Sobre o fazer história #1

Depois de mais de cinco décadas em sala de aula e dedicação à pesquisa chegou o momento de arriscar um olhar retrospectivo e proceder a uma balanço dos resultados auferidos nas décadas dedicadas à academia. Esses anos todos não foram simplesmente consumidos em ministrar aulas, e por meio delas, familiarizar  as novas gerações com os conhecimentos essenciais que cobrem os diversos campos do conhecimento, ou na orientação de trabalhos científicos, dissertações e teses. É comum a impressão de que a razão de ser de um mestre se esgota  ao nível dessas atribuições formais. Acontece que as demandas que caracterizam um autêntico mestre, pressupõem uma constante  atualização, ampliação e aprofundamento dos conhecimentos. E na medida em que informa  e principalmente forma gerações de discípulos elabora, consolida e  interioriza uma cosmovisão própria, fruto da percepção original e singular pela qual enxerga os acontecimentos e fatos que o rodeiam. Muitos há que não passam do alinhar-se  ou filiar-se a linha teórica e metodológica de um determinado autor ou de uma determinada escola. Com orgulho autodenominam-se marxistas, liberais, positivistas, hegelianos, tomistas, platônicos, aristotélicos, agostinianos,  etc. costumam analisar tudo sob a ótica teórica e seguir a cartilha metodológica da sua preferência. Uma opção nesta linha, porém, esconde uma perigosa armadilha. Não raro termina numa percepção unilateral e parcial da realidade e com facilidade leva à adesão a ideologias de ação equivocadas que, se levadas ao extremo, terminam em posições fundamentalistas, tanto no campo estritamente religioso, quanto no político, econômico e até científico. Essa é a sina  que ronda cientistas, pesquisadores e estudiosos em geral na civilização pós-moderna. Diante de um universo fragmentado, a ponto de perder a noção do todo, constroem mundos individuais cada vez mais acanhados e estanques. O físico, o biólogo, o geneticista, o geógrafo, o sociólogo, o economista, o antropólogo, o historiador, o filósofo, o teólogo, recolhem-se aos seus casulos sem janelas. A perda da capacidade de perceber o Todo, a Totalidade, é diretamente proporcional ao avanço de suas descobertas. De tanto dissecar, desmontar e analisar já não percebem mais o corpo, muito menos a alma. Só restam tecidos, engrenagens, peças de máquina, fatos e ideias dispersas. Há mais de setenta anos escrevia Teilhard de Chardin, prenunciando a pós-modernidade que se anunciava no horizonte.

Ao contrário dos “primitivos” que dão personalidade a tudo que se mexe, ou mesmo dos primeiros grupos que divinizavam todos os aspectos e todas as forças da natureza, o homem moderno tem a obsessão  de despersonalizar ou de impersonalizar o que mais admira. Duas razões para essa tendência. A primeira é a análise – esse maravilhoso instrumento da pesquisa científica, ao qual devemos todos os nossos progressos – mas que, de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e de partículas que se esvaem. E a segunda  é a descoberta do mundo sideral, objeto tão vasto que se tem a impressão de que toda a proporção entre o nosso ser  e as dimensões do Cosmos à nossa volta, foi abolida”.

E a profecia de Teillhar de Chardin tornou-se dura realidade neste começo do terceiro milênio. O mundo pós-moderno caracteriza-se pela perda de referências e pela negação de princípios e valores sociais, éticos, morais e religiosos permanentes. E a razão de ser desse cenário preocupante é a perda da perspectiva de um Todo que serve de referência e faz com que o universo, a natureza e o próprio homem façam sentido. O esforço maior, portanto, que cabe à Academia e mais especificamente à Universidade consiste, em de alguma forma, trilhar o caminho de volta ao reencontro com o Todo, a Totalidade, A Verdade. Alexandro Serrano Caldera chama a atenção que: “vivemos num mundo cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação e que cabe à Universidade reunir de novo os fatores dispersos numa unidade que é o ser humano; numa síntese que é o homem, a mulher, o sujeito histórico”... “Há nisso a intenção fundamental de síntese e integração do ser humano com sua realidade, com a sua sociedade e com a sua história. É nesse particular que a Universidade e o Conhecimento têm de jogar um papel unificador”.

Deixemos de lado os campos que se ocupam com as assim chamadas ciências empíricas, ciências experimentais, ciência exatas, ciências duras, ou qualquer outro nome que se prefira. O nosso “negócio”, para nos servirmos do termo tão prestigiado pelo homem pós-moderno, são as Ciências Humanas, e mais especificamente, as Ciências Históricas.

