Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 37 -

Capítulo II
O Evangelho da Criação

No capítulo I a Encíclica faz um diagnóstico do “que está a acontecer com a nossa casa”. A natureza  “é casa da humanidade”. As preocupações ecológicas devem-se fundamentar sobre a riqueza e a complexidade desses conceito. Este conceito não se esgota no fato de a espécie humana ter-se originado em algum momento da história da terra e evoluído até o presente momento como as demais espécies vivas. A natureza é mais do que isso. Não se resume em fornecer alimentos, abrigo e condições para perpetuar a espécie. Se fosse apenas isso, em termos de significado para o homem, ela não passaria além do que significa a casinha para o João de Barro, o ninho para o sabiá e a toca para o tatu. Acontece que a competência, a amplitude e os limites das Ciências Naturais resume-se nesse campo da subsistência física. Não se pode nem se pretende questionar a importância desse lado da preocupação com a ecologia. Entretanto, a natureza como casa é muito mais do que ambiente protegido por quatro paredes, repartições internas adequadas para servir de abrigo no qual o se humano nasce, cresce, encontra proteção contra as intempéries, a ameaça dos animais selvagens e até do próprio homem. Além de alimentar-se, proteger o corpo e reproduzir-se o homem tem demandas espirituais a serem atendidas. Para ser de  fato “uma casa”, a natureza precisa  oferecer as condições para suprir as exigências tanto materiais, quanto espirituais. Em outras palavras. A natureza somente então é uma “verdadeira casa” quando permite a realização harmônica do “humano no homem” –“Die Mesnchlichkeit”. Sobre este pressuposto holístico é que as preocupações ecológicas devem ser conduzidas, as políticas concebidas e as ações planejadas. Do contrário, as mais belas intenções e os mais pomposos acordos estagnam em iniciativas e ações tópicas de interesses nobres ou nem tanto.

No Capítulo II intitulado “O Evangelho da Criação”, a Encíclica começa chamando a atenção para a necessidade de a Ciência e a Religião se darem a mão, para juntos, respeitando as competências de cada lado, apresentarem um retrato completo do que vem a ser a natureza. Depois de apontar algumas dificuldades que podem atrapalhar uma aliança estratégica entre a Ciência e a Religião, no enfrentamento do grave problema da agressão ao ambiente natural, o Papa cita a negação da Criação, por parte de políticos, pensadores e cientistas, como um dos mais difíceis de superar. Não poucos desqualificam como irracional a alternativa da Criação ou pelos menos com totalmente secundária. Com isso jogam para a periferia dos debates, nada menos do que a metade  da questão inviabilizando, na verdade, a compreensão do todo da natureza. Ficam de fora, ou marginalizadas as contribuições das Ciências Humanas, Artes, Filosofia, Teologia e Religiões. Esses campos têm muito a oferecer para “uma ecologia integral e o pleno desenvolvimento do Gênero humano. Todavia a Ciência e a Religião que fornecem  diferentes abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambos”. (Laudato si, 62).

A disposição para o diálogo encontra ressonância positiva entre um número crescente de cientistas de peso. Para evitar qualquer interpretação distorcida, registro o  que Edward Wilson, nosso conhecido, manifestou a respeito. Ele vem a ser um representante emblemático do cientista que não trabalha com parâmetros fora do campo da sua especialidade e quanto ao resto se declara “um humanista secular”. No seu livro “A Criação- como salvar a vida na Terra, registrou:

Já conheço grande parte dos argumentos religiosos em favor da Criação e gostaria de aprender mais. Agora apresentarei ao senhor, e outros que queiram ouvir, os argumentos científicos. O senhor não irá concordar com tudo que afirmo sobre a origem da vida – a ciência e a religião não se mesclam facilmente nesse assunto – mas gostaria de pensar que nessa questão, que é crucial, nós dois temos um propósito comum. (Wilson, 2.008, p. 16)

O propósito  comum, “a salvação da vida na terra” de Wilson vem a coincidir com a salvação da “nossa casa” do Papa Francisco. Felizmente, a essa altura da história, vozes de peso partindo das mais diversas especialidades, vão fazendo coro, cada uma à sua maneira com o apelo de Edward Wilson. Einstein é de opinião que “sem a Religião a Ciência é manca e sem a Ciência  a Religião é cega”. Stephen Hawkings conclui seu livro “Uma breve história do tempo” com o parágrafo.

