REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 71


A poética, pela sua própria natureza, especialmente a lírica, com suas odes e bucólicas e outras modalidades, explora esse caudal que movimenta e em que se movimenta o “outro mundo”. Nessa linha destacaram-se na antiguidade os poetas líricos como Píndaro na Grécia e os romanos Virgílio e Horácio. Quem transitou minimamente  pela literatura grega, teve obrigatoriamente contato com a obra de Píndaro. Da mesma maneira um interessado na literatura romana deve ter lido algumas das “bucólicas” selecionadas de Virgílio e das “odes” de Horácio. Em suas obras os dois poetas retratam com precisão e emoção a alma do povo romano no seu período ainda pouco ou nada contaminado com os vícios que mais tarde o levariam à ruina e ao colapso. De outra parte Pauto fustigou com suas “comédias  o que já havia de artificial e podre na sociedade romana. Tácito contrapôs em sua obra mais conhecida “De Germania”, não em versos mas em prosa, os costumes simples e frugais dos povos germânicos, à decadência dos romanos, consumindo-se em vícios, em aberrações de comportamento, superficialidades e artificialidades de toda ordem, somados aos desmandos dos poderosos esvaindo-se em corrupção, tirania e ambições sem limites, característicos do ocaso de uma civilização. Não cabe aqui uma análise exaustiva do conteúdo da poética como gênero literário inspirado no quotidiano dos povos. Felizmente de algumas décadas para cá o “outro mundo” vem conquistando a atenção de sempre mais historiadores que nele buscam dados para enriquecer o fazer história. Depois de décadas de um positivismo levado ao extremo, o quotidiano do “outro mundo” vai conquistando credibilidade e legitimidade entre os historiadores, antropólogos e especialistas de áreas afins.

Um gênero literário  que costuma buscar inspiração em realidades do “outro mundo”, são os contos. Embora banidos das salas de aula por pedagogos modernosos os contos dos Irmãos Grimm fizeram com que as crianças pudessem sonhar e fantasiar à vontade. Fadas, bruxas, duendes, princesas e príncipes, ursos, lobos, cervos,  gazelas, corvos, rouxinóis e tantos outros seres vivos, povoando florestas misteriosas, desfilavam pela imaginação infantil. Destaco as duas dezenas de contos escritos pelo Pe. Balduino Rambo, entre 1937 e 1960. Retratam com toda a sua riqueza e densidade humana homens, mulheres e crianças das comunidades rurais do interior do sul do Brasil. Ele próprio procedente desse cenário, mas exercendo  suas atividades  como professor de classe média urbana, como professor universitário, como cientista de renome internacional, descreveu, para não dizer, pintou e cantou “o humano no homem” – “die Menschlichkeit”, seu conceito predileto, na sua autenticidade sem máscaras.

Da mesma forma  como o “outro mundo” inspirou poetas e contadores de histórias, forneceu o “Leitmotiv” para peças de música, sinfonias, óperas e de modo especial as canções populares que tem como tema a história e as tradições dos povos de todo o mundo. Inspiram-se na riqueza desse “outro mundo” com seus personagens e atores, suas alegrias, seus sofrimentos, seus lances de heroísmo, seus valores e compromissos, sua solidariedade, seu amor não viciado e, porque não seus defeitos, desvios e aberrações. Tudo somado faz parte da fisionomia do “outro mundo”, no qual a história é escrita pelo “humano no homem”.

Há, entretanto, um gênero literário, ao lado do conto, especialmente apropriado para retratar o “outro mundo”: o Provérbio. O dicionário Aurélio o define como sentença de caráter prático e popular, que expressa de forma sucinta e geralmente rica em imagens. A enciclopédia “Schweitzer Lexikon, atribui um significado mais apropriado ao provérbio, quando a ele se recorre como uma forma de construção do conhecimento. Os provérbios são o fruto de uma poética de como o povo expressa seu pensamento e vem acompanhado de objetivos pedagógicos, religiosos, políticos e outros.