Como sugere o próprio conceito as “Ciências Humanas” cobrem um vasto e complexo campo de conhecimentos e investigações complementares que têm no homem o centro das preocupações. E sendo assim, todo e qualquer esforço para encontrar respostas para as muitas perguntas que se colocam para o historiador, pressupõe uma  que é a condição sem a qual as demais ficam no ar: quem é afinal o Homem? As respostas são tantas quantos os pontos de vista a partir dos quais o observamos. Parece que os antigos gregos formularam uma que pode ser útil como ponto de partida para uma reflexão sobre o homem como ser histórico: o homem existe  como a natureza mineral; o homem existe e vegeta como as plantas; o homem existe, vegeta e sente como os animais; o homem existe, vegeta, sente e raciocina. Em outras palavras. Os minerais existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam e sentem, o homem existe, vegeta, sente e raciocina. São várias as conclusões que podemos tirar dessa constatação.

Primeiro. Ao percorrermos a história dos povos, um fato inequívoco impõe-se: a relação do homem e de suas culturas com o meio natural em que surgiram e se consolidaram. E não se trata de uma simples  relação  conjuntural, mas de uma inserção existencial no mundo natural. E não poderia ser de outra forma. Começa pelo fato de o corpo material do homem buscar  os componentes estruturais entre os elementos comuns encontráveis na natureza: oxigênio, nitrogênio, gás carbônico e hidrogênio, além de duas dezenas de outros, constantes na tábua periódica dos elementos.

Segundo. Como qualquer outra espécie animal o homem depende dos alimentos, depende dos abrigos e refúgios naturais para se proteger das intempéries e defender-se das feras e dos inimigos da própria espécie.

Terceiro. O homem partilha com os outros animais o mesmo ciclo de vida. É concebido, nasce, vive e morre em obediência às mesmas leis que regem a vida individual e coletiva das demais espécies. Mais. A humanidade, assim como nos é apresentada pelas Ciências, pela Antropologia, pela História, pela Filosofia e pela Teologia, forma uma única espécie. Pelo menos é assim que a definem os critérios taxonômicos da classificação das espécies animais; confirmam-no os estudos do genoma humano e os estudos da paleoantropologia. As pesquisas arqueológicas, etnográficas e etnológicas, assim como a história da cultura, apontam para a mesma conclusão. E para não haver dúvida sobre a unidade da espécie humana, a Antropologia Filosófica e a própria Antropologia Teológica concordam com as definições que as Ciências Naturais e as Ciências Humanas defendem na teoria e supõem como ponto de partida quando lidam na prática com questões humanas.

Quarto. A espécie humana, entretanto, embora com  raízes existenciais no mundo mineral ou na litosfera, no mundo vivo ou biosfera, supera-os pela inteligência reflexa, para dar vida e existência  a uma esfera completamente nova, a Noosfera, para recorrer a um dos conceitos-chave de Teilhard de Chardin. Enquanto os minerais apenas existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam, sentem e se orientam pelos instintos, o homem existe, vegeta, sente e conta com os instintos como estímulos, mas sobretudo raciocina, reflete. É dono de uma inteligência reflexa. Não é o lugar nem o momento de entrarmos mais a fundo na discussão  se a passagem do Rubicão que marca a fronteira entre o instintivo e o racional,  foi um salto de qualidade ou apenas mais uma ascensão gradual prevista na lógica da evolução natural. O fato é que representou o ponto de partida para  uma revolução inédita de uma espécie viva na solução dos desafios existenciais. Em outras palavras é licito formular o “salto” a que nos acabamos de referir nos seguintes termos: o animal orientado pelo instinto “sabe” o que lhe convém e “sabe” o que lhe é prejudicial. O instinto cego garante-lhe o sucesso sempre que o âmbito do seu potencial não é ultrapassado. Nesse sentido pode-se afirmar que o instinto garante com certeza matemática o sucesso, e por isso o animal não tem versatilidade nem liberdade para escolher saídas alternativas, quando algum caminho se fecha.

