Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 36 -

Diante desse cenário a única coisa a ser feita são políticas e ações eficientes em favor do salvamento da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”, da “nossa querência”, a natureza. Em que consistem essas bases políticas,  econômicas, sociais e, antes de mais nada, éticas, já foi objeto de reflexões anteriores, mais acima. É oportuno, a essa altura da nossa caminhada em favor do salvamento da vida na terra, aprender o que já está sendo feito e o potencial que oferecem essas iniciativa.

Com todos  os reparos que possam fazer e as limitações inerentes, os diversos protocolos assinados sobre o clima, com destaque para o último, o de Paris em dezembro de 2.015, é o mais vistoso, mais abrangente  e que mais  otimismo inspira, porque  trata-se de uma iniciativa encabeçada por chefes de estado representativos do mundo desenvolvido e em desenvolvimento. Convém lembrar que é exatamente nesses países onde se concentram as causas do aquecimento global. A matriz energética que movimenta seus parques industriais e seus polos econômicos é de natureza altamente poluidora e o maior vilão do aquecimento global. A incógnita fica por conta das iniciativas e ações efetivas dos signatários do acordo. De qualquer forma, ao  vincular os países signatários do protocolo a um compromisso legal, que obriga a contribuírem e efetivamente com as metas acordadas, já permite algum otimismo.

Além dos reparos de natureza política, técnica e de prazos há, salvo melhor juízo, referências apenas implícitas e à margem do documento, ao que deveria servir de base e norte de qualquer esforço em favor do meio ambiente: a terra com seus recursos é um bem comum. Como tal é “a casa da humanidade” como insiste a Encíclica, é “a mãe e pátria” como afirma o cientista, é “a nossa querência”, como se fala no Rio Grande do Sul. Por isso a natureza é muito mais do que combustíveis fósseis, mais que minérios, mais que florestas ou campos semeados com cereais, muito mais que pastagens, rios, campos naturais, montanhas, oceanos e estabilidade do clima. É tudo isso, mas além de ser tudo isso, a natureza é “casa”, é “pátria”, é “querência. E, para repetir mais uma vez, no que já insistimos tantas vezes no decorrer dessas reflexões: a natureza é um bem comum e por isso mesmo ás pessoas assiste o direito natural de morar numa “casas bem servida”. Sendo assim, qualquer política, qualquer iniciativa, qualquer um que lida com ela,  deveria obrigatoriamente legitimar-se com esse  pressuposto. Acordos políticos, econômicos e estratégicos envolvendo o meio ambientes só  então fazem sentido quando motivados pelo postulado ético implícito no conceito de bem comum.

A Encíclica “Laudato si” é de junho de 2.015. Foi devidamente publicada em mais línguas, inclusive no português. Por representar uma contribuição da autoridade de uma Encíclica e ainda mais saída da pena da autoridade moral do papa Francisco, é de se estranhar que no encontro em Paris, tenha merecido tão pouca consideração. E não procede o argumento de que a Encíclica é um documento confessional e por isso não seria oportuno fazê-lo interferir num encontro de autoridades representantes de estados laicos. Acontece que trabalhar com referenciais éticos não implica em intromissão nem do estado nem da sociedade laica. A consciência do bem e do mal e consequentemente o senso ético faz parte da própria natureza humana, independente de filiação ou não confessional. A Encíclica remete toda a sua argumentação par esse fundamento. Sendo assim ela representa um documento de validade universal no tempo e no espaço. Todo o empenho em favor da natureza encontra nesse fundamento solidez suficiente par enfrentar os desafios que a questão ecológica oferece. O documento pontifício tem, implícita ou explicitamente, o dever ético-moral como referência.

Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis soluções, que se desenvolveram nas diferentes perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o ser humano, com qualquer uma das intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não existe um só caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de chegar a respostas abrangentes. (Laudato se, 60)

O Papa conclui o primeiro capítulo da Encíclica com uma reflexão que ele chama de “diversidade de opiniões”. Entende que as iniciativas relativas ao meio ambiente são de uma complexidade tal que não há um fórmula mágica única. São em primeiro lugar complexos porque seu objeto, a natureza, é complexa. Como já apontamos mais acima a natureza é um gigantesco sistema e é preciso entendê-la como tal e como tal lidar com ela. A natureza não se resume na vida que nela prospera. Compreende também o chão sobre o qual e do qual a biosfera se sustenta. Acontece que o habitat inclui a natureza geológica que fornece o substrato mineral que entra na composição da estrutura dos seres vivos e do chão em que deitam suas raízes. A natureza inclui também as peculiaridades geográficas responsáveis pelo desenho do cenário físico, da moldura física, com suas características edafológicas, morfológico-topográficas e climatológicas que moldam numa profusão sem limites as fisionomias naturais.

