Capítulo II
O Evangelho da Criação
No
capítulo I a Encíclica faz um diagnóstico do “que está a acontecer com a nossa
casa”. A natureza “é casa da
humanidade”. As preocupações ecológicas devem-se fundamentar sobre a riqueza e
a complexidade desses conceito. Este conceito não se esgota no fato de a
espécie humana ter-se originado em algum momento da história da terra e
evoluído até o presente momento como as demais espécies vivas. A natureza é
mais do que isso. Não se resume em fornecer alimentos, abrigo e condições para
perpetuar a espécie. Se fosse apenas isso, em termos de significado para o
homem, ela não passaria além do que significa a casinha para o João de Barro, o
ninho para o sabiá e a toca para o tatu. Acontece que a competência, a
amplitude e os limites das Ciências Naturais resume-se nesse campo da
subsistência física. Não se pode nem se pretende questionar a importância desse
lado da preocupação com a ecologia. Entretanto, a natureza como casa é muito
mais do que ambiente protegido por quatro paredes, repartições internas
adequadas para servir de abrigo no qual o se humano nasce, cresce, encontra
proteção contra as intempéries, a ameaça dos animais selvagens e até do próprio
homem. Além de alimentar-se, proteger o corpo e reproduzir-se o homem tem
demandas espirituais a serem atendidas. Para ser de fato “uma casa”, a natureza precisa oferecer as condições para suprir as
exigências tanto materiais, quanto espirituais. Em outras palavras. A natureza
somente então é uma “verdadeira casa” quando permite a realização harmônica do
“humano no homem” –“Die Mesnchlichkeit”. Sobre este pressuposto holístico é que
as preocupações ecológicas devem ser conduzidas, as políticas concebidas e as
ações planejadas. Do contrário, as mais belas intenções e os mais pomposos
acordos estagnam em iniciativas e ações tópicas de interesses nobres ou nem
tanto.
No
Capítulo II intitulado “O Evangelho da Criação”, a Encíclica começa chamando a
atenção para a necessidade de a Ciência e a Religião se darem a mão, para
juntos, respeitando as competências de cada lado, apresentarem um retrato
completo do que vem a ser a natureza. Depois de apontar algumas dificuldades
que podem atrapalhar uma aliança estratégica entre a Ciência e a Religião, no
enfrentamento do grave problema da agressão ao ambiente natural, o Papa cita a
negação da Criação, por parte de políticos, pensadores e cientistas, como um
dos mais difíceis de superar. Não poucos desqualificam como irracional a
alternativa da Criação ou pelos menos com totalmente secundária. Com isso jogam
para a periferia dos debates, nada menos do que a metade da questão inviabilizando, na verdade, a
compreensão do todo da natureza. Ficam de fora, ou marginalizadas as
contribuições das Ciências Humanas, Artes, Filosofia, Teologia e Religiões.
Esses campos têm muito a oferecer para “uma ecologia integral e o pleno
desenvolvimento do Gênero humano. Todavia a Ciência e a Religião que
fornecem diferentes abordagens da
realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambos”. (Laudato si,
62).
A
disposição para o diálogo encontra ressonância positiva entre um número
crescente de cientistas de peso. Para evitar qualquer interpretação distorcida,
registro o que Edward Wilson, nosso
conhecido, manifestou a respeito. Ele vem a ser um representante emblemático do
cientista que não trabalha com parâmetros fora do campo da sua especialidade e
quanto ao resto se declara “um humanista secular”. No seu livro “A Criação-
como salvar a vida na Terra, registrou:
Já conheço grande parte dos
argumentos religiosos em favor da Criação e gostaria de aprender mais. Agora
apresentarei ao senhor, e outros que queiram ouvir, os argumentos científicos.
O senhor não irá concordar com tudo que afirmo sobre a origem da vida – a
ciência e a religião não se mesclam facilmente nesse assunto – mas gostaria de
pensar que nessa questão, que é crucial, nós dois temos um propósito comum.
(Wilson, 2.008, p. 16)
O
propósito comum, “a salvação da vida na
terra” de Wilson vem a coincidir com a salvação da “nossa casa” do Papa
Francisco. Felizmente, a essa altura da história, vozes de peso partindo das
mais diversas especialidades, vão fazendo coro, cada uma à sua maneira com o
apelo de Edward Wilson. Einstein é de opinião que “sem a Religião a Ciência é
manca e sem a Ciência a Religião é
cega”. Stephen Hawkings conclui seu livro “Uma breve história do tempo” com o
parágrafo.