Com o homem as coisas se passam de maneira bem diferente. Munido de Inteligência Reflexa é capaz de “saber o porque do seu saber”. Por isso desde aquele momento único na história do universo em que, em alguma savana da África, cintilou pela primeira vez a centelha da Consciência Reflexa e o homem se fez homem, sua natureza permaneceu a mesma até hoje. Sob o aspecto físico, anatômico, fisiológico, biogenético e instintivo, o homem tem suas raízes fincadas na Litosfera e na Biosfera. Mas distancia-se delas e as ultrapassa de vez pela capacidade da Reflexão. Essa eleva a espécie humana a uma esfera inteiramente nova: a Noosfera. Se a espécie humana fosse apenas mais uma espécie de símios antropoides, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou condenado a uma sobrevivência sem brilho. Suas mãos não especializadas servem para tudo, e por isso mesmo, não servem para nada específico. Seus dentes caninos servem para pouca coisa mais do que completar a arcada dentaria. Seus sentidos pouco apurados não lhe garantem os  alertas e alarmes  indispensáveis, num entorno em que atrás de cada árvore, cada arbusto, cada rocha, ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem. A Inteligência Reflexa não só compensou a precariedade da especialização anatômica, como a transformou em trunfo para o sucesso na competição pela conquista dos espaços e na batalha pela sobrevivência.


Com olhar curioso e inquiridor o homem perambulava pelas florestas, pelas estepes, pelos desertos, pelas montanhas e planícies, observando, experimentando, comparando, distinguindo e selecionando aquilo que a natureza lhe punha à disposição em alimentos, vestuário, abrigo, proteção, inspirações, simbolismos e estímulos, responsáveis pela formação do imaginário. A cepa original da espécie humana multiplicou-se  e povoou a terra: a África, a Ásia, a Europa, as Américas e o mundo insular do Pacífico. Centenas de raças: brancas, negras, amarelas, vermelhas e todos os matizes que a transição entre elas foi capazes de engendrar, construíram suas histórias, desenvolveram culturas e consolidaram civilizações. E nessa fantástica epopeia o homem buscou no seu entorno ambiental o sustento, o abrigo, os símbolos para construir o seu imaginário. A partir de então aconteceu a lenta  e gradativa simbiose, a síntese entre o homem e a paisagem, e com ela, definiu-se o caleidoscópio multicolorido  das culturas dos centenas de milhares de povos que povoaram e ainda povoam a terra.

Sobre o outro mundo #2

Por mais poderoso, tirânico e avassalador que possa parecer essa superfície do oceano revolto da história dos homens, ele não decide sobre a teleologia que garante rumo e norte para a aventura humana. São momentos, manifestações episódicas e erupções momentâneas   que não perturbam o cerne da verdadeira natureza da saga humana. A realização do autêntico humano no homem, a “Menschlichkeit”, como a definiu o Pe. Balduino Rambo, acontece em outro nível e numa outra dimensão. A sequência dos atos do quotidiano  expressam-se pela sua natureza nas alegrias, esperanças, sofrimentos e anseios do homem comum. Por serem rotineiros e pouco espetaculares não interessam aos grandes noticiários e seu público. Nem tão pouco fazem parte da agenda dos burocratas, administradores públicos e outras instâncias em tese responsáveis pelo bom andamento de uma sociedade. Dos discursos políticos só em período de eleição.  De resto esse “outro mudo” não ultrapassa em muito as pequenas alegrias, as preocupações e os sofrimentos das pessoas anônimas, das famílias humildes dos agricultores, operários, prestadores de serviço, dos pequenos e médios comerciantes e empresários, dos profissionais liberais, lutando contra toda sorte de dificuldades. Embora não dite moda, não empolgue festas, não arraste multidões para shows, não se envolva em escândalos, em chantagens de poderosos, ou, quem sabe, por isso mesmo, é o mundo em que se consolida o perene da história em todos os tempos. Perene porque alimentado pelo que há de existencial no qual se firma e do qual haure a seiva que alimenta o verdadeiro humano no homem, a ”Menschlikeit”.

Mesmo que aos objetivos da grande mídia esse outro mundo pouco ou nada interesse, ele não deixou de inspirar e é o responsável pelas obras que se tornaram perenes ou se quisermos clássicas ou imortais porque inspiradas na própria natureza humana e, por isso mesmo  clássicas, pois registram, cantam, pintam, entalham e assim imortalizam o que há de perene no homem.  Mas, são as obras literárias que sobreviveram a centenas e milhares de anos às fases mais conturbadas e tumultuadas da história e aos períodos de relativa calmaria, que têm como objeto  a essência da natureza humana. De um lado, a realização, a busca da felicidade pessoal, a solidariedade, a sede de liberdade e justiça, a resposta para as questões existenciais como: o que somos, donde viermos e para onde vamos? Do outro lado, fazem parte deste “outro mundo” as pequenas e grandes alegrias com as conquistas e acontecimentos do quotidiano, como também os sofrimentos, as decepções e as frustrações, que tumultuam e atrapalham a caminhada tranquila do dia a dia.

