No tempo em
que assinava o jornal Vale dos Sinos (VS) costumava ler com grande interesse a
coluna do promotor Eugênio P. Amorim na
edição de domingo do (ABC). Seus
comentários costumavam girar em torno de assuntos de interesse político,
econômico, social e outros da área. Numa dessas análises ele surpreendeu com
uma reflexão que se encaixa como uma luva na linha de observações que estamos
desenvolvendo. Presumo a autorização do ilustre promotor Amorim, para
enriquecer com sua bela crônica as reflexões sobre a Encíclica Laudadto si do
Papa. Nela ele pinta um quadro perfeito das suas experiências de infância e
adolescência, do que entendemos ao falar
do “outro mundo”. A justificativa na apresentação da sua coluna não deixa
dúvidas. “Eu sei que os senhores leitores aguardavam um escrito verborrágico
sobre o episódio da Indonésia ou sobre o pornográfico pacote do governo
federal. Mas, estou cansado e quero falar de coisas boas”.
A história que nos conta o promotor Amorim tem como
protagonista um menino, seus pais e o cenário típico, próximo a uma praia tranquila
de uma lagoa, longe da zoeira, da balbúrdia e atropelo da cidade grande. O
menino vivia num ambiente modesto mas feliz, de uma felicidade que as pessoas
da cidade grande costumam classificar de sem graça, porque longe da correria,
do empurra-empurra, longe do odor do asfalto, longe dos shoppings com
suas massas de consumidores e exibicionistas insaciáveis; longe enfim, da
atmosfera poluída por notícias e escândalos, corrupção, mortes no trânsito,
assassinatos; longe também da politicagem, dos desfiles de vaidades, de pessoas
feitas “lobos” à espreita de quem devorar. Com o título “Lapsos de Memória da
infância e adolescência que são meus” começa o autor com uma história do que
foi e ainda é o quotidiano de milhões de pessoas modestas, mas felizes
irradiando por gestos, palavras, olhares e ações, o autêntico humano que anima
e dá sentido ao existir. “Tempos que nos fazem indagar se a nossa felicidade é
tão maior e inversamente proporcional ao que obtemos de dinheiro, fama e
poder”.
A crônica nos fala de um menino brincando entre
vacas, cavalos, galinhas e porcos. “Não havia internet nem jogos eletrônicos.
Mas não havia problema. O mundo em que a criança vivia e a família com quem
vivia, os vizinhos por perto, mais a
imaginação infantil e dos adultos, supriam com folga os meios de diversão
neurotizantes, oferecidos pela moderna tecnologia que tiraniza o dia e não raro as noites de crianças e
adolescentes. Planejavam-se viagens imaginárias até “a África” e a outros
destinos pelo mundo afora sugeridas pela fantasia e a imaginação. Na casinha
perto da lagoa, o feijão com arroz e carne, o picolé feite com banana e leite,
os doces de abóbora e melancia de porco aprontados pelas mãos hábeis da mãe, o
café de manhã com pão, margarina e mortadela, sem luxo, mas bom demais. A
rotina do dia com as pequenas obrigações, o estudo, os pequenos
desentendimentos com os professores, a presença constante do pai firme e
correto e da mãe solícita mas capaz de atitudes até duras quando preciso”.
O promotor Amorim menciona como referência os anos
de 1970 e 1980. Eu próprio recuo com as minhas lembranças para a década de
1930-1940 e percebo que na essência não havia diferença entre os cenários da
infância e adolescência daquelas descrita pelo promotor Amorim. As imagens e
acontecimentos que emergem da minha memória, são na maioria da década de 1930.
Meu pai um típico pequeno agricultor no hoje município de Tupandi, princípios
éticos claros e inegociáveis, senso de responsabilidade à toda prova, solidário para com os vizinhos, muito
religioso mas nada piegas, percorria basicamente dois caminhos: o diário de ida
e volta da roça e o dominical de ida e volta da igreja. De resto suas preocupavam
limitavam-se ao sustento da numerosa família
e ao esforço de levar os filhos e filhas a serem, quando adultos, o esteio das
famílias próprias e membros comprometidos com as sus comunidades. Minha mãe,
discreta e de poucas palavras, mantinha a casa em rigorosa ordem, mantinha os
filhos sob vigilância amorosa mas, sob rédeas curtas e, quando preciso, apelava
para a vara de marmelo, e nada disso neurotizou nem a mim nem a nenhum dos meus
irmãos e irmãs. Tanto assim que meu irmão mais velho foi professor de Ciências
no ensino médio, catedrático fundador da UFRGS e cientista de reconhecimento
nacional e internacional. Um outro irmão foi professor de física e química no
ensino médio, um terceiro professor numa escola comunitária e uma das minhas
irmãs, com doutorado nos Estados Unidos em literatura inglesa e americana,
lecionou essas disciplinas na UFSM. Dois outros irmãos foram agricultores como o
pai. Uma segunda irmã sofria com problemas de locomoção, costurava e cuidava da
cozinha. Eu mesmo, o mais novo da família, sou professor titular emérito da
UFRGS e da Unisinos. Nossos brinquedos buscavam sua inspiração no entorno rural
com suas plantações e sobras da floresta virgem original. As músicas e as
melodias que continuam a povoar as minhas lembranças de 80 anos passados vinha
da mata perto de casa, das laranjeiras e da copa das araucárias plantadas por
minha mãe, que se alinhavam majestosas ao longo das taipas do potreiro e do
curral dos porcos. A inexistência de energia elétrica transformava as noites e o
céu estrelado, o luar, os raios e trovões das trovoadas em cenários de um
encanto primigênio impossível de descrever. Vejo ainda hoje minha mãe no
avarandado da casa, durante horas, apreciando silenciosa, as tempestades vindas
do sul nas tardes e noites de verão.
Poderíamos multiplicar ao indefinido os cenários e
configurações mais inusitadas e neles homens, mulheres e crianças passando os
dias de suas vidas longe da grande movimentação do mundo que faz a história
oficial, vivendo no anonimato uma vida sem alarde e sem artificialismo, porém,
prenhe de calor humano, mostrando o que de autenticamente humano move as
pessoas.