Sobre o fazer história #1

Depois de mais de cinco décadas em sala de aula e dedicação à pesquisa chegou o momento de arriscar um olhar retrospectivo e proceder a uma balanço dos resultados auferidos nas décadas dedicadas à academia. Esses anos todos não foram simplesmente consumidos em ministrar aulas, e por meio delas, familiarizar  as novas gerações com os conhecimentos essenciais que cobrem os diversos campos do conhecimento, ou na orientação de trabalhos científicos, dissertações e teses. É comum a impressão de que a razão de ser de um mestre se esgota  ao nível dessas atribuições formais. Acontece que as demandas que caracterizam um autêntico mestre, pressupõem uma constante  atualização, ampliação e aprofundamento dos conhecimentos. E na medida em que informa  e principalmente forma gerações de discípulos elabora, consolida e  interioriza uma cosmovisão própria, fruto da percepção original e singular pela qual enxerga os acontecimentos e fatos que o rodeiam. Muitos há que não passam do alinhar-se  ou filiar-se a linha teórica e metodológica de um determinado autor ou de uma determinada escola. Com orgulho autodenominam-se marxistas, liberais, positivistas, hegelianos, tomistas, platônicos, aristotélicos, agostinianos,  etc. costumam analisar tudo sob a ótica teórica e seguir a cartilha metodológica da sua preferência. Uma opção nesta linha, porém, esconde uma perigosa armadilha. Não raro termina numa percepção unilateral e parcial da realidade e com facilidade leva à adesão a ideologias de ação equivocadas que, se levadas ao extremo, terminam em posições fundamentalistas, tanto no campo estritamente religioso, quanto no político, econômico e até científico. Essa é a sina  que ronda cientistas, pesquisadores e estudiosos em geral na civilização pós-moderna. Diante de um universo fragmentado, a ponto de perder a noção do todo, constroem mundos individuais cada vez mais acanhados e estanques. O físico, o biólogo, o geneticista, o geógrafo, o sociólogo, o economista, o antropólogo, o historiador, o filósofo, o teólogo, recolhem-se aos seus casulos sem janelas. A perda da capacidade de perceber o Todo, a Totalidade, é diretamente proporcional ao avanço de suas descobertas. De tanto dissecar, desmontar e analisar já não percebem mais o corpo, muito menos a alma. Só restam tecidos, engrenagens, peças de máquina, fatos e ideias dispersas. Há mais de setenta anos escrevia Teilhard de Chardin, prenunciando a pós-modernidade que se anunciava no horizonte.

Ao contrário dos “primitivos” que dão personalidade a tudo que se mexe, ou mesmo dos primeiros grupos que divinizavam todos os aspectos e todas as forças da natureza, o homem moderno tem a obsessão  de despersonalizar ou de impersonalizar o que mais admira. Duas razões para essa tendência. A primeira é a análise – esse maravilhoso instrumento da pesquisa científica, ao qual devemos todos os nossos progressos – mas que, de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e de partículas que se esvaem. E a segunda  é a descoberta do mundo sideral, objeto tão vasto que se tem a impressão de que toda a proporção entre o nosso ser  e as dimensões do Cosmos à nossa volta, foi abolida”.

E a profecia de Teillhar de Chardin tornou-se dura realidade neste começo do terceiro milênio. O mundo pós-moderno caracteriza-se pela perda de referências e pela negação de princípios e valores sociais, éticos, morais e religiosos permanentes. E a razão de ser desse cenário preocupante é a perda da perspectiva de um Todo que serve de referência e faz com que o universo, a natureza e o próprio homem façam sentido. O esforço maior, portanto, que cabe à Academia e mais especificamente à Universidade consiste, em de alguma forma, trilhar o caminho de volta ao reencontro com o Todo, a Totalidade, A Verdade. Alexandro Serrano Caldera chama a atenção que: “vivemos num mundo cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação e que cabe à Universidade reunir de novo os fatores dispersos numa unidade que é o ser humano; numa síntese que é o homem, a mulher, o sujeito histórico”... “Há nisso a intenção fundamental de síntese e integração do ser humano com sua realidade, com a sua sociedade e com a sua história. É nesse particular que a Universidade e o Conhecimento têm de jogar um papel unificador”.

Deixemos de lado os campos que se ocupam com as assim chamadas ciências empíricas, ciências experimentais, ciência exatas, ciências duras, ou qualquer outro nome que se prefira. O nosso “negócio”, para nos servirmos do termo tão prestigiado pelo homem pós-moderno, são as Ciências Humanas, e mais especificamente, as Ciências Históricas.

Como sugere o próprio conceito as “Ciências Humanas” cobrem um vasto e complexo campo de conhecimentos e investigações complementares que têm no homem o centro das preocupações. E sendo assim, todo e qualquer esforço para encontrar respostas para as muitas perguntas que se colocam para o historiador, pressupõe uma  que é a condição sem a qual as demais ficam no ar: quem é afinal o Homem? As respostas são tantas quantos os pontos de vista a partir dos quais o observamos. Parece que os antigos gregos formularam uma que pode ser útil como ponto de partida para uma reflexão sobre o homem como ser histórico: o homem existe  como a natureza mineral; o homem existe e vegeta como as plantas; o homem existe, vegeta e sente como os animais; o homem existe, vegeta, sente e raciocina. Em outras palavras. Os minerais existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam e sentem, o homem existe, vegeta, sente e raciocina. São várias as conclusões que podemos tirar dessa constatação.