Num intervalo, ao fixar na memória do meu PC as reflexões sobre “o outro mundo”, passei sem maior interesse as páginas do jornal ABC, edição do domingo de 25 de janeiro. Costumo ler com interesse  os comentários do promotor de justiça Eugênio P. Amorim normalmente sobre algum assunto de interesse político, econômica ou social. Mas naquela edição ele  surpreendeu com uma reflexão que se encaixa como uma luva na linha de observações que estamos desenvolvendo. Presumo sua autorização, para enriquecer o presente texto com a sua bela crônica. Ela oferece ao leitor um quadro perfeito do que entendemos ao falar do “”outro mundo”. A justificativa na apresentação da matéria não deixa dúvidas. “Eu sei que os senhores leitores aguardavam um escrito verborrágico sobre o episódio da Indonésia ou sobre o pornográfico pacote do governo federal. Mas estou cansado e quero falar de coisas boas”.

A história que nos conta o promotor Amorim tem como protagonista um menino, seus pais e o cenário típico próximo à praia em que viviam, longe da zoeira da cidade grande, uma vida modesta mas feliz, duma felicidade que as pessoas da cidade grande costumam classificar de sem graça, porque longe da correria, do empurra-empurra, longe do odor do asfalto, longe dos shoppings  com suas massas de consumidores e exibicionistas insaciáveis, longe enfim,  da atmosfera poluída por notícias de escândalos, corrupção, mortes no trânsito, assassinatos, longe também do mundo da política, dos desfiles de vaidades, das pessoas feitas “lobos” à espreita de quem devorar. Escrevendo sob a inspiração de “lapsos de memória da infância e adolescência, que são meus, começa o autor,  mas certamente encontrarão  a identificação de muitos leitores; tempos que nos fazem indagar se a nossa felicidade não é tão maior e inversamente proporcional ao que obtemos de dinheiro, fama e poder”. A crônica nos fala de um menino brincando entre vacas, cavalos, galinhas e porcos. Não havia internet nem jogos eletrônicos. Mas não havia problema. O mundo em que a criança vivia e a família com quem convivia, os vizinhos por perto, mais a imaginação infantil e dos adultos, supriam com folga os meios de diversão neurotizantes, oferecidos pela moderna tecnologia que tiraniza o dia e não raro as noites de  crianças e adolescentes. Planejavam-se  viagens imaginárias até “a África” ou a outros destinos pelo mundo afora sugeridos pela fantasia e a imaginação. Na casinha perto da lagoa, o feijão com arroz e carne, o picolé feito de banana e leite, os doces de abóbora e melancia de porco aprontados pelas mãos habilidosas da mãe, o café da manhã com pão, margarina e mortadela, sem luxo, mas bom demais!. A rotina do dia com as pequenas obrigações, o estudo, os pequenos desentendimentos com os professores, a presença constante do pai firme e correto e da mãe solícita mas capaz de atitudes até duras quando preciso. O promotor Amorim menciona os anos de 1970 e 1980 como referência. Eu próprio recuo com as minhas lembranças para a década de 1930 e 1940 e percebo que, na essência não existe diferença entre os cenários de referências da infância e da adolescência. As imagens e os acontecimentos que surgem na minha memória aconteceram na sua maioria na década de 1930. Meu pai um pequeno agricultor no interior de Montenegro, princípios éticos claros e inegociáveis, senso de responsabilidade à toda a prova, solidário para com os vizinhos, muito religioso mas nada piegas, conhecia basicamente dois caminhos: o diário de ida e volta para a roça e o dominical de ida e volta para a igreja. De resto suas preocupações limitavam-se ao sustento da numerosa família e ao esforço de levar os filhos e filhas a serem, como adultos, o esteio das próprias famílias e membros comprometidos com as suas comunidades. Os brinquedos tinham sua inspiração no entorno rural com suas plantações e os restos da floresta virgem original. As músicas e as melodias  que continuam  a povoar as lembranças de 80 anos passados vinham da mata perto de casa, das laranjeiras e da copa das araucárias que se alinhavam majestosas ao longo das taipas do potreio e do curral dos porcos. A inexistência de energia elétrica transformava as noites de céu estrelado, o luar, os raios e trovões das tempestades em cenários de um encanto primigênio impossível de descrever. Vejo ainda hoje minha mãe na varanda da casa, apreciando silenciosa, durante horas as tempestades vindas do sul nas tardes e noites de verão. 

