e televisão e, de modo mais devastador a mídia eletrônica. Em  resumo o que mostram, informam e difundem? Povoam o mundo da grande mídia crises de governo, divórcios de celebridades, escândalos, atentados,  corrupção de dimensões monumentais, revoluções, congressos, acidentes, crimes, desfiles de vaidades, catástrofes naturais e o convívio entre os homens naquilo que cultivam de mais fútil e deplorável. O  relativismo ético e as ideologias mais deploráveis e absurdas alimentam o politicamente correto que dita as normas de comportamento individual e o relacionamento das pessoas entre si. O barulho, a cacofonia e dissonâncias moldam o perfil do mundo pintado sob medida para um público errático, para o qual “harmonia é chata”, como escreveu Francis Collins, diretor do projeto que mapeou o código genético humano, em seu livro “A Linguagem de Deus”.

Acontece que paralelo ao panorama oferecido  pela mídia e que alimenta  e tange as massas humanas como se fossem rebanhos de gado, incapazes de perceber que prospera um mundo paralelo, ou um outro mundo real e possível, ao qual os noticiários reservam um espaço insignificante para preencher os vãos que o grande noticiário deixa em aberto. Neste mundo desacreditado, ignorado e até desprezado prospera o que o humano tem de verdadeiramente humano, “die Meschlichkeit”. Este outro mundo é regido pelas eternas preocupações da humanidade de todos os tempos, onde a alegria alterna com o sofrimento, a solidariedade dá o tom no relacionamento humano, o amor desinteressado encontra chão fértil, a lealdade é um compromisso que dispensa assinatura em cartório. Nele  encontramos o lavrador arando a terra, o engenheiro desenhando projetos, a mãe  amamentando o filho, o professor preparando a aula, o médico visitando seus pacientes, a enfermeira cuidando dos curativos, o comerciante oferecendo suas mercadorias, crianças cantando canções que perpassam gerações, os enfermos enfrentado suas doenças e lidando com a morte que se aproxima, a mãe em vigília junto ao seu bebê, o pai de família fazendo as contas para garantir o sustento da família, a família, os parentes e a comunidade velando e sepultando seus mortos. Este mundo ignorado ou relegado a um segundo plano pela política, pela burocracia e poder econômico merece uma reflexão séria e nele  podem ser buscados os valores capazes de fazer passar a humanidade, arranhada sim, mas são e salva, pelo gargalo no qual se encontra entalada.

Comparando a história da humanidade ao oceano, o mundo da grande mídia que tentamos descrever, corresponde à superfície sempre em movimento. Aos intervalos de bonança sucedem tempestades, maremotos, tsunamis, transformando, por vezes,  a superfície num cenário de terror de apocalipse. Descendo algumas centenas de metros para o fundo, a fúria que reina na superfície vai diminuindo até ser substituída pela eterna calmaria na qual a vida marinha encontra a tranquilidade necessária para proliferar e prosperar, sem ser perturbada pelos vagalhões que transformam a superfície num palco assustador. Pois, é na penumbra desse cenário que desce até os abismos mais escuros do oceano, que a vida de milhões de espécies de organismos vivos, de todos os tamanhos, das formas mais bizarras e da combinação de cores mais inusitadas, vivem o perpétuo vir e devir da história da vida. E, se o faro dos cientistas  está correto, foi nesse ambiente que surgiram, há bilhões de anos, as primeiras  formas de vida. E supõe-se que na tranquilidade do fundo do oceano se devam procurar as raízes remotas do próprio homem  como espécie biológica.

Os dois cenários que os oceanos oferecem, feitas as devidas restrições e tomadas as indispensáveis precauções, servem de metáfora esclarecedora para entender um pouco melhor o que aconteceu e continua acontecendo no “oceano” da história da humanidade. Na superfície alternam-se momentos de relativa tranquilidade com outros marcados pelo mau tempo com suas guerras, revoluções, genocídios, atentados, corrupção, traições, escândalos, catástrofes naturais, tragédias aéreas, terrestres e marítima e, para completar o quadro, a agressão acelerada ao meio ambiente, essa  é a grande preocupação da Encíclica do Papa que nos inspira essas reflexões. O cenário produto do relativismo ético e moral, do fim justificando os meios mais condenáveis, o homem feito lobo para seus semelhantes, a voracidade do consumo, fornecem a matéria prima para saciar a fome e a sede dos seus públicos. Encontra neste mundo pasto para alimentar as massas ululantes que se acotovelam nos shoppings, entulham as praias, infernizam com seus sons e farras o descanso nas noites e verão de homens e mulheres depois de uma jornada de um dia de trabalho duro. Em resumo. Esse cenário alimenta o mundo da zoeira, do estardalhaço, que se delicia com o que a civilização pós moderna tem a oferecer em termos de exibicionismo, de vaidades e de transitório. Sacia, enfim, a parte do mundo que considera a harmonia uma chatice.

Por mais poderoso e avassalador que possa parecer essa superfície do oceano da história, ele não decide sobre a teleologia que garante rumo e norte para a aventura humana. São momentos, manifestações episódicas e erupções passageiras, que enfeiam, sim, e atrapalham o fluxo da saga humana. A realização do autêntico humano do homem, “die Menschlichkeit”, acontece em outro nível e numa outra dimensão. A sequência dos atos do quotidiano expressam-se pela sua natureza nas alegrias, esperanças, sofrimentos e anseios do homem comum. Por serem rotineiros  e pouco espetaculares não interessam aos grandes noticiários e seu público. Nem tão pouco fazem parte da agenda dos burocratas, administradores públicos e outras instâncias, em tese responsáveis pelo bom andamento de uma sociedade. Só em período de eleição merece a atenção dos discursos políticos. De resto este “outro mundo” não passa em muito as pequenas alegrias, as preocupações e os sofrimentos das pessoas que vivem no anonimato, das famílias humildes dos agricultores, operários, prestadores de serviço, dos pequenos e médios empresários, dos profissionais, lutando contra toda a sorte de dificuldades. Embora não dite moda, não empolgue festas, não arraste multidões para shows, não se envolva em escândalos, em chantagens de poderosos, ou, quem sabe, por isso mesmo, é o mundo em que se consolida o perene da história de todos os tempos. Perene porque alimentado pelo que há de ontológico no qual se firma e do qual haure a seiva que alimenta o verdadeiro “humano no homem”.


Mesmo que aos objetivos da grande mídia esse outro mundo pouco ou nada interesse, ele não deixou de inspirar e é responsável pelas obras que se tornaram perenes e imortais, porque inspiradas na própria natureza humana e, por isso mesmo, clássicas pois, registram, cantam, pintam, entalha e assim imortalizam o que há de perene no homem. Mas, são as obra literárias que sobreviveram a centenas e milhares de anos às  fases mais conturbadas e tumultuadas da história e aos períodos de relativa calmaria, que têm como objeto e inspiração a essência da natureza humana. De um lado, a realização, a busca da felicidade pessoal, a solidariedade, a sede de justiça, a resposta para questões existenciais como: “o donde viemos, que somos, porque estamos aqui e para onde vamos”. De outra lado, fazem parte deste “outro mundo” as pequenas e grandes alegrias motivadas pelas conquistas e acontecimentos do quotidiano, como também os sofrimentos, as decepções e as frustrações, que tumultuam e atrapalham  caminhada do dia a dia.

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