Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 37 -

Capítulo II
O Evangelho da Criação

No capítulo I a Encíclica faz um diagnóstico do “que está a acontecer com a nossa casa”. A natureza  “é casa da humanidade”. As preocupações ecológicas devem-se fundamentar sobre a riqueza e a complexidade desses conceito. Este conceito não se esgota no fato de a espécie humana ter-se originado em algum momento da história da terra e evoluído até o presente momento como as demais espécies vivas. A natureza é mais do que isso. Não se resume em fornecer alimentos, abrigo e condições para perpetuar a espécie. Se fosse apenas isso, em termos de significado para o homem, ela não passaria além do que significa a casinha para o João de Barro, o ninho para o sabiá e a toca para o tatu. Acontece que a competência, a amplitude e os limites das Ciências Naturais resume-se nesse campo da subsistência física. Não se pode nem se pretende questionar a importância desse lado da preocupação com a ecologia. Entretanto, a natureza como casa é muito mais do que ambiente protegido por quatro paredes, repartições internas adequadas para servir de abrigo no qual o se humano nasce, cresce, encontra proteção contra as intempéries, a ameaça dos animais selvagens e até do próprio homem. Além de alimentar-se, proteger o corpo e reproduzir-se o homem tem demandas espirituais a serem atendidas. Para ser de  fato “uma casa”, a natureza precisa  oferecer as condições para suprir as exigências tanto materiais, quanto espirituais. Em outras palavras. A natureza somente então é uma “verdadeira casa” quando permite a realização harmônica do “humano no homem” –“Die Mesnchlichkeit”. Sobre este pressuposto holístico é que as preocupações ecológicas devem ser conduzidas, as políticas concebidas e as ações planejadas. Do contrário, as mais belas intenções e os mais pomposos acordos estagnam em iniciativas e ações tópicas de interesses nobres ou nem tanto.

No Capítulo II intitulado “O Evangelho da Criação”, a Encíclica começa chamando a atenção para a necessidade de a Ciência e a Religião se darem a mão, para juntos, respeitando as competências de cada lado, apresentarem um retrato completo do que vem a ser a natureza. Depois de apontar algumas dificuldades que podem atrapalhar uma aliança estratégica entre a Ciência e a Religião, no enfrentamento do grave problema da agressão ao ambiente natural, o Papa cita a negação da Criação, por parte de políticos, pensadores e cientistas, como um dos mais difíceis de superar. Não poucos desqualificam como irracional a alternativa da Criação ou pelos menos com totalmente secundária. Com isso jogam para a periferia dos debates, nada menos do que a metade  da questão inviabilizando, na verdade, a compreensão do todo da natureza. Ficam de fora, ou marginalizadas as contribuições das Ciências Humanas, Artes, Filosofia, Teologia e Religiões. Esses campos têm muito a oferecer para “uma ecologia integral e o pleno desenvolvimento do Gênero humano. Todavia a Ciência e a Religião que fornecem  diferentes abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambos”. (Laudato si, 62).

A disposição para o diálogo encontra ressonância positiva entre um número crescente de cientistas de peso. Para evitar qualquer interpretação distorcida, registro o  que Edward Wilson, nosso conhecido, manifestou a respeito. Ele vem a ser um representante emblemático do cientista que não trabalha com parâmetros fora do campo da sua especialidade e quanto ao resto se declara “um humanista secular”. No seu livro “A Criação- como salvar a vida na Terra, registrou:

Já conheço grande parte dos argumentos religiosos em favor da Criação e gostaria de aprender mais. Agora apresentarei ao senhor, e outros que queiram ouvir, os argumentos científicos. O senhor não irá concordar com tudo que afirmo sobre a origem da vida – a ciência e a religião não se mesclam facilmente nesse assunto – mas gostaria de pensar que nessa questão, que é crucial, nós dois temos um propósito comum. (Wilson, 2.008, p. 16)

O propósito  comum, “a salvação da vida na terra” de Wilson vem a coincidir com a salvação da “nossa casa” do Papa Francisco. Felizmente, a essa altura da história, vozes de peso partindo das mais diversas especialidades, vão fazendo coro, cada uma à sua maneira com o apelo de Edward Wilson. Einstein é de opinião que “sem a Religião a Ciência é manca e sem a Ciência  a Religião é cega”. Stephen Hawkings conclui seu livro “Uma breve história do tempo” com o parágrafo.