A intenção com a comparação entre o “mundo oficial” que determina o compasso do andamento da história da pós modernidade e o “outro mundo” tem muito a ver com o tema da Encíclica, apontando pela situação preocupante em que nos encontramos com o tipo de relação com o meio ambiente que predomina. A natureza dessa relação vem a ser essencialmente diferente daquela dos mais de 90% da história  em que a humanidade viveu e sobreviveu coletando e/ou caçando. O homem ocupava seu espaço no meio geográfico como mais um integrante dos ecossistemas, praticamente sem interferir na suas fisionomias naturais. A situação começou mudar com a entrada da agricultura que foi-se desenvolvendo e progredindo na medida em que se diversificavam e aperfeiçoavam as técnicas de lidar com os solos e  as plantas cultivadas. Lentamente os agricultores aprenderam a impor-se ao seu entorno eliminando as florestas e a vegetação nativa para substitui-los com suas lavouras e plantações de poucas espécies produtoras de alimento. Paralelamente, ao desencadear a “revolução dos alimentos” conforme Darcy Ribeiro, teve início também a “primeira traição da natureza”, no entender de Edward Wilson. De então, até 250 anos atrás, a humanização das paisagens naturais foram-se multiplicando substituindo em grande parte as terras planas nas margens dos rios, savanas, pradarias e florestas. Creio que se pode afirmar que até a entrada da máquina predominou o padrão cultural e civilizador que descrevemos acima como sendo o “outro mundo”. Com a entrada da máquina e as tecnologias em constante aperfeiçoamento e eficiência da tecnologia, a partir de 250 anos para cá, inaugura-se, valendo-nos da metáfora do oceano,  uma era de crescente “mau tempo” na superfície. No começo do terceiro milênio esse “mau tempo” virou um furacão de proporções apocalípticas e sem perspectiva de amainar a curto ou médio prazo. O motor dessa dinâmica tem na sua essência um paradigma civilizatório moldado pela tecnologia indispensável ao progresso em todas as áreas da atividade humana. O clímax veio com a entrada triunfante e avassaladora da cibernética, da informática, dda automação, dominando a produção bens e serviços e modificando pela raiz a comunicação e o relacionamento entre as pessoas. O lado perverso da tecnologia resume-se no poder que confere aos que a dominam e dela se valem para produzir sempre mais e com maior eficiência. Com isso ela deixa de ser uma ferramenta para se transformar em instrumento de poder. Sendo assim seu uso perde a característica da neutralidade ética para, em nome do progresso,  justificá-la em função dos fins mais discutíveis e/ou flagrantemente  antiéticos ou imorais.

É preciso reconhecer que que os produtos da técnica nãos são neutros, porque criam uma trama que acaba de condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver. (Laudato si, 107)


Vivemos, portanto, numa era em que o paradigma do “outro mundo”, em que as calmarias e a tranquilidade do fundo do oceano vão sendo ignoradas e esquecidas. A humanidade  impotente frente ao poder e a tirania da tecnologia concentrada nas mãos de poucos, deixa-se arrastar indefesa pelas tempestades, maremotos e tsunamis que se sucedem na superfície. Chegou-se ao ponto em que não  se pensa, pior, não se suspeita que exista  um outro modelo, um “outro mundo”, que foi “a casa”, a “mãe e pátria” da humanidade durante 99% da sua história. A Encíclica fala desse drama.


Não se consegue pensar que seja possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero instrumento, porque hoje o paradigma tecnocráticos tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir de seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem ser dominado pela sua lógica. Tornou-se anti cultural a escolha dum estilo de vida, cujos objetivos possam ser, pelo menos em parte dependentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador. Com efeito, a técnica tem a tendência a fazer com que nada fique fora da sua lógica férrea, e o homem que é seu protagonista sabe que, em última análise, não se trata de utilidade nem de bem estar, mas de domínio no extremo da palavra. Por isso procura controlar os elementos da natureza e, conjuntamente os da existência humana. Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos. (Laudato si, 107)

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