Poderíamos multiplicar ao indefinido cenários das configurações mais inusitadas e neles homens, mulheres e crianças passando os dias de suas vidas longe da grande movimentação do mundo que faz a história oficial, vivendo no anonimato uma vida sem alarde, porém, prenhe de calor humano,  sem artificialismos, mostrando o que de autenticamente humano move as pessoas. 

O gênero literário que explora pela sua natureza esse caudal que movimenta e em que se movimenta o “outro mundo”, é a poética e nela de modo especial a “lírica” com suas “odes”, “bucólicas” e outras modalidades. Nesta linha destacam-se na antiguidade os poetas líricos Píndaro na Grécia, Virgílio e Horácio em Roma. Quem transitou minimamente pela literatura grega encontrou-se obrigatoriamente com as descrições, principalmente das odes de Píndaro. Da mesma maneira um interessado na literatura romana deve ter lido algumas das “bucólicas” selecionadas de Virgíilio e das “odes” de Horácio. Nelas os dois poetas retrataram com perfeição e emoção a alma do povo romano. Na mesma linha  situa-se Tácito quando contrapõe, não em versos mas em prosa os costumes simples e frugais dos povos germânicos, à decadência dos romanos, consumindo-se em vícios, em aberrações de comportamento, superficialidades e artificialidades de toda a ordem. Não é aqui o momento de entrar mais a fundo na poética clássica da antiguidade para ilustrar a tese de que o mundo que de fato conta para a história da humanidade, é este “outro” que se realiza e concretiza fora e à margem dos assim chamados acontecimentos que marcam cada época e constam dos registros convencionais utilizados para escrever a história. Não cabe aqui uma análise das muitas expressões poéticas que tiveram como objeto e cantaram o quotidiano dos povos. Felizmente de umas décadas para cá este outro mundo conquistou a atenção de historiadores que nele se inspiram para escrever história. Depois de décadas de um positivismo exacerbado, o quotidiano do “outro mudo” vai conquistando credibilidade e legitimidade entre os historiadores.

Um gênero literário que costuma buscar a inspiração e os objetos no “outro mundo”, são os contos. Embora banidos das salas de aula por muitos pedagogos modernosos, os contos dos irmãos Grimm fizeram com que as crianças durante dois séculos pudessem fantasiar à vontade. Fadas, bruxas, duendes, princesas e príncipes, ursos, lobos, gazelas, povoando florestas misteriosas, desfilavam pela imaginação infantil. Chamo a atenção às duas dezenas de contos escritos pelo Pe. Balduino Rambo, entre 1937 e 1961. Retratam com toda a sua riqueza e densidade humana os homens, mulheres e crianças das comunidades rurais do interior do sul do Brasil. Ele próprio procedente desse meio, mas exercendo suas atividades como professor de colégio de classe média alta urbana, como professor universitário, como cientista de renome internacional, tomado de gratidão e, quem sabe, de uma nostalgia não confessada, descreveu para não dizer pintou e cantou, o humano no homem, a “Mesnchlichkeit”, conceito por ele criado, na sua autenticidade sem máscaras.

Da mesma forma como o “outro mundo” inspirou poetas e contadores de histórias, forneceu o Leitmotiv para peças de música que se tornaram clássicas, como “a Sinfonia Pastoral” de  Beethoven. De outra parte a poética popular associada à música popular tem como fonte de inspiração e objeto este “outro mundo” como seus atores e personagens, suas alegrias, seus sofrimentos, seus lances de heroísmo, seus valores e compromissos inegociáveis, sua solidariedade, seu amor não viciado e, porque não, seus defeitos e desvios. Tudo somado compõe o selo de garantia de que nos encontramos no território, no “outro mundo”, onde a história é escrita pelo  humano no homem”.

Há, entretanto, um gênero literário, ao lado do conto, especialmente apropriado para retratar o “outro mundo”: o Provérbio. O dicionário Aurélio o define como sentença de caráter prático e popular, expressa de forma  sucinta e geralmente rica em imagens. A Enciclopédia Schweitzer Lexikon, atribui um significado mais apropriado ao provérbio, quando a ele se recorre como uma forma de construção do conhecimento. Remonta a uma forma poética de um só verso surgida na Idade Média. Os provérbios são o fruto de uma poética de como o povo expressa seu pensamento. Vem acompanhados de um objetivo pedagógico, religioso e politico.


