Sobre o outro mundo #1

A revista Atlantis – Voelker – Reisen, em suas edição anual de 1945 publicou uma matéria longa, fartamente ilustrada sobre o  que ela denominou de “O outro Mundo”. Nos três parágrafos introdutórios apresentou  a matéria mais ou menos nos seguintes termos:

Um holofote, melhor, todo um complexo de holofotes varre a superfície do globo terrestre. Iluminam o mundo oficial da mídia. Seus órgãos são os jornais, as revistas ilustradas, o rádio,  e para hoje, 70 anos depois, somamos todo o arsenal e potencial oferecido pela mídia eletrônica.  é impossível não sermos envolvidos por ela. É o mundo oficial. A grande mídia  nos informa sobre batalhas, bombardeios, debate nos parlamentos,  sobre as crises de governos, divórcios,  escândalos, atentados, corrupção, revoluções, congressos,  acidentes e crimes. Mas no mesmo cenário em que as bombas caem e o homem não se cansa de procurar novos objetos de ódio, um agricultor lavra a terra, uma mãe amamenta o filho, um comerciante expõem suas mercadorias, um engenheiro desenha projetos, um professor prepara sua aula, um médico visita seus pacientes, um enfermeira faz curativos,  um menino canta uma canção junto ao rebanho de ovelhas, uma comunidade sepulta um dos seus membros, uma mãe vigia na cabeceira do filho doente... Este é o outro mundo.

Também este outro mundo tem suas preocupações – as eternas preocupações da humanidade de todos os tempos – onde a alegria se alterna com o sofrimento. Mantem-se em pé com uma boa dose de divina despreocupação.

Reflita por instante sobre este mundo relegado para a obscuridade de atos administrativos. Todos os holofotes da mídia direcionados para esse outro mundo não seriam suficientes para abarcar a sua diversidade, a sua riqueza e a sua beleza.

O momento que escolhi para refletir um pouco sobre o “outro mundo” ao qual chama a atenção a revista “Atlantis” o mundo oficial, foco da grande mídia, vive um situação de frenesi. A invasão por terroristas da redação do jornal satírico “Charlie Ebdo “ em Paris e o massacre de 12 pessoas, entre as quais os melhores chargistas do jornal. Os holofotes da grande mídia festejam um dos seus grande momentos. Todos convergem para o episódio lamentável que expôs ao mundo o que há de mais deplorável e de mais assustador gerado no ventre de uma era histórica em que foram abolidas todas as referências e as civilizações avançam sem rumo ao encontro do desconhecido. As evidências dessa marcha errática da humanidade pós moderna, mostradas pela mídia em todas as suas cruéis modalidades, nos rincões mais remotos do planeta, viciam, perturbam e distorcem o quotidiano das crianças, dos jovens, adultos e idosos. Todos são obrigados  a respirar essa atmosfera e por isso mesmo não há como proteger-se  dos efeitos deste hálito apocalíptico que atordoa as pessoas de todas as idades e níveis de instrução. Os noticiários que se ocupam com esse mundo nada animador, dominam os meios de comunicação escritos, as redes de rádio e televisão e, de modo mais eficiente a mídia eletrônica. Em resumo o que oferecem? Atentados terroristas que abalam a nossa civilização na sua base, esquemas de corrupção de dimensões planetárias, escândalos que mancham as instituições mais sólidas. Exibem dezenas de prisioneiros prestes a serem degolados pelos seus algozes, fanáticos defensores de um fundamentalismo religioso desumano.  Até crianças são exibidas com arma na mão prontas para  executar reféns com um disparo na nuca. Aliás no momento histórico em que tento redigir essas reflexões, multiplicam-se os exemplos que o tumultuaram nas últimas semanas. Relembro o massacre dos jornalistas em Paris, a caça aos terroristas e seu fim  previsível, os atentados na Bélgica, a prisão de suspeitos de atentados na Alemanha. A tudo acrescente-se a presença do mundo inteiro em Paris para demonstrar solidariedade aos jornalistas mortos e o seu jornal. Neste exato momento a grande mídia tem mais uma preocupação. Com a aproximação da hora da execução  pelas autoridades da Indonésia, de um traficante internacional de drogas brasileiro. As notícias que falam das pessoas comuns e do seu quotidiano, ocupam espaços  à margem e como que para preencher os pequenos vãos quase imperceptíveis das programações. Povoam o mundo da grande mídia também desfiles de vaidades, catástrofes naturais e o convívio entre os homens  naquilo que tem de mais fútil e deplorável. Barulho, cacofonia e dissonâncias dão o tom a esse mundo oferecido ao público, para o qual a harmonia é chata, como escreveu o Diretor do Projeto Genoma Francis Collins em seu livro “A Linguagem de Deus”.

Comparando a história da humanidade ao oceano, o mundo que tentamos descrever, corresponde à superfície sempre em movimento. Aos intervalos de bonança sucedem tempestades, maremotos e tsunamis, transformando a superfície num cenário por vezes de um apocalipse de terror. Descendo algumas dezenas de metros para o fundo a fúria que reina na superfície vai diminuindo para ser substituída pela calmaria em que a vida marinha encontra a tranquilidade necessária para proliferar sem ser perturbada pelos vagalhões que tornam a superfície num cenário assustador. Pois é na penumbra deste cenário silencioso que desce até os abismos escuros do oceano,  a vida de milhões de organismos, de todos os tamanhos, das formas mais bizarras e das combinações de cores mais inusitadas, vivem o perpétuo vir e devir da história da vida. E se o faro dos cientistas está correto, foi neste ambiente que surgiram, há  bilhões de anos, as primeiras formas de vida. E é na tranquilidade do fundo dos oceanos que o próprio homem vai encontrar as suas raízes remotas como espécie biológica.


Os dois cenários que os oceanos oferecem, feitas as devidas restrições e tomadas  as  indispensáveis precauções, servem de metáfora, não digo perfeita, porém, esclarecedora para entender um pouco melhor o que aconteceu e acontece ainda no “oceano” da história da humanidade. Na superfície alternam-se momentos de relativa tranquilidade com outros marcados pelo mau tempo com suas guerras, revoluções, atentados, corrupção, traições, escândalos, roubos, catástrofes naturais, tragédias aéreas, terrestres e marítimas. O cenário  do relativismo ético e moral, o vale tudo, o fim justificando os meios mais condenáveis, o homem feito lobo para seus semelhantes, a voracidade do consumo, rege o convívio das pessoas. Nele a grande mídia busca a matéria prima para alimentar a fome e saciar a sede dos seus públicos. Encontra o pasto para saciar as massas ululantes que se acotovelam nos shopings, entulham as praias, infernizam com seus sons e farras o descanso nas noites de verão de homens e mulheres exaustos pelo trabalho duro. Em resumo. Alimenta o mundo da zoeira do barulho, do estardalhaço, que se delicia com que a civilização tem a oferecer em termos de exibicionismo, de vaidades e de transitório. Enfim, sacia a parte do mundo que considera a harmonia uma chatice.

This entry was posted on segunda-feira, 12 de outubro de 2015. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.