No entanto, se de fato descobrirmos  uma teoria completa, todos acabarão compreendendo seus princípios amplos, não apenas alguns cientistas. Então, devemos todos  -  cientistas, filósofos e pessoas comuns  -  ser capazes de tomar parte na discussão para saber o porque de nós e o universo existimos. Se descobrirmos a resposta para isso, será o triunfo supremo da razão humana  -  pois, então conheceremos  a mente de Deus. (Hawlings, 2015, p. 229)

A Stephen Hawkings, um dos físicos mais influentes ainda vivos, vem somar-se Francis Collins, diretor do “Projeto Genoma Humano” e um dos mais respeitados especialistas em Genética Médica. Sua opinião sobre os limites da Ciência e seus métodos  e a necessidade de recorrer a uma solução completa fora desse âmbito, está expressa na seguinte reflexão.

Também fica claro para mim que a Ciência, apesar dos seus poderes inquestionáveis de desvendar os mistérios do mundo natural, não me iria levar mais adiante na resolução da questão de Deus. Se Deus existe, se encontra fora do mundo natural, portanto, os instrumentos científicos não são ferramentas certas para aprender sobre Ele. Em vez disso,  como eu estava começando a entender por olhar para dentro do meu coração, a prova da existência de Deus teria de vir de outras direções e a decisão definitiva deveria se basear na Fé, não em provas. Ainda perseguido por perturbar as incertezas do caminho que eu havia tomado, eu precisava aprender que aceitara a possibilidade de uma visão do mundo espiritual, incluindo a existência de Deus. (Collins, 2.007, p. 38-39)

As referências que acabamos de anotar pretendem ser amostras representativas de cientistas de primeira linha demonstrando que da parte da Ciência existe vontade explícita para o dialogo com as Ciências Humanas, Artes, Filosofia, Teologia e Religião, sobre preocupações que dizem respeito a “nossa casa comum”, a Natureza. A pergunta que a essa altura se põe logicamente é esta: O que cabe às Ciências Naturais e o que cabe às Ciências do Espírito em busca da compreensão holística da Natureza como base para os que têm a missão de assumir o ônus de formular as políticas, tomar as iniciativas e oferecer planos de ação em questões que dizem respeito à ecologia.

O caminho foi traçado já há 100 anos pelo especialista em formigas e térmites  e sua relação simbiótica com fungos, Erich  Wassmann e redesenhado pelo cosmólogo e teólogo polonês Michael Keller. Erich Wassmann (1859-1931) associou-se aos cientistas e filósofos na virada do século XIX e XX, assumindo uma posição mais cautelosa em suas críticas às teorias e hipóteses evolucionistas, mas, ao mesmo tempo levar a sério as conquistas da Ciência, fazendo delas aliadas quando se trata de clarear aspectos tanto do interesse da Ciência, quanto da Filosofia e Religião. Wassmann resumiu suas conclusões no periódico Stimmen der Zeit com o título: “A concepção cristã da Natureza à luz das modernas descobertas científicas”: “Quem sabe, a pergunta seja esta: Será que toda a cosmovisão cristã não se fundamenta sobre a “imagem antiga do mundo”, totalmente modificada pelos progressos das ciências modernas? Como se pode esperar que a cosmovisão cristã seja ainda hoje moderna? Por acaso não se tornou de todo insustentável quanto àquela imagem do mundo? (Stimmen der Zeit, 1921, Vol 100, p, 126)

