“Toda a cultura é síntse”, ensina Alexandro Serrano Caldera. Por
analogia, é lícito afirmar que toda “identidade é síntese”, pois, os elementos
que compõem a síntese da cultura são os mesmos que definem o perfil da identidade étnica. Desta
forma, cultura e identidade são as duas faces da mesma realidade. A cultura vem
a ser o cenário sobre o qual, no qual e a partir do qual, se esboçam os traços
que definem as identidades individuais e coletivas. Evidentemente, esta
afirmação implica num universo de desdobramentos que assumem características
próprias e peculiares em cada caso particular. Uma observação superficial
dificilmene perceberá parentescos mais significaivos entre a cultura dos
patagônios da Argentina e os tiroleses da Áustria; entre os esquimós do Alaska
ou da Groenlândia e os pigmeus de Angola; entre os escoceses e os nativos da
Austrália. Há, porém, evidências inegáveis que apontam para uma unidade da
espécie humana. O homem compõe uma espécie zoológica com as características
comuns de natureza bológica inerentes a esse conceito. Existe como existiu uma
única espécie humana como provam, tanto a paleoantropologia, quanto os criérios usuais de classificação zoológica
das raças humanas historicamente conhecidas, quanto o mapeamento do genoma
humano, concluído há dez anos. Uma identidade radical a nível taxonômico e a
nível biogenético reune, portanto, todas
as raças humanas muma espécie, sendo, portano, interférteis e interfecundos,
isto é, passíveis de miscigenação
natural, gerando uma descendênia híbrida
fecunda.
A constatação que se acaba de fazer leva
a uma conclusão importante quando se pretende delimitar a extensão e as
fronteiras na formação da identidade étnica e cultural. O homem como espécie
biológica insere-se existencialmente no entorno natural, e isto de várias
formas. Em primeiro lugar, o corpo humano é constituído pelos mesmos elementos
químicos que entram na formação da natureza mineral, orgânica e viva, em todos
os seus níveis. Em segundo lugar, os mesmos proccessos e as mesmas leis
químico-fisiológicas básicas que mantém em funcionamento qualquer ser vivo,
garantem também as funções vitais do organismo humano. Em terceiro lugar, como
qualquer ser vivo, o homem vive numa relação existencial permanente com o meio geográfico que o
abriga. O conjunto das atividades fisiológicas necessárias à vida, buscam no
ambiente natural a reposição das matérais primas pocessadas pela atividade
vital. Da mesma forma a sobrevivência da espécie humana depende das condições climáticas, das
matérais primas e dos recursos naturais que lhe oferecem abrigo e proteção
contra as intempéries e as ameaças
oriundas da parte dos inimigos humanos e animais predadores. Essa realidade
põe-nos frente ao primeiro dos grandes conjuntos de elementos que determinam a
gênese de uma identidade étnico-cultural: o entorno geográfico em que as
identidades étnicas se consoslidam. Infelizmente a convicção de que a
compreensão da História, sem tomar em consideração o meio gográfico em que ela
acontece, priva-a de um dos seus componentes qualitativos, de um significado
muito além do que muitos historiadores aceitam ou gostariam de aceitar. Em
outras palavras uma história sem tomar
em consideração o chão em que ela foi moldada, termina numa sequência de fatos e acontecimentos, interpretados ao
sabor de esterótipos metodológicos em moda no momento ou ideologias politicamente corretas, num determinado
momento. Desconhece as raízes mais
profundas, a seiva que vem alimentando sua energia vital desde que o homem se
fez homem. Acontece que o homem, como alertam os antigos gregos, existe como os
minerais, existe e vegeta como as plantas, existe, vegeta e sente como os
animais, mas supera essas esferas pelo fato de ser capaz de raciocinar, de
observar, de comparar, de avaliar, de rejeitar, de preferir, de optar por
alternativas de solução. Em outras palavras o
homem está sujeito a todos os condicionamentos como os demais seres
vivos, supera-os, entretanto, pela inteligência reflexa. Se o animal sabe das
coisas, o homem é capaz de saber o porque do seu saber. Esta é a gande
diferença. Serviu de ponte permitindo a travessia do Rubicão, que separa a
biosfera da noosfera, com diria Teilhard de Chardin, diferencia o lago parado
da história do animal, do caudal impetuoso da história do homem.
Desgaçadamente, a sequência de refomas do
ensino e, principalmente, do ensino superior, abandonaram o conceito da
Faculdlade de Filosofia, Ciências e Letras, à qual, por assim dizer, cabia o papel de “alma mater” das
universidades, isto é, o centro, por excelência da produção do conhecimento. Em
volta dela agrupavam-se as escolas e faculdades que cuidavam da formação profissional
e o desenvolvimento de tecnologias novas. A Geografia, de área humanística,
formando um único departamente com a História, passou a ser tratada como uma
área técnica. Até o começo da década de 1960, com a implantação da primeira
grande reforma do ensino, formavam-se bacharéis ou licenciados, doutores ou
livre-docentes em História e Geografia. O Pe. Schmitz, po ex., orgulha-se de
ser portador de um desses diplomas. Com isso para o historiador e o geógrafo
começou distanciamento, ao ponto de se
ignorarem mutuamente e julgarem não
existir nada em comum entre eles. O fato é que ambos perderam e continuam
perdendo muito da sua consistência e ignoram, como que perdidos nas brumas do
tempo, elementos fundamentais para entender a gênese das identidades étnicas.