Salvo melhor juízo temos nesta última definição os elementos essenciais do que seja um provérbio e do que ele representa para a história do conhecimento e, por extensão, para a história da humanidade como um todo. Em primeiro  lugar, o provérbio formula de um forma poética o pensamento popular. Ora o pensamento popular vem a coincidir, em última análise, com a compreensão que as pessoas comuns, “o povo”, cultivam em relação aos mais diversos  acontecimentos e eventualidades da vida cotidiana dos indivíduos e das comunidades. Os provérbios expressam também o entendimento popular em relação a tudo que influencia as vivências do dia a dia, como são a natureza imediata em que acontecem, o sentido do universo no sentido mais amplo, as crenças, os rituais, os valores éticos, políticos, sociais, econômicos e religiosos. Em resumo são a expressão  condensada da cosmovisão que se consolidou como síntese dos conhecimentos, crenças e convicções, acumulados  no decorrer de cada trajetória histórica. Representam, portanto, o “pensamento condensado” ou a “melodia subliminar” que confere harmonia à maneira de ser e agir das pessoas no seu cotidiano.  Ignorar, pior, negar que os provérbios significam a mais legítima e o mais autêntico humano no homem, equivale a desqualificar o que a humanidade consolidou durante milênios.

Sobre o outro mundo #1

A revista Atlantis – Voelker – Reisen, em suas edição anual de 1945 publicou uma matéria longa, fartamente ilustrada sobre o  que ela denominou de “O outro Mundo”. Nos três parágrafos introdutórios apresentou  a matéria mais ou menos nos seguintes termos:

Um holofote, melhor, todo um complexo de holofotes varre a superfície do globo terrestre. Iluminam o mundo oficial da mídia. Seus órgãos são os jornais, as revistas ilustradas, o rádio,  e para hoje, 70 anos depois, somamos todo o arsenal e potencial oferecido pela mídia eletrônica.  é impossível não sermos envolvidos por ela. É o mundo oficial. A grande mídia  nos informa sobre batalhas, bombardeios, debate nos parlamentos,  sobre as crises de governos, divórcios,  escândalos, atentados, corrupção, revoluções, congressos,  acidentes e crimes. Mas no mesmo cenário em que as bombas caem e o homem não se cansa de procurar novos objetos de ódio, um agricultor lavra a terra, uma mãe amamenta o filho, um comerciante expõem suas mercadorias, um engenheiro desenha projetos, um professor prepara sua aula, um médico visita seus pacientes, um enfermeira faz curativos,  um menino canta uma canção junto ao rebanho de ovelhas, uma comunidade sepulta um dos seus membros, uma mãe vigia na cabeceira do filho doente... Este é o outro mundo.

Também este outro mundo tem suas preocupações – as eternas preocupações da humanidade de todos os tempos – onde a alegria se alterna com o sofrimento. Mantem-se em pé com uma boa dose de divina despreocupação.

Reflita por instante sobre este mundo relegado para a obscuridade de atos administrativos. Todos os holofotes da mídia direcionados para esse outro mundo não seriam suficientes para abarcar a sua diversidade, a sua riqueza e a sua beleza.