No entanto, se de fato descobrirmos  uma teoria completa, todos acabarão compreendendo seus princípios amplos, não apenas alguns cientistas. Então, devemos todos  -  cientistas, filósofos e pessoas comuns  -  ser capazes de tomar parte na discussão para saber o porque de nós e o universo existimos. Se descobrirmos a resposta para isso, será o triunfo supremo da razão humana  -  pois, então conheceremos  a mente de Deus. (Hawlings, 2015, p. 229)

A Stephen Hawkings, um dos físicos mais influentes ainda vivos, vem somar-se Francis Collins, diretor do “Projeto Genoma Humano” e um dos mais respeitados especialistas em Genética Médica. Sua opinião sobre os limites da Ciência e seus métodos  e a necessidade de recorrer a uma solução completa fora desse âmbito, está expressa na seguinte reflexão.

Também fica claro para mim que a Ciência, apesar dos seus poderes inquestionáveis de desvendar os mistérios do mundo natural, não me iria levar mais adiante na resolução da questão de Deus. Se Deus existe, se encontra fora do mundo natural, portanto, os instrumentos científicos não são ferramentas certas para aprender sobre Ele. Em vez disso,  como eu estava começando a entender por olhar para dentro do meu coração, a prova da existência de Deus teria de vir de outras direções e a decisão definitiva deveria se basear na Fé, não em provas. Ainda perseguido por perturbar as incertezas do caminho que eu havia tomado, eu precisava aprender que aceitara a possibilidade de uma visão do mundo espiritual, incluindo a existência de Deus. (Collins, 2.007, p. 38-39)

As referências que acabamos de anotar pretendem ser amostras representativas de cientistas de primeira linha demonstrando que da parte da Ciência existe vontade explícita para o dialogo com as Ciências Humanas, Artes, Filosofia, Teologia e Religião, sobre preocupações que dizem respeito a “nossa casa comum”, a Natureza. A pergunta que a essa altura se põe logicamente é esta: O que cabe às Ciências Naturais e o que cabe às Ciências do Espírito em busca da compreensão holística da Natureza como base para os que têm a missão de assumir o ônus de formular as políticas, tomar as iniciativas e oferecer planos de ação em questões que dizem respeito à ecologia.

O caminho foi traçado já há 100 anos pelo especialista em formigas e térmites  e sua relação simbiótica com fungos, Erich  Wassmann e redesenhado pelo cosmólogo e teólogo polonês Michael Keller. Erich Wassmann (1859-1931) associou-se aos cientistas e filósofos na virada do século XIX e XX, assumindo uma posição mais cautelosa em suas críticas às teorias e hipóteses evolucionistas, mas, ao mesmo tempo levar a sério as conquistas da Ciência, fazendo delas aliadas quando se trata de clarear aspectos tanto do interesse da Ciência, quanto da Filosofia e Religião. Wassmann resumiu suas conclusões no periódico Stimmen der Zeit com o título: “A concepção cristã da Natureza à luz das modernas descobertas científicas”: “Quem sabe, a pergunta seja esta: Será que toda a cosmovisão cristã não se fundamenta sobre a “imagem antiga do mundo”, totalmente modificada pelos progressos das ciências modernas? Como se pode esperar que a cosmovisão cristã seja ainda hoje moderna? Por acaso não se tornou de todo insustentável quanto àquela imagem do mundo? (Stimmen der Zeit, 1921, Vol 100, p, 126)

Para responder a essa pergunta, Wassmann recorreu a dois conceitos: “Weltbild e Weltauffassung”. Definiu “Weltbild” como sendo a “imagem do mundo” o “retrato do mundo”, desenhado num dado momento, a partir dos conhecimentos científicos disponíveis, sobre as realidades naturais, suas relações mútuas e as leis que as regem. “Weltbild”, portanto corresponde à imagem do universo, do mundo e da natureza, assim como a ciência os retrata com os dados disponíveis a cada momento. Cabe ao cientista, valendo-se dos métodos científicos adequados inventariar e identificar o que sucede na natureza. O cientista, valendo-se das observações físicas, químicas, modelos matemáticos, cálculos de estatística, características do clima, tenta entender os elementos que lhe interessam e formular as hipóteses capazes de auxiliar na  compreensão da natureza. Com esses dados em mãos desenha o “Weltbild”, o “retrato do mundo”. Na medida em que as pesquisas científicas progridem e sempre novas revelações acontecem, o “retrato” precisa ser retocado e atualizado. Portanto, esse “retrato” exige, pela própria natureza, um permanente redesenhar, na medida em que novos dados científicos forem produzidos.

