Depois dessas considerações todas voltemos às
preocupações da Encíclica na sua análise da realidade do “gargalo” que precisa ser
transposto, tendo em vista o modelo tecnológico reducionista e seus efeitos
perversos, do qual já nos ocupamos mais acima, quando aplicado à questão
ambiental. A Encíclica resumiu o tamanho, a extensão e a profundidade do
desafio a ser vencido nessa corrida suicida que com o mau uso da Ciência e
Tecnologia. Não afeta apenas a agressão ao meio ambiente com todas as suas
consequências, como também a realização do “humano no homem” na sua própria
essência.
Assim podemos afirmar que,
na origem de muitas dificuldades do mundo atual, está principalmente a
tendência, nem sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objetivos da
tecnociência segundo um paradigma e compreensão que condiciona a avida das
pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a
toda realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio ambiente,
mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afeta avida humana e a sociedade
em todas as suas dimensões. (Ludato si, 107)
Nesta citação destacam-se algumas questões que são
de fundamental significado quando se pretende compreender, na sua essência, a
direção errática em que a humanidade se move ao lidar com “sua casa”, “sua mãe
e pátria”. A grande mídia, todas as formas de comunicação social, encontros
internacionais, políticas e propostas de ação, organizações não governamentais,
e por aí vai, defendem, com raras exceções, o modelo reducionista da moda. O
desenvolvimento de tecnologias sempre mais eficientes ignora e não toma em
consideração que a tecnologia por sua própria natureza é um mero instrumento
para turbinar o progresso. Acontece que o paradigma tecnocrático em vigor,
moldou uma cosmovisão que não é incapaz de enxergar que existem outros
paradigmas para resolver os problemas que afligem a humanidade metida num
“gargalo” ou num túnel que não parece ter saída. Esse paradigma é o responsável
pelo fato de os avanços tecnológicos não serem neutros, isto é, nem bons nem
ruins pois, são direcionados para o exercício do poder e controle sobre o que
acontece no dia a dia das pessoas e do ambiente em que vivem. O resultado
mostra a marcha errática da humanidade pós moderna exibida na mídia em todas as
suas modalidades. Os ecos dessa mídia perversa se fazem sentir nos rincões mais
remotos de planeta viciando, perturbando e distorcendo o quotidiano das
crianças, jovens, adultos e idosos. Todos são obrigados a respirar essa
atmosfera e por isso mesmo não há como proteger-se dos efeitos desse hálito apocalíptico que
atordoa as pessoas de todas as idades e níveis de instrução. Os noticiários que
se ocupam com esse mundo nada animador, dominam os meios de comunicação
escritos, as redes de rádio e televisão e, de modo mais devastador a mídia
eletrônica. Em resumo o que mostram,
informam e difundem? Povoam o mundo da grande mídia crises de governo,
divórcios de celebridades, escândalos, atentados, corrupção de dimensões monumentais,
revoluções, congressos, acidentes, crimes, desfiles de vaidades, catástrofes
naturais e o convívio entre os homens naquilo que cultivam de mais fútil e
deplorável. O relativismo ético e as
ideologias mais deploráveis e absurdas alimentam o politicamente correto que
dita as normas de comportamento individual e o relacionamento das pessoas entre
si. O barulho, a cacofonia e dissonâncias moldam o perfil do mundo pintado sob
medida para um público errático, para o qual “harmonia é chata”, como escreveu
Francis Collins, diretor do projeto que mapeou o código genético humano, em seu
livro “A Linguagem de Deus”.
Acontece que paralelo ao panorama oferecido pela mídia e que alimenta e tange as massas humanas como se fossem
rebanhos de gado, incapazes de perceber que prospera um mundo paralelo, ou um
outro mundo real e possível, ao qual os noticiários reservam um espaço
insignificante para preencher os vãos que o grande noticiário deixa em aberto.
Neste mundo desacreditado, ignorado e até desprezado prospera o que o humano
tem de verdadeiramente humano, “die Meschlichkeit”. Este outro mundo é regido
pelas eternas preocupações da humanidade de todos os tempos, onde a alegria
alterna com o sofrimento, a solidariedade dá o tom no relacionamento humano, o
amor desinteressado encontra chão fértil, a lealdade é um compromisso que
dispensa assinatura em cartório. Nele
encontramos o lavrador arando a terra, o engenheiro desenhando projetos,
a mãe amamentando o filho, o professor
preparando a aula, o médico visitando seus pacientes, a enfermeira cuidando dos
curativos, o comerciante oferecendo suas mercadorias, crianças cantando canções
que perpassam gerações, os enfermos enfrentado suas doenças e lidando com a
morte que se aproxima, a mãe em vigília junto ao seu bebê, o pai de família
fazendo as contas para garantir o sustento da família, a família, os parentes e
a comunidade velando e sepultando seus mortos. Este mundo ignorado ou relegado
a um segundo plano pela política, pela burocracia e poder econômico merece uma
reflexão séria e nele podem ser buscados
os valores capazes de fazer passar a humanidade, arranhada sim, mas são e
salva, pelo gargalo no qual se encontra entalada.