O momento que escolhi para refletir um pouco sobre o “outro mundo” ao qual chama a atenção a revista “Atlantis” o mundo oficial, foco da grande mídia, vive um situação de frenesi. A invasão por terroristas da redação do jornal satírico “Charlie Ebdo “ em Paris e o massacre de 12 pessoas, entre as quais os melhores chargistas do jornal. Os holofotes da grande mídia festejam um dos seus grande momentos. Todos convergem para o episódio lamentável que expôs ao mundo o que há de mais deplorável e de mais assustador gerado no ventre de uma era histórica em que foram abolidas todas as referências e as civilizações avançam sem rumo ao encontro do desconhecido. As evidências dessa marcha errática da humanidade pós moderna, mostradas pela mídia em todas as suas cruéis modalidades, nos rincões mais remotos do planeta, viciam, perturbam e distorcem o quotidiano das crianças, dos jovens, adultos e idosos. Todos são obrigados  a respirar essa atmosfera e por isso mesmo não há como proteger-se  dos efeitos deste hálito apocalíptico que atordoa as pessoas de todas as idades e níveis de instrução. Os noticiários que se ocupam com esse mundo nada animador, dominam os meios de comunicação escritos, as redes de rádio e televisão e, de modo mais eficiente a mídia eletrônica. Em resumo o que oferecem? Atentados terroristas que abalam a nossa civilização na sua base, esquemas de corrupção de dimensões planetárias, escândalos que mancham as instituições mais sólidas. Exibem dezenas de prisioneiros prestes a serem degolados pelos seus algozes, fanáticos defensores de um fundamentalismo religioso desumano.  Até crianças são exibidas com arma na mão prontas para  executar reféns com um disparo na nuca. Aliás no momento histórico em que tento redigir essas reflexões, multiplicam-se os exemplos que o tumultuaram nas últimas semanas. Relembro o massacre dos jornalistas em Paris, a caça aos terroristas e seu fim  previsível, os atentados na Bélgica, a prisão de suspeitos de atentados na Alemanha. A tudo acrescente-se a presença do mundo inteiro em Paris para demonstrar solidariedade aos jornalistas mortos e o seu jornal. Neste exato momento a grande mídia tem mais uma preocupação. Com a aproximação da hora da execução  pelas autoridades da Indonésia, de um traficante internacional de drogas brasileiro. As notícias que falam das pessoas comuns e do seu quotidiano, ocupam espaços  à margem e como que para preencher os pequenos vãos quase imperceptíveis das programações. Povoam o mundo da grande mídia também desfiles de vaidades, catástrofes naturais e o convívio entre os homens  naquilo que tem de mais fútil e deplorável. Barulho, cacofonia e dissonâncias dão o tom a esse mundo oferecido ao público, para o qual a harmonia é chata, como escreveu o Diretor do Projeto Genoma Francis Collins em seu livro “A Linguagem de Deus”.

Comparando a história da humanidade ao oceano, o mundo que tentamos descrever, corresponde à superfície sempre em movimento. Aos intervalos de bonança sucedem tempestades, maremotos e tsunamis, transformando a superfície num cenário por vezes de um apocalipse de terror. Descendo algumas dezenas de metros para o fundo a fúria que reina na superfície vai diminuindo para ser substituída pela calmaria em que a vida marinha encontra a tranquilidade necessária para proliferar sem ser perturbada pelos vagalhões que tornam a superfície num cenário assustador. Pois é na penumbra deste cenário silencioso que desce até os abismos escuros do oceano,  a vida de milhões de organismos, de todos os tamanhos, das formas mais bizarras e das combinações de cores mais inusitadas, vivem o perpétuo vir e devir da história da vida. E se o faro dos cientistas está correto, foi neste ambiente que surgiram, há  bilhões de anos, as primeiras formas de vida. E é na tranquilidade do fundo dos oceanos que o próprio homem vai encontrar as suas raízes remotas como espécie biológica.


Os dois cenários que os oceanos oferecem, feitas as devidas restrições e tomadas  as  indispensáveis precauções, servem de metáfora, não digo perfeita, porém, esclarecedora para entender um pouco melhor o que aconteceu e acontece ainda no “oceano” da história da humanidade. Na superfície alternam-se momentos de relativa tranquilidade com outros marcados pelo mau tempo com suas guerras, revoluções, atentados, corrupção, traições, escândalos, roubos, catástrofes naturais, tragédias aéreas, terrestres e marítimas. O cenário  do relativismo ético e moral, o vale tudo, o fim justificando os meios mais condenáveis, o homem feito lobo para seus semelhantes, a voracidade do consumo, rege o convívio das pessoas. Nele a grande mídia busca a matéria prima para alimentar a fome e saciar a sede dos seus públicos. Encontra o pasto para saciar as massas ululantes que se acotovelam nos shopings, entulham as praias, infernizam com seus sons e farras o descanso nas noites de verão de homens e mulheres exaustos pelo trabalho duro. Em resumo. Alimenta o mundo da zoeira do barulho, do estardalhaço, que se delicia com que a civilização tem a oferecer em termos de exibicionismo, de vaidades e de transitório. Enfim, sacia a parte do mundo que considera a harmonia uma chatice.