O segundo conceito de Wassmann é “Weltauffassung” – “Concepção do mundo ou Cosmovisão”. A cosmovisão pergunta pela causa primeira do universo, do mundo, da natureza e especialmente do homem. Enquanto o “Weltbild” explica “o como” acontecem as coisas na natureza e como ela funciona, a “Weltaauffassung” responde as questões de fundo como   “donde?”, “para que?” e “para onde?”. Nessa moeda de dupla face que é a natureza é tarefa privativa das Ciências Naturais, desenhar a “cara”  -   das Ciências do Espírito e Humanas, inclusive Letras e Artes dar forma à “coroa”.

Fica claro com isso que o cientista sem a contribuição do filósofo, do humanista e do artista, fica limitado a observações e resultados empíricos, porque, “Cada teoria envolvendo a natureza contém um elemento metafísico, na medida em que tenta identificar as relações entre as realidades apreensíveis experimentalmente.  ( ... ) De outra parte o filósofo da natureza movimenta-se no verdadeiro campo da metafísica em busca do extra sensível. Procura responder a interrogações substantivas, mais fundamentais, sobre a origem das leis naturais e a harmonia que reina entre elas”. (Wassmann, Stimmen der Zeit, 1921, Vol 1000, p. 126-127).

Wassmann resumiu a sua proposta de um esforço comum entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito em busca de compreensão holística da natureza nos seguintes termos

Conclui-se daí, em que medida  “Weltbild” se relaciona com “Weltauffassung”. As conclusões metafísicas só então são verdadeiras quando fluem logicamente das leis naturais formuladas pelas Ciência Naturais e por elas fundamentadas. Neste sentido verifica-se, sem dúvida uma relação, no nível  do espírito, entre “Weltbild” desenhado pela Ciência e “Weltauffassung” da Filosofia Natural. Essa relação, entretanto, não é absoluta, senão relativa. No decurso do tempo “Weltbild” muda, e tem que mudar, de acordo com as descobertas e conquistas das Ciências Naturais. Acontece, porém, que os questionamentos últimos que perguntam pela causa da ordem no mundo como um todo permanecem eternamente as mesmas. Em resumo a questão é esta: As realidades naturais e suas leis subsistem  por si mesmas ou é forçoso apelar par a explicação que tem como base a existência de um Deus pessoal que, da plenitude do seu ser, deu origem a um mundo criado. Sendo assim, resta-nos, em última análise, no plano da concepção metafísica da “Weltauffassung”, a alternativa: ou o monismo nas suas mais variadas modalidades, do extremo hilozoísmo ao extremo do panteísmo, ou então o Teísmo. (Wassmann, Stimmen der Zeit, 1921, Vol. 100, p. 27).

Quase 100 anos depois que Erich Wassmann publicou a sua a sua conclusão de “como” a natureza funciona, tarefa das Ciências Naturais e o “donde”, o “porque” e o “para que”, missão das Ciências do Espírito, Michael Keller, chegou a uma conclusão praticamente idêntica: “A Ciência nos dá o conhecimento do mundo e a Religião nos dá o sentido”. Os dois fundamentaram suas conclusões em dados científicos. Wassmann observando estudando colônias de formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos e Keller de dados da física e cosmologia. Na mesma base de raciocínio Edward Wilson argumentou a partir da observação de ecossistemas naturais e humanizados e Francis Collins tendo como base a genética e sua aplicação na medicina.


Bastem esses quatro exemplos para mostrar que o esforço solidário e complementar  entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, têm condições de construir a ponte entre a Ciência e a Religião. Sendo assim, a esperança expressa  na Encíclica de que a “ciência e a religião que oferecem diferentes abordagens da realidade, entrem num diálogo intenso e frutuoso para ambas” (Laudato si, 62), não é só possível como se encontra e pleno andamento.

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