Comparando a história da humanidade ao oceano, o
mundo da grande mídia que tentamos descrever, corresponde à superfície sempre
em movimento. Aos intervalos de bonança sucedem tempestades, maremotos,
tsunamis, transformando, por vezes, a
superfície num cenário de terror de apocalipse. Descendo algumas centenas de
metros para o fundo, a fúria que reina na superfície vai diminuindo até ser
substituída pela eterna calmaria na qual a vida marinha encontra a
tranquilidade necessária para proliferar e prosperar, sem ser perturbada pelos
vagalhões que transformam a superfície num palco assustador. Pois, é na
penumbra desse cenário que desce até os abismos mais escuros do oceano, que a
vida de milhões de espécies de organismos vivos, de todos os tamanhos, das
formas mais bizarras e da combinação de cores mais inusitadas, vivem o perpétuo
vir e devir da história da vida. E, se o faro dos cientistas está correto, foi nesse ambiente que
surgiram, há bilhões de anos, as primeiras
formas de vida. E supõe-se que na tranquilidade do fundo do oceano se
devam procurar as raízes remotas do próprio homem como espécie biológica.
Os dois cenários que os oceanos oferecem, feitas as
devidas restrições e tomadas as indispensáveis precauções, servem de metáfora
esclarecedora para entender um pouco melhor o que aconteceu e continua
acontecendo no “oceano” da história da humanidade. Na superfície alternam-se
momentos de relativa tranquilidade com outros marcados pelo mau tempo com suas
guerras, revoluções, genocídios, atentados, corrupção, traições, escândalos,
catástrofes naturais, tragédias aéreas, terrestres e marítima e, para completar
o quadro, a agressão acelerada ao meio ambiente, essa é a grande preocupação da Encíclica do Papa
que nos inspira essas reflexões. O cenário produto do relativismo ético e
moral, do fim justificando os meios mais condenáveis, o homem feito lobo para
seus semelhantes, a voracidade do consumo, fornecem a matéria prima para saciar
a fome e a sede dos seus públicos. Encontra neste mundo pasto para alimentar as
massas ululantes que se acotovelam nos shoppings, entulham as praias,
infernizam com seus sons e farras o descanso nas noites e verão de homens e
mulheres depois de uma jornada de um dia de trabalho duro. Em resumo. Esse
cenário alimenta o mundo da zoeira, do estardalhaço, que se delicia com o que a
civilização pós moderna tem a oferecer em termos de exibicionismo, de vaidades
e de transitório. Sacia, enfim, a parte do mundo que considera a harmonia uma
chatice.
Por mais poderoso e avassalador que possa parecer
essa superfície do oceano da história, ele não decide sobre a teleologia que
garante rumo e norte para a aventura humana. São momentos, manifestações
episódicas e erupções passageiras, que enfeiam, sim, e atrapalham o fluxo da
saga humana. A realização do autêntico humano do homem, “die Menschlichkeit”,
acontece em outro nível e numa outra dimensão. A sequência dos atos do
quotidiano expressam-se pela sua natureza nas alegrias, esperanças, sofrimentos
e anseios do homem comum. Por serem rotineiros
e pouco espetaculares não interessam aos grandes noticiários e seu
público. Nem tão pouco fazem parte da agenda dos burocratas, administradores
públicos e outras instâncias, em tese responsáveis pelo bom andamento de uma
sociedade. Só em período de eleição merece a atenção dos discursos políticos.
De resto este “outro mundo” não passa em muito as pequenas alegrias, as
preocupações e os sofrimentos das pessoas que vivem no anonimato, das famílias
humildes dos agricultores, operários, prestadores de serviço, dos pequenos e
médios empresários, dos profissionais, lutando contra toda a sorte de
dificuldades. Embora não dite moda, não empolgue festas, não arraste multidões
para shows, não se envolva em escândalos, em chantagens de poderosos, ou, quem
sabe, por isso mesmo, é o mundo em que se consolida o perene da história de
todos os tempos. Perene porque alimentado pelo que há de ontológico no qual se
firma e do qual haure a seiva que alimenta o verdadeiro “humano no homem”.
Mesmo que aos objetivos da grande mídia esse outro
mundo pouco ou nada interesse, ele não deixou de inspirar e é responsável pelas
obras que se tornaram perenes e imortais, porque inspiradas na própria natureza
humana e, por isso mesmo, clássicas pois, registram, cantam, pintam, entalha e
assim imortalizam o que há de perene no homem. Mas, são as obra literárias que
sobreviveram a centenas e milhares de anos às
fases mais conturbadas e tumultuadas da história e aos períodos de
relativa calmaria, que têm como objeto e inspiração a essência da natureza
humana. De um lado, a realização, a busca da felicidade pessoal, a
solidariedade, a sede de justiça, a resposta para questões existenciais como:
“o donde viemos, que somos, porque estamos aqui e para onde vamos”. De outra
lado, fazem parte deste “outro mundo” as pequenas e grandes alegrias motivadas
pelas conquistas e acontecimentos do quotidiano, como também os sofrimentos, as
decepções e as frustrações, que tumultuam e atrapalham caminhada do dia a dia.