Sobre a Utopia #2

A busca de uma querência de uma Heimat como Ernst Bloch define a sua utopia, embora essencialmente a mesma, assume conotações peculiares em cada época e para cada pensador que a formulou. Depois da publicação do romance “Heinrich von Ofterdingen” de Novalis, “a flor azul” tornou-se o símbolo do movimento romântico. A obra conta a história de um jovem poeta medieval à procura da “flor azul”. Essa flor transformou-se, a partir daí, no símbolo da nostalgia romântica, um ideal místico fora do alcance. Contudo não deixa de fascinar os sonhadores  perseguidores de fantasias. Pela dificuldade de se encontrar na natureza um flor de azul pleno, geralmente vem associado a outras tonalidades, como na hortência, na violeta, no lírio e outras, a “flor azul” também é tomada como símbolo da confiança, da lealdade, da harmonia, da afeição. Por todas essas propriedades e características, reais ou atribuídas, ela simboliza a utopia proposta pelo romantismo como ideal de uma sociedade na qual florescem as autênticas virtudes humanas.

Num reflexão sobre a utopia ocupam um lugar todo especial as religiões. As grandes e as pequenas, as universais, as locais e tribais, todas elas tem razão de ser e alimentam a sua razão de ser, tentando responder as três perguntas fundamentais da existência do homem: “donde viemos, o que somos e para onde vamos”. A utopia implícita ou explícita de toda e qualquer religião consiste em oferecer uma reposta satisfatória, principalmente para a terceira: “para onde vamos”. Como já apontamos mais acima, pela sua própria natureza, o homem é um eterno inacabado, encontra-se num eterno fieri, numa incessante busca para satisfazer as suas aspirações materiais, psicológicas e espirituais. Sem nunca dizer um basta ou considerar-se plenamente satisfeito, não se cansa em procurar a “flor azul”, em alcançar a linha do horizonte que teima em afastar-se na mesma velocidade em que procura aproximar-se dela. Para dar uma resposta a esse impasse entram as religiões, cada uma à sua maneira, apontando para uma continuidade da existência humana depois da morte. Assim a morte significaria o momento em que o ser humano finalmente alcançou a linha do horizonte e entra na plena e definitiva realização de todos os  sonhos. A linha imaginária  do horizonte finalmente tornou-se realidade, finalmente a “flor azul” foi encontrada, finalmente todos os sonhos foram realizados, todas as fantasias tornaram-se realidade. Finalmente a utopia deixou de ser utopia. Não importa como a concretização da utopia é caracterizada por cada religião em particular, ou imaginada, representada ou concebida pela religiosidade de cada pessoa. Na essência não muda nada se nos referimos ao céu, ou paraíso da tradição judaico-cristã, da crença islâmica, budista, a terra sem males e outras tantas.

Na extremidade oposta às grandes utopias alimentadas pelo homem como fazendo parte de uma organização política, religiosa ou outra, encontramos no dia das pessoas comuns, as pequenas utopias pessoais que cada ser humano  persegue. Neste caso o sentido sugerido pelos radicais gregos “oú” e ”tópos”, o “não lugar” ou ainda o “lugar que não existe”, pode fornecer a chave deste fenômeno tão existencialmente enraizado na natureza humana. Faz parte da dinâmica do ser humano  nunca contentar-se com o já conquistado e com o já possuído. Cada conquista, cada aquisição estimula mais uma, melhor e maior. Não há necessidade de uma capacidade de observação maior, de métodos refinados de análises psicológicas, antropológicas, históricas, sócias, políticas, econômicas, filosóficas ou teológicas. As evidências desse fenômeno perpassam desde os atos e atitudes mais simples e prosaicas das pessoas comuns, até as iniciativas mais ousadas e mais determinantes daqueles que são responsáveis pela condução das sociedades. A concretização de uma utopia, o encontrar o “lugar que não existe, o “não lugar”, assemelha-se ao esforço de alcançar a linha do horizonte. Como essa linha se afasta na medida em que alguém a tenta alcançar, assim a utopia, ou as utopias por natureza não são exequíveis, factíveis ou realizáveis. As respostas, as soluções são pseudo-soluções, pseudo-respostas.


 Voltando a utopia descrita na obra filosófica de Ernst Bloch, constata-se que nela encontram-se, salvo melhor juízo, todos os elementos que integram esse fenômeno tão existencialmente Humano, tão “menschlich”. As grandes utopias da história, cada uma à sua maneira, aponta para um caminho  comum a ser trilhado  em busca da resposta  final, o “bem como tal”, “das Gute schlechthin”, a “querência, “die Heimat”, o Paraíso, “o Céu”, “a Cidade de Deus”, “a Terra sem Males”, “a Perfeição final, “a Nova Jerusalém” e as muitas outras que podem ser identificadas nas tradições dos mais diversos povos.

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