Sobre a Utopia #2

A busca de uma querência de uma Heimat como Ernst Bloch define a sua utopia, embora essencialmente a mesma, assume conotações peculiares em cada época e para cada pensador que a formulou. Depois da publicação do romance “Heinrich von Ofterdingen” de Novalis, “a flor azul” tornou-se o símbolo do movimento romântico. A obra conta a história de um jovem poeta medieval à procura da “flor azul”. Essa flor transformou-se, a partir daí, no símbolo da nostalgia romântica, um ideal místico fora do alcance. Contudo não deixa de fascinar os sonhadores  perseguidores de fantasias. Pela dificuldade de se encontrar na natureza um flor de azul pleno, geralmente vem associado a outras tonalidades, como na hortência, na violeta, no lírio e outras, a “flor azul” também é tomada como símbolo da confiança, da lealdade, da harmonia, da afeição. Por todas essas propriedades e características, reais ou atribuídas, ela simboliza a utopia proposta pelo romantismo como ideal de uma sociedade na qual florescem as autênticas virtudes humanas.

Num reflexão sobre a utopia ocupam um lugar todo especial as religiões. As grandes e as pequenas, as universais, as locais e tribais, todas elas tem razão de ser e alimentam a sua razão de ser, tentando responder as três perguntas fundamentais da existência do homem: “donde viemos, o que somos e para onde vamos”. A utopia implícita ou explícita de toda e qualquer religião consiste em oferecer uma reposta satisfatória, principalmente para a terceira: “para onde vamos”. Como já apontamos mais acima, pela sua própria natureza, o homem é um eterno inacabado, encontra-se num eterno fieri, numa incessante busca para satisfazer as suas aspirações materiais, psicológicas e espirituais. Sem nunca dizer um basta ou considerar-se plenamente satisfeito, não se cansa em procurar a “flor azul”, em alcançar a linha do horizonte que teima em afastar-se na mesma velocidade em que procura aproximar-se dela. Para dar uma resposta a esse impasse entram as religiões, cada uma à sua maneira, apontando para uma continuidade da existência humana depois da morte. Assim a morte significaria o momento em que o ser humano finalmente alcançou a linha do horizonte e entra na plena e definitiva realização de todos os  sonhos. A linha imaginária  do horizonte finalmente tornou-se realidade, finalmente a “flor azul” foi encontrada, finalmente todos os sonhos foram realizados, todas as fantasias tornaram-se realidade. Finalmente a utopia deixou de ser utopia. Não importa como a concretização da utopia é caracterizada por cada religião em particular, ou imaginada, representada ou concebida pela religiosidade de cada pessoa. Na essência não muda nada se nos referimos ao céu, ou paraíso da tradição judaico-cristã, da crença islâmica, budista, a terra sem males e outras tantas.

Na extremidade oposta às grandes utopias alimentadas pelo homem como fazendo parte de uma organização política, religiosa ou outra, encontramos no dia das pessoas comuns, as pequenas utopias pessoais que cada ser humano  persegue. Neste caso o sentido sugerido pelos radicais gregos “oú” e ”tópos”, o “não lugar” ou ainda o “lugar que não existe”, pode fornecer a chave deste fenômeno tão existencialmente enraizado na natureza humana. Faz parte da dinâmica do ser humano  nunca contentar-se com o já conquistado e com o já possuído. Cada conquista, cada aquisição estimula mais uma, melhor e maior. Não há necessidade de uma capacidade de observação maior, de métodos refinados de análises psicológicas, antropológicas, históricas, sócias, políticas, econômicas, filosóficas ou teológicas. As evidências desse fenômeno perpassam desde os atos e atitudes mais simples e prosaicas das pessoas comuns, até as iniciativas mais ousadas e mais determinantes daqueles que são responsáveis pela condução das sociedades. A concretização de uma utopia, o encontrar o “lugar que não existe, o “não lugar”, assemelha-se ao esforço de alcançar a linha do horizonte. Como essa linha se afasta na medida em que alguém a tenta alcançar, assim a utopia, ou as utopias por natureza não são exequíveis, factíveis ou realizáveis. As respostas, as soluções são pseudo-soluções, pseudo-respostas.


 Voltando a utopia descrita na obra filosófica de Ernst Bloch, constata-se que nela encontram-se, salvo melhor juízo, todos os elementos que integram esse fenômeno tão existencialmente Humano, tão “menschlich”. As grandes utopias da história, cada uma à sua maneira, aponta para um caminho  comum a ser trilhado  em busca da resposta  final, o “bem como tal”, “das Gute schlechthin”, a “querência, “die Heimat”, o Paraíso, “o Céu”, “a Cidade de Deus”, “a Terra sem Males”, “a Perfeição final, “a Nova Jerusalém” e as muitas outras que podem ser identificadas nas tradições dos mais diversos povos.