Para responder a essa pergunta, Wassmann recorreu a dois conceitos: “Weltbild e Weltauffassung”. Definiu “Weltbild” como sendo a “imagem do mundo” o “retrato do mundo”, desenhado num dado momento, a partir dos conhecimentos científicos disponíveis, sobre as realidades naturais, suas relações mútuas e as leis que as regem. “Weltbild”, portanto corresponde à imagem do universo, do mundo e da natureza, assim como a ciência os retrata com os dados disponíveis a cada momento. Cabe ao cientista, valendo-se dos métodos científicos adequados inventariar e identificar o que sucede na natureza. O cientista, valendo-se das observações físicas, químicas, modelos matemáticos, cálculos de estatística, características do clima, tenta entender os elementos que lhe interessam e formular as hipóteses capazes de auxiliar na  compreensão da natureza. Com esses dados em mãos desenha o “Weltbild”, o “retrato do mundo”. Na medida em que as pesquisas científicas progridem e sempre novas revelações acontecem, o “retrato” precisa ser retocado e atualizado. Portanto, esse “retrato” exige, pela própria natureza, um permanente redesenhar, na medida em que novos dados científicos forem produzidos.

O segundo conceito de Wassmann é “Weltauffassung” – “Concepção do mundo ou Cosmovisão”. A cosmovisão pergunta pela causa primeira do universo, do mundo, da natureza e especialmente do homem. Enquanto o “Weltbild” explica “o como” acontecem as coisas na natureza e como ela funciona, a “Weltaauffassung” responde as questões de fundo como   “donde?”, “para que?” e “para onde?”. Nessa moeda de dupla face que é a natureza é tarefa privativa das Ciências Naturais, desenhar a “cara”  -   das Ciências do Espírito e Humanas, inclusive Letras e Artes dar forma à “coroa”.

Fica claro com isso que o cientista sem a contribuição do filósofo, do humanista e do artista, fica limitado a observações e resultados empíricos, porque, “Cada teoria envolvendo a natureza contém um elemento metafísico, na medida em que tenta identificar as relações entre as realidades apreensíveis experimentalmente.  ( ... ) De outra parte o filósofo da natureza movimenta-se no verdadeiro campo da metafísica em busca do extra sensível. Procura responder a interrogações substantivas, mais fundamentais, sobre a origem das leis naturais e a harmonia que reina entre elas”. (Wassmann, Stimmen der Zeit, 1921, Vol 1000, p. 126-127).

Wassmann resumiu a sua proposta de um esforço comum entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito em busca de compreensão holística da natureza nos seguintes termos

Conclui-se daí, em que medida  “Weltbild” se relaciona com “Weltauffassung”. As conclusões metafísicas só então são verdadeiras quando fluem logicamente das leis naturais formuladas pelas Ciência Naturais e por elas fundamentadas. Neste sentido verifica-se, sem dúvida uma relação, no nível  do espírito, entre “Weltbild” desenhado pela Ciência e “Weltauffassung” da Filosofia Natural. Essa relação, entretanto, não é absoluta, senão relativa. No decurso do tempo “Weltbild” muda, e tem que mudar, de acordo com as descobertas e conquistas das Ciências Naturais. Acontece, porém, que os questionamentos últimos que perguntam pela causa da ordem no mundo como um todo permanecem eternamente as mesmas. Em resumo a questão é esta: As realidades naturais e suas leis subsistem  por si mesmas ou é forçoso apelar par a explicação que tem como base a existência de um Deus pessoal que, da plenitude do seu ser, deu origem a um mundo criado. Sendo assim, resta-nos, em última análise, no plano da concepção metafísica da “Weltauffassung”, a alternativa: ou o monismo nas suas mais variadas modalidades, do extremo hilozoísmo ao extremo do panteísmo, ou então o Teísmo. (Wassmann, Stimmen der Zeit, 1921, Vol. 100, p. 27).

Quase 100 anos depois que Erich Wassmann publicou a sua a sua conclusão de “como” a natureza funciona, tarefa das Ciências Naturais e o “donde”, o “porque” e o “para que”, missão das Ciências do Espírito, Michael Keller, chegou a uma conclusão praticamente idêntica: “A Ciência nos dá o conhecimento do mundo e a Religião nos dá o sentido”. Os dois fundamentaram suas conclusões em dados científicos. Wassmann observando estudando colônias de formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos e Keller de dados da física e cosmologia. Na mesma base de raciocínio Edward Wilson argumentou a partir da observação de ecossistemas naturais e humanizados e Francis Collins tendo como base a genética e sua aplicação na medicina.