No entanto, se de fato
descobrirmos uma teoria completa, todos
acabarão compreendendo seus princípios amplos, não apenas alguns cientistas.
Então, devemos todos - cientistas, filósofos e pessoas comuns - ser
capazes de tomar parte na discussão para saber o porque de nós e o universo
existimos. Se descobrirmos a resposta para isso, será o triunfo supremo da
razão humana - pois, então conheceremos a mente de Deus. (Hawlings, 2015, p. 229)
A
Stephen Hawkings, um dos físicos mais influentes ainda vivos, vem somar-se
Francis Collins, diretor do “Projeto Genoma Humano” e um dos mais respeitados
especialistas em Genética Médica. Sua opinião sobre os limites da Ciência e
seus métodos e a necessidade de recorrer
a uma solução completa fora desse âmbito, está expressa na seguinte reflexão.
Também fica claro para mim
que a Ciência, apesar dos seus poderes inquestionáveis de desvendar os
mistérios do mundo natural, não me iria levar mais adiante na resolução da
questão de Deus. Se Deus existe, se encontra fora do mundo natural, portanto,
os instrumentos científicos não são ferramentas certas para aprender sobre Ele.
Em vez disso, como eu estava começando a
entender por olhar para dentro do meu coração, a prova da existência de Deus
teria de vir de outras direções e a decisão definitiva deveria se basear na Fé,
não em provas. Ainda perseguido por perturbar as incertezas do caminho que eu
havia tomado, eu precisava aprender que aceitara a possibilidade de uma visão
do mundo espiritual, incluindo a existência de Deus. (Collins, 2.007, p. 38-39)
As
referências que acabamos de anotar pretendem ser amostras representativas de
cientistas de primeira linha demonstrando que da parte da Ciência existe
vontade explícita para o dialogo com as Ciências Humanas, Artes, Filosofia,
Teologia e Religião, sobre preocupações que dizem respeito a “nossa casa comum”,
a Natureza. A pergunta que a essa altura se põe logicamente é esta: O que cabe
às Ciências Naturais e o que cabe às Ciências do Espírito em busca da
compreensão holística da Natureza como base para os que têm a missão de assumir
o ônus de formular as políticas, tomar as iniciativas e oferecer planos de ação
em questões que dizem respeito à ecologia.
O
caminho foi traçado já há 100 anos pelo especialista em formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos,
Erich Wassmann e redesenhado pelo
cosmólogo e teólogo polonês Michael Keller. Erich Wassmann (1859-1931)
associou-se aos cientistas e filósofos na virada do século XIX e XX, assumindo
uma posição mais cautelosa em suas críticas às teorias e hipóteses evolucionistas,
mas, ao mesmo tempo levar a sério as conquistas da Ciência, fazendo delas
aliadas quando se trata de clarear aspectos tanto do interesse da Ciência,
quanto da Filosofia e Religião. Wassmann resumiu suas conclusões no periódico
Stimmen der Zeit com o título: “A concepção cristã da Natureza à luz das modernas
descobertas científicas”: “Quem sabe, a pergunta seja esta: Será que toda a
cosmovisão cristã não se fundamenta sobre a “imagem antiga do mundo”, totalmente
modificada pelos progressos das ciências modernas? Como se pode esperar que a
cosmovisão cristã seja ainda hoje moderna? Por acaso não se tornou de todo
insustentável quanto àquela imagem do mundo? (Stimmen der Zeit, 1921, Vol 100,
p, 126)
Para
responder a essa pergunta, Wassmann recorreu a dois conceitos: “Weltbild e
Weltauffassung”. Definiu “Weltbild” como sendo a “imagem do mundo” o “retrato
do mundo”, desenhado num dado momento, a partir dos conhecimentos científicos
disponíveis, sobre as realidades naturais, suas relações mútuas e as leis que
as regem. “Weltbild”, portanto corresponde à imagem do universo, do mundo e da
natureza, assim como a ciência os retrata com os dados disponíveis a cada
momento. Cabe ao cientista, valendo-se dos métodos científicos adequados
inventariar e identificar o que sucede na natureza. O cientista, valendo-se das
observações físicas, químicas, modelos matemáticos, cálculos de estatística,
características do clima, tenta entender os elementos que lhe interessam e formular
as hipóteses capazes de auxiliar na
compreensão da natureza. Com esses dados em mãos desenha o “Weltbild”, o
“retrato do mundo”. Na medida em que as pesquisas científicas progridem e sempre
novas revelações acontecem, o “retrato” precisa ser retocado e atualizado.