Primeiro. Ao percorrermos a história dos povos, um fato inequívoco impõe-se: a relação do homem e de suas culturas com o meio natural em que surgiram e se consolidaram. E não se trata de uma simples  relação  conjuntural, mas de uma inserção existencial no mundo natural. E não poderia ser de outra forma. Começa pelo fato de o corpo material do homem buscar  os componentes estruturais entre os elementos comuns encontráveis na natureza: oxigênio, nitrogênio, gás carbônico e hidrogênio, além de duas dezenas de outros, constantes na tábua periódica dos elementos.

Segundo. Como qualquer outra espécie animal o homem depende dos alimentos, depende dos abrigos e refúgios naturais para se proteger das intempéries e defender-se das feras e dos inimigos da própria espécie.

Terceiro. O homem partilha com os outros animais o mesmo ciclo de vida. É concebido, nasce, vive e morre em obediência às mesmas leis que regem a vida individual e coletiva das demais espécies. Mais. A humanidade, assim como nos é apresentada pelas Ciências, pela Antropologia, pela História, pela Filosofia e pela Teologia, forma uma única espécie. Pelo menos é assim que a definem os critérios taxonômicos da classificação das espécies animais; confirmam-no os estudos do genoma humano e os estudos da paleoantropologia. As pesquisas arqueológicas, etnográficas e etnológicas, assim como a história da cultura, apontam para a mesma conclusão. E para não haver dúvida sobre a unidade da espécie humana, a Antropologia Filosófica e a própria Antropologia Teológica concordam com as definições que as Ciências Naturais e as Ciências Humanas defendem na teoria e supõem como ponto de partida quando lidam na prática com questões humanas.

Quarto. A espécie humana, entretanto, embora com  raízes existenciais no mundo mineral ou na litosfera, no mundo vivo ou biosfera, supera-os pela inteligência reflexa, para dar vida e existência  a uma esfera completamente nova, a Noosfera, para recorrer a um dos conceitos-chave de Teilhard de Chardin. Enquanto os minerais apenas existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam, sentem e se orientam pelos instintos, o homem existe, vegeta, sente e conta com os instintos como estímulos, mas sobretudo raciocina, reflete. É dono de uma inteligência reflexa. Não é o lugar nem o momento de entrarmos mais a fundo na discussão  se a passagem do Rubicão que marca a fronteira entre o instintivo e o racional,  foi um salto de qualidade ou apenas mais uma ascensão gradual prevista na lógica da evolução natural. O fato é que representou o ponto de partida para  uma revolução inédita de uma espécie viva na solução dos desafios existenciais. Em outras palavras é licito formular o “salto” a que nos acabamos de referir nos seguintes termos: o animal orientado pelo instinto “sabe” o que lhe convém e “sabe” o que lhe é prejudicial. O instinto cego garante-lhe o sucesso sempre que o âmbito do seu potencial não é ultrapassado. Nesse sentido pode-se afirmar que o instinto garante com certeza matemática o sucesso, e por isso o animal não tem versatilidade nem liberdade para escolher saídas alternativas, quando algum caminho se fecha.

Com o homem as coisas se passam de maneira bem diferente. Munido de Inteligência Reflexa é capaz de “saber o porque do seu saber”. Por isso desde aquele momento único na história do universo em que, em alguma savana da África, cintilou pela primeira vez a centelha da Consciência Reflexa e o homem se fez homem, sua natureza permaneceu a mesma até hoje. Sob o aspecto físico, anatômico, fisiológico, biogenético e instintivo, o homem tem suas raízes fincadas na Litosfera e na Biosfera. Mas distancia-se delas e as ultrapassa de vez pela capacidade da Reflexão. Essa eleva a espécie humana a uma esfera inteiramente nova: a Noosfera. Se a espécie humana fosse apenas mais uma espécie de símios antropoides, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou condenado a uma sobrevivência sem brilho. Suas mãos não especializadas servem para tudo, e por isso mesmo, não servem para nada específico. Seus dentes caninos servem para pouca coisa mais do que completar a arcada dentaria. Seus sentidos pouco apurados não lhe garantem os  alertas e alarmes  indispensáveis, num entorno em que atrás de cada árvore, cada arbusto, cada rocha, ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem. A Inteligência Reflexa não só compensou a precariedade da especialização anatômica, como a transformou em trunfo para o sucesso na competição pela conquista dos espaços e na batalha pela sobrevivência.


Com olhar curioso e inquiridor o homem perambulava pelas florestas, pelas estepes, pelos desertos, pelas montanhas e planícies, observando, experimentando, comparando, distinguindo e selecionando aquilo que a natureza lhe punha à disposição em alimentos, vestuário, abrigo, proteção, inspirações, simbolismos e estímulos, responsáveis pela formação do imaginário. A cepa original da espécie humana multiplicou-se  e povoou a terra: a África, a Ásia, a Europa, as Américas e o mundo insular do Pacífico. Centenas de raças: brancas, negras, amarelas, vermelhas e todos os matizes que a transição entre elas foi capazes de engendrar, construíram suas histórias, desenvolveram culturas e consolidaram civilizações. E nessa fantástica epopeia o homem buscou no seu entorno ambiental o sustento, o abrigo, os símbolos para construir o seu imaginário. A partir de então aconteceu a lenta  e gradativa simbiose, a síntese entre o homem e a paisagem, e com ela, definiu-se o caleidoscópio multicolorido  das culturas dos centenas de milhares de povos que povoaram e ainda povoam a terra.

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