Bastem esses quatro exemplos para mostrar que o esforço solidário e complementar  entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, têm condições de construir a ponte entre a Ciência e a Religião. Sendo assim, a esperança expressa  na Encíclica de que a “ciência e a religião que oferecem diferentes abordagens da realidade, entrem num diálogo intenso e frutuoso para ambas” (Laudato si, 62), não é só possível como se encontra e pleno andamento.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 36 -

Diante desse cenário a única coisa a ser feita são políticas e ações eficientes em favor do salvamento da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”, da “nossa querência”, a natureza. Em que consistem essas bases políticas,  econômicas, sociais e, antes de mais nada, éticas, já foi objeto de reflexões anteriores, mais acima. É oportuno, a essa altura da nossa caminhada em favor do salvamento da vida na terra, aprender o que já está sendo feito e o potencial que oferecem essas iniciativa.

Com todos  os reparos que possam fazer e as limitações inerentes, os diversos protocolos assinados sobre o clima, com destaque para o último, o de Paris em dezembro de 2.015, é o mais vistoso, mais abrangente  e que mais  otimismo inspira, porque  trata-se de uma iniciativa encabeçada por chefes de estado representativos do mundo desenvolvido e em desenvolvimento. Convém lembrar que é exatamente nesses países onde se concentram as causas do aquecimento global. A matriz energética que movimenta seus parques industriais e seus polos econômicos é de natureza altamente poluidora e o maior vilão do aquecimento global. A incógnita fica por conta das iniciativas e ações efetivas dos signatários do acordo. De qualquer forma, ao  vincular os países signatários do protocolo a um compromisso legal, que obriga a contribuírem e efetivamente com as metas acordadas, já permite algum otimismo.

Além dos reparos de natureza política, técnica e de prazos há, salvo melhor juízo, referências apenas implícitas e à margem do documento, ao que deveria servir de base e norte de qualquer esforço em favor do meio ambiente: a terra com seus recursos é um bem comum. Como tal é “a casa da humanidade” como insiste a Encíclica, é “a mãe e pátria” como afirma o cientista, é “a nossa querência”, como se fala no Rio Grande do Sul. Por isso a natureza é muito mais do que combustíveis fósseis, mais que minérios, mais que florestas ou campos semeados com cereais, muito mais que pastagens, rios, campos naturais, montanhas, oceanos e estabilidade do clima. É tudo isso, mas além de ser tudo isso, a natureza é “casa”, é “pátria”, é “querência. E, para repetir mais uma vez, no que já insistimos tantas vezes no decorrer dessas reflexões: a natureza é um bem comum e por isso mesmo ás pessoas assiste o direito natural de morar numa “casas bem servida”. Sendo assim, qualquer política, qualquer iniciativa, qualquer um que lida com ela,  deveria obrigatoriamente legitimar-se com esse  pressuposto. Acordos políticos, econômicos e estratégicos envolvendo o meio ambientes só  então fazem sentido quando motivados pelo postulado ético implícito no conceito de bem comum.

A Encíclica “Laudato si” é de junho de 2.015. Foi devidamente publicada em mais línguas, inclusive no português. Por representar uma contribuição da autoridade de uma Encíclica e ainda mais saída da pena da autoridade moral do papa Francisco, é de se estranhar que no encontro em Paris, tenha merecido tão pouca consideração. E não procede o argumento de que a Encíclica é um documento confessional e por isso não seria oportuno fazê-lo interferir num encontro de autoridades representantes de estados laicos. Acontece que trabalhar com referenciais éticos não implica em intromissão nem do estado nem da sociedade laica. A consciência do bem e do mal e consequentemente o senso ético faz parte da própria natureza humana, independente de filiação ou não confessional. A Encíclica remete toda a sua argumentação par esse fundamento. Sendo assim ela representa um documento de validade universal no tempo e no espaço. Todo o empenho em favor da natureza encontra nesse fundamento solidez suficiente par enfrentar os desafios que a questão ecológica oferece. O documento pontifício tem, implícita ou explicitamente, o dever ético-moral como referência.

Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis soluções, que se desenvolveram nas diferentes perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o ser humano, com qualquer uma das intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não existe um só caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de chegar a respostas abrangentes. (Laudato se, 60)

O Papa conclui o primeiro capítulo da Encíclica com uma reflexão que ele chama de “diversidade de opiniões”. Entende que as iniciativas relativas ao meio ambiente são de uma complexidade tal que não há um fórmula mágica única. São em primeiro lugar complexos porque seu objeto, a natureza, é complexa. Como já apontamos mais acima a natureza é um gigantesco sistema e é preciso entendê-la como tal e como tal lidar com ela. A natureza não se resume na vida que nela prospera. Compreende também o chão sobre o qual e do qual a biosfera se sustenta. Acontece que o habitat inclui a natureza geológica que fornece o substrato mineral que entra na composição da estrutura dos seres vivos e do chão em que deitam suas raízes. A natureza inclui também as peculiaridades geográficas responsáveis pelo desenho do cenário físico, da moldura física, com suas características edafológicas, morfológico-topográficas e climatológicas que moldam numa profusão sem limites as fisionomias naturais.

Neste universo, composto por sistemas  abertos que entram em comunicação uns com os outros, podemos descobrir  inumeráveis formas de relação e  participação.  Isto leva-nos também a pensar o todo aberto para a transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A Fé permite-nos interpretar o significado e beleza misteriosa  do que acontece. A liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução positiva, como pode também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar a apaixonante e dramática história humana, capaz de transformar-se num  desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua destruição. Por isso a Igreja com sua ação, procura não só lembrar o dever de cuidar da natureza, mas também e sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo. (Laudato se, p. 79).

Sobre a complexidade do chão em que a vida surgiu também ela se complexificou vertical e horizontalmente durante milhões e bilhões de anos. O resultado é esse gigantesco sistema chamado biosfera abrigando um número incalculável de subsistemas em equilíbrio finamente calibrado e de alta resolução. “A Terra, em especial  a camada de  vida que a envolve, fina como uma navalha, é o nosso lar, a nossa fonte de vida, que nos dá sustento físico e também boa parte do sustento espiritual”. (Wilson, 2008, p. 15). O Papa reforça a advertência do cientista: “Um mundo frágil, como  um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder”. (Laudato si, 78).

Duas conclusões decorrem logicamente dessa constatação. Toda e qualquer invasão e interferência perturbadora  nessa fina calibragem reflete-se no bom desempenho do todo. É exatamente isso que vem acontecendo com a atividade do homem. Enquanto a invasão permanece na periferia, na “pintura” do quadro, na superfície do sistema, não degenera em problemas maiores pois, ele dispõe de mecanismos próprios para sanar o estrago. Quando, porém, a agressão danifica componentes vitais ao funcionamento por ex., o clima, compromete-se a integridade e continuidade do todo.

A segunda conclusão, decorre da primeira. Já que nos encontramos num estágio de agressão à natureza em que há sinais alarmantes de perturbação e comprometimento da biosfera como um todo, as iniciativas para sustar e reverter a situação precisam atuar em muitas frentes. Cabe à Ciência e aos cientistas e seus métodos e resultados, oferecer a matéria prima aos governantes, planejadores, formuladores e executores de projetos, empenhados no salvamento da “nossa casa”. “Sobre muitas questões concretas a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende que deve escutar e promover o debate honesto entre cientistas, respeitando a diversidade de opiniões” (Laudato si

 61). Mas a natureza entendida como “casa da humanidade” implica em repercussões que escapam à ciência e ao cientista e seus métodos e resultados. Para a humanidade a natureza significa muito mais do alimentação, proteção e perpetuação da espécie. “Além de fornecer o pão de cada dia oferece também os símbolos de sua vida espiritual” (Rambo, 1942, p. 337). E por vida espiritual entendem-se as atividades que decorrem do fato de o homem  ser um “animal racional”, com demandas sociais, culturais psicológicas e religiosas alimentadas pelo meio ambiente nas suas manifestações mais diversas.

Colocada nessa dimensão, o lidar com a questão ecológica só faz sentido quando iluminada pela ciência e validada por uma visão antropológica, histórica, sociológica, política, econômica, cultural, filosófica e religiosa. Em outras palavras a ecologia ou, como prefere a Encíclica, o cuidado pela “nossa casa” e morada da humanidade, portanto, é um bem comum. Como tal implica em direitos e deveres que, por sua vez, encontram legitimação no “ético”, que em última análise deve  servir de base quanto às escolhas e decisões a serem tomadas.