Neste universo, composto por sistemas  abertos que entram em comunicação uns com os outros, podemos descobrir  inumeráveis formas de relação e  participação.  Isto leva-nos também a pensar o todo aberto para a transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A Fé permite-nos interpretar o significado e beleza misteriosa  do que acontece. A liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução positiva, como pode também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar a apaixonante e dramática história humana, capaz de transformar-se num  desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua destruição. Por isso a Igreja com sua ação, procura não só lembrar o dever de cuidar da natureza, mas também e sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo. (Laudato se, p. 79).

Sobre a complexidade do chão em que a vida surgiu também ela se complexificou vertical e horizontalmente durante milhões e bilhões de anos. O resultado é esse gigantesco sistema chamado biosfera abrigando um número incalculável de subsistemas em equilíbrio finamente calibrado e de alta resolução. “A Terra, em especial  a camada de  vida que a envolve, fina como uma navalha, é o nosso lar, a nossa fonte de vida, que nos dá sustento físico e também boa parte do sustento espiritual”. (Wilson, 2008, p. 15). O Papa reforça a advertência do cientista: “Um mundo frágil, como  um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder”. (Laudato si, 78).

Duas conclusões decorrem logicamente dessa constatação. Toda e qualquer invasão e interferência perturbadora  nessa fina calibragem reflete-se no bom desempenho do todo. É exatamente isso que vem acontecendo com a atividade do homem. Enquanto a invasão permanece na periferia, na “pintura” do quadro, na superfície do sistema, não degenera em problemas maiores pois, ele dispõe de mecanismos próprios para sanar o estrago. Quando, porém, a agressão danifica componentes vitais ao funcionamento por ex., o clima, compromete-se a integridade e continuidade do todo.

A segunda conclusão, decorre da primeira. Já que nos encontramos num estágio de agressão à natureza em que há sinais alarmantes de perturbação e comprometimento da biosfera como um todo, as iniciativas para sustar e reverter a situação precisam atuar em muitas frentes. Cabe à Ciência e aos cientistas e seus métodos e resultados, oferecer a matéria prima aos governantes, planejadores, formuladores e executores de projetos, empenhados no salvamento da “nossa casa”. “Sobre muitas questões concretas a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende que deve escutar e promover o debate honesto entre cientistas, respeitando a diversidade de opiniões” (Laudato si

 61). Mas a natureza entendida como “casa da humanidade” implica em repercussões que escapam à ciência e ao cientista e seus métodos e resultados. Para a humanidade a natureza significa muito mais do alimentação, proteção e perpetuação da espécie. “Além de fornecer o pão de cada dia oferece também os símbolos de sua vida espiritual” (Rambo, 1942, p. 337). E por vida espiritual entendem-se as atividades que decorrem do fato de o homem  ser um “animal racional”, com demandas sociais, culturais psicológicas e religiosas alimentadas pelo meio ambiente nas suas manifestações mais diversas.

Colocada nessa dimensão, o lidar com a questão ecológica só faz sentido quando iluminada pela ciência e validada por uma visão antropológica, histórica, sociológica, política, econômica, cultural, filosófica e religiosa. Em outras palavras a ecologia ou, como prefere a Encíclica, o cuidado pela “nossa casa” e morada da humanidade, portanto, é um bem comum. Como tal implica em direitos e deveres que, por sua vez, encontram legitimação no “ético”, que em última análise deve  servir de base quanto às escolhas e decisões a serem tomadas.

É nesse plano que as Ciências Naturais, as Ciências Humanas, as Artes, a Filosofia  e a Teologia, encontram a plataforma comum para lidarem, com espírito desarmado e solidários, tomarem conta da ordem e saúde da “nossa casa”. Da parte da Igreja essa disposição ficou clara ao nos referirmos às manifestações dos papas a partir da década de 1940 até hoje. Da parte da ciência laica existe a mesma disposição, como ficou claro no apelo do “humanista secular” Edward Wilson, dispondo-se a dialogar com um pastor fundamentalista sobre como “salvar a terra”:


Ao encerrar essa carta, espero que o senhor não tenha-se ofendido quando falei em ascender  rumo à Natureza e não para longe dela. Eu teria grande satisfação de saber que esse desejo, tal como o expliquei neste livro, é compatível com as suas crenças. Pois, seja como for que as tenções acabem se desenrolando entre nossos pontos de visa opostos, seja como a ciência  e a religião aumentem ou diminuam de importância na mente dos homens, permanece o compromisso, ao mesmo tempo humano e transcendental, que nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2.008, p. 188)

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