Portanto, esse “retrato” exige, pela própria natureza, um permanente
redesenhar, na medida em que novos dados científicos forem produzidos.
O
segundo conceito de Wassmann é “Weltauffassung” – “Concepção do mundo ou
Cosmovisão”. A cosmovisão pergunta pela causa primeira do universo, do mundo,
da natureza e especialmente do homem. Enquanto o “Weltbild” explica “o como”
acontecem as coisas na natureza e como ela funciona, a “Weltaauffassung”
responde as questões de fundo como “donde?”, “para que?” e “para onde?”. Nessa
moeda de dupla face que é a natureza é tarefa privativa das Ciências Naturais,
desenhar a “cara” - das Ciências do Espírito e Humanas, inclusive
Letras e Artes dar forma à “coroa”.
Fica
claro com isso que o cientista sem a contribuição do filósofo, do humanista e
do artista, fica limitado a observações e resultados empíricos, porque, “Cada
teoria envolvendo a natureza contém um elemento metafísico, na medida em que
tenta identificar as relações entre as realidades apreensíveis
experimentalmente. ( ... ) De outra
parte o filósofo da natureza movimenta-se no verdadeiro campo da metafísica em
busca do extra sensível. Procura responder a interrogações substantivas, mais
fundamentais, sobre a origem das leis naturais e a harmonia que reina entre
elas”. (Wassmann, Stimmen der Zeit, 1921, Vol 1000, p. 126-127).
Wassmann
resumiu a sua proposta de um esforço comum entre as Ciências Naturais e as
Ciências do Espírito em busca de compreensão holística da natureza nos seguintes
termos
Conclui-se daí, em que
medida “Weltbild” se relaciona com
“Weltauffassung”. As conclusões metafísicas só então são verdadeiras quando
fluem logicamente das leis naturais formuladas pelas Ciência Naturais e por
elas fundamentadas. Neste sentido verifica-se, sem dúvida uma relação, no
nível do espírito, entre “Weltbild”
desenhado pela Ciência e “Weltauffassung” da Filosofia Natural. Essa relação,
entretanto, não é absoluta, senão relativa. No decurso do tempo “Weltbild”
muda, e tem que mudar, de acordo com as descobertas e conquistas das Ciências
Naturais. Acontece, porém, que os questionamentos últimos que perguntam pela
causa da ordem no mundo como um todo permanecem eternamente as mesmas. Em
resumo a questão é esta: As realidades naturais e suas leis subsistem por si mesmas ou é forçoso apelar par a
explicação que tem como base a existência de um Deus pessoal que, da plenitude
do seu ser, deu origem a um mundo criado. Sendo assim, resta-nos, em última
análise, no plano da concepção metafísica da “Weltauffassung”, a alternativa:
ou o monismo nas suas mais variadas modalidades, do extremo hilozoísmo ao
extremo do panteísmo, ou então o Teísmo. (Wassmann, Stimmen der Zeit, 1921,
Vol. 100, p. 27).
Quase
100 anos depois que Erich Wassmann publicou a sua a sua conclusão de “como” a
natureza funciona, tarefa das Ciências Naturais e o “donde”, o “porque” e o
“para que”, missão das Ciências do Espírito, Michael Keller, chegou a uma
conclusão praticamente idêntica: “A Ciência nos dá o conhecimento do mundo e a Religião
nos dá o sentido”. Os dois fundamentaram suas conclusões em dados científicos.
Wassmann observando estudando colônias de formigas e térmites e sua relação
simbiótica com fungos e Keller de dados da física e cosmologia. Na mesma base
de raciocínio Edward Wilson argumentou a partir da observação de ecossistemas
naturais e humanizados e Francis Collins tendo como base a genética e sua
aplicação na medicina.
Bastem
esses quatro exemplos para mostrar que o esforço solidário e complementar entre as Ciências Naturais e as Ciências do
Espírito, têm condições de construir a ponte entre a Ciência e a Religião.
Sendo assim, a esperança expressa na
Encíclica de que a “ciência e a religião que oferecem diferentes abordagens da
realidade, entrem num diálogo intenso e frutuoso para ambas” (Laudato si, 62),
não é só possível como se encontra e pleno andamento.