É nesse plano que as Ciências Naturais, as Ciências Humanas, as Artes, a Filosofia  e a Teologia, encontram a plataforma comum para lidarem, com espírito desarmado e solidários, tomarem conta da ordem e saúde da “nossa casa”. Da parte da Igreja essa disposição ficou clara ao nos referirmos às manifestações dos papas a partir da década de 1940 até hoje. Da parte da ciência laica existe a mesma disposição, como ficou claro no apelo do “humanista secular” Edward Wilson, dispondo-se a dialogar com um pastor fundamentalista sobre como “salvar a terra”:


Ao encerrar essa carta, espero que o senhor não tenha-se ofendido quando falei em ascender  rumo à Natureza e não para longe dela. Eu teria grande satisfação de saber que esse desejo, tal como o expliquei neste livro, é compatível com as suas crenças. Pois, seja como for que as tenções acabem se desenrolando entre nossos pontos de visa opostos, seja como a ciência  e a religião aumentem ou diminuam de importância na mente dos homens, permanece o compromisso, ao mesmo tempo humano e transcendental, que nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2.008, p. 188)

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 35 -

Ao lado das armas atômicas a humanidade sofre cada vez mais com as armas químicas e bacteriológicas. Seu efeito devastador é menos espetacular, mais discreto, mais traiçoeiro e  com potencial de devastação no mínimo igual às armas atômicas.

Considerando o potencial global de destruição, torna-se inadiável chamar à razão aos líderes mundiais e seus associados, a celebrarem acordos ditados pelo direito universal que assiste aos povos e às pessoas individuais  de viverem num mundo, numa terra, num planeta, numa “casa” segura, confortável e bem servida. A Encíclica alerta para essa  questão.

É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para que novas guerras, disfarçadas sob nobres invocações. A guerra causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se pensa nas armas nucleares e nas armas biológicas. Com efeito, não obstante haver acordos  internacionais que proíbem a guerra química, bacteriológica ou biológica, subsiste o fato de nos laboratórios dos pesquisadores desenvolverem-se  novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais. Exige-se do político uma maior atenção para prevenir e resolver  as causas que podem dar  origem a novos conflitos. Entretanto, o poder, ligado às finanças, é que  maior resistência põe a tal esforço, e os próprios políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizontes, para intervir quando seria urgente e necessário. (Laudato si, 57)

Nos últimos 400 milhões de anos aconteceram 5 cataclismos que afetaram o nosso planeta numa extensão e profundidade catastróficas. Todos foram causados por agentes naturais. Em todos eles o equilíbrio climático, a composição relativa da atmosfera, a temperatura e a composição dos oceanos, sofreram alterações que levaram à extinção de incontáveis espécies vivas  de animais e vegetais. Do que sobrou e sobreviveu a natureza, por assim dizer, quase que começou do zero, a reconstruir, por dezenas de milhões de anos, uma nova terra povoada com novas formas de vida. Lembramos, para ilustrar o quinto e último desses acontecimentos. O ocorreu há 60 milhões de anos e foi responsável pela extinção dos dinossauros e outras milhares de espécies de animais e vegetais. Um meteorito de tamanho fora do comum caiu perto da península de Yucatã  no México, depois de incendiar-se ao passar pela atmosfera. Seu impacto jogou na atmosfera incontáveis milhões de toneladas de pó. Por anos os raios do sol foram filtrados, o que alterou profundamente a temperatura e o regime de chuva. Tsunamis, altos como montanhas abateram-se sobre as faixas costeiras, arrasando tudo que veio pela frente. O abalo fez tremer a terra toda espalhando erupções vulcânicas por toda a superfície. A combinação dos efeitos causados pelo meteoro deixaram continentes, ilhas, mares e oceanos inabitáveis para uma enorme quantidade de espécies vivas. O episódio marcou o final da Era Mesozoica  e a extinção dos dinossauros.  Seguiram os 60 milhões de anos em que a biosfera atual se consolidou a partir do que sobrou depois do cataclismo causado pelo meteoro. Inaugurou-se   assim a era dos mamíferos, aves e plantas com flores. A natureza terminou por consolidar ecossistemas renovados, complexos e ricos em biodiversidade, deixando “a casa” pronta para receber a espécie humana.

Não importa, nem como, nem exatamente quando,  nem onde entrou em cena esse novo personagem. O fato é que cerca de 20 mil anos atrás, sua relação com o meio ambiente não foi muito diferente do que qualquer outra espécie de mamífero omnívoro. Coletava frutas, raízes e tubérculos. Caçava animais e  aves e pescava peixes. Abrigava-se em cavernas e abrigos e passava os dias no relento onde o clima o permitia. Pode-se afirmar que a presença do homem aconteceu em harmonia com a natureza, como as demais espécies que com ele compartilhavam o mesmo habitat.

Sucede que a espécie humana distingue-se de todas demais pela inteligência reflexa. Munido com essa ferramenta foi inventando e fabricando instrumentos cada vez mais eficientes para a obtenção de alimentos, construir abrigos e confeccionar vestimentas. Ao mesmo tempo foi identificando plantas e animais, seus hábitos e suas características. Observando os hábitos das muitas espécies de animais aproximou-se daquelas que melhor lhe pareciam atender às necessidades da subsistência. O resultado lógico  ensinou o coletor a plantar e o caçador a criar. Estavam assim postos os dois pilares mestres para desencadear a “Revolução dos Alimentos”, na perspectiva de Darcy Ribeiro, ou a “Primeira Traição à Natureza”, na visão de Edward Wilson. As duas formas aparentemente antagônicas são válidas na avaliação daquela “revolução” de dimensões planetárias, para o futuro da História da Humanidade e da História Natural.

Sob o prisma de uma “Revolução dos Alimentos” encontra-se nela a semente e o embrião que resultariam nas culturas e civilizações até os nossos dias sobre todo o planeta habitável. Esse progresso todo e essas conquistas todas foram cobrando um preço cada vez mais alto ao meio  ambiente já que os recursos e matérias primas foram subtraídas a ele, justificando a avaliação como “uma Traição à natureza”. Mas “enquanto o espaço é suficiente e  a densidade demográfica pequena, não se tornam  muito conscientes tais sentimentos”. (Rambo, 1942, p. 338). O autor refere-se nessa passagem ao impacto da ação do homem sobre a natureza de até 100 anos atrás. Foram necessários 20 milênios para que a Revolução dos Alimentos revelasse a sua face, embutida no potencial de  progresso e desenvolvimento humano que Wilson chamou de “primeira traição à natureza”. Com o crescimento geométrico da humanidade invadindo o planeta até seu seus confins mais remotos, a natureza foi pagando na mesma proporção um preço cada vez mais alto, num espaço de tempo também cada vez mais curto. No  decorrer dos últimos séculos essa dinâmica assumiu as proporções  cujos resultados vão se somando numa velocidade geométrica. No começo discretamente, começaram a piscar as luzes de alerta. Aos poucos, cá e lá, fizeram-se ouvir sirenes de alerta. Hoje esses alarmes ecoam por todos os recantos do planeta. Vivemos a situação “em que as necessidades brutais da vida forçam a interferir sempre mais na expressão natural do ambiente, despertando a dor perante a destruição de suas feições naturais, e o desejo de conservar, senão no conjunto ao menos em alguns lugares nos traços mais característicos”. (Rambo, 1942, p. 338)

Passaram-se 75 anos desde que o Pe. Rambo escreveu essa observação na sua “Fisionomia” do Rio Grande do Sul”. A agressão, a devastação e a degradação do meio ambiente alcançou uma profundidade e extensão tal que Edward Wilson fala numa “segunda traição” à natureza.

Agora com o resultado da atividade, teve início um sexto período de extinção. Embora não causado pela violência cósmica, seu potencial é suficiente para se tornar tão infernal como os cataclismos anteriores. Segundo estimativas feitas  em 2.004 por uma equipe de especialistas, apenas a mudança climática, se não for contida, poderá ser a causa primária da extinção de um quarto das espécies de plantas e animais terrestres nos meados deste século. (Wilson, 2.008, p. 88)