Na síntese em que vai resultar a identidade étnica concretiza-se basicamente em duas dimensões:
a síntese com o meio geográfico e a síntese entre as mais diversas identidades
étnicas, quando por uma razão ou outra se encontram e se aculturam mutuamente.
Hoje quero deter-me na primeira, isto é,
na dimensão físico-geográfica.
A natureza existe e subsiste sem
o homem, mas o homem não existe nem subsiste sem a natureza. O ponto de partida
da parceria do homem com seu meio geográfico,
na construção da história,
deu-se, repetindo de novo Teilhard
de Chardin, no momento em que em alguma savana da África, lampejou pela
primeira vez, a centelha da inteligência
reflexa no cérebro do primeiro ser humano. Não importam as centenas de
milhares, ou até milhões de anos que se passaram desde então; não importa
também se foi numa savana da África, numa estepe de Euro-Ásia ou numa floresta
tropical; não importa, tão pouco, se aquele primeiro ser humano apresentava uma
fisionomia mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. As regras, as leis e as
dinâmicas que até hoje regem a construção da identidade étnico-cultural,
começaram a tomar forma naquele momento em que o homem, com olhar curioso e
atento, embrenhava-se nas florestas, percorria as estepes e savanas, adentrava
os desertos, escalava montanhas, percorria planicies e pescava nos rios.
Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi
aprendendo a identificar e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em
alimentos, vestuário, abrigo e proteção. Sem demora as observações e as reflexões levaram esses seres humanos
que, injustamente rotulamos de “primitivos”, a equipar as mãos com artefatos e
instrumentos que tornaram o acesso e o manuseio dos alimentos menos trabalhoso,
mais rendosa a caça, mais segura a defesa contra os animais ferozes, mais
eficiente a proteção contras intempéries.
E assim estavam postas as
premissas para começar lentamente, numa dinâmica auto alimentada, num ritmo
cada vez mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios e
montanhas, entre o homem e as estepes, os desertos, os gelos polares, os
trópicos e os climas temperados. Ao mesmo tempo
em que foi aperfeiçoando e diversificando as tecnologias da fabricação
das ferramentas para garantir a sua sobrevivência física, cresceu o interesse
pela compreensão dos fenômenos, das incógnitas e mistérios com que se deparava
no seu cotidiano. O nascer, o viver e morrer dos homens e anmais, os ciclos da
natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da
lua, o germinar, o crescer, o florescer, o amadurecer dos frutos das plantas,
tudo desafiava a curiosidade primigênia. E, na procura de respostas tomou forma
todo um corpo de crenças, mitologias, simbologias que terminaram em formar as
cosmovisões peculiares a cada situação histórica concreta.
Levado pelo instinto de
sobrevivência, o homem foi buscar no seu entorno geográfico os alimentos de que
necessitava. E, desde cedo, o próprio ato de alimentar-se, ultrapassou o ato
elementar instintivo e compulsório, para revestir-se de procedimentos de
natureza cultural, como hábitos, costumes, etiquetas, proibições e tabus. O ato
de alimentar-se assumiu, de alguma forma, em todos povos, as características de
um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte inegrante das
respectivas culturas, ou tratadas como algo sagrado, dotado de poderes mágicos,
milagrosos, ou proibidos como maléficos, impuros ou simplesmente nocivos à
saúde.
O convívio do homem com a
natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como melhor consolidar uma paraceria
com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente
na moldagem de sua identidade. E, neste esforço, três tipos de desafios
estimularam a sua criatividade. Em primeiro lugar, encontrar na natureza os
alimentos e abrigos para garantir a sobrevivência física. Em segundo lugar,
descobrir e desenvolver tecnologias cada vez mais variadas e eficientes, para
facilitar a obtenção dos alimentos, confecção do vestuário, a instalação de
abrigos e aperfeiçoar os meios de defesa contra os animais e o próprio homem.
Em terceiro lugar, penetrar nos mistérios da natureza, tentar compreendê-los e,
espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo e decifrar os mistérios da
própria existência.
Cada uma das tradições culturais
identificáveis na história, brotou e desenvolveu-se numa ambiente geográrfico
de características próprias. Para a finalidade da análise aqui em questão,
merecem destaque aqueles elementos que satisfazem, em primeiro lugar, as
necessidades da sobrevivência biológica do homem: a alimentação, o vestuário, a
habitação e a defesa. Num segundo momento, vêm as tecnologias que permitiram
que tornaram cada vez mais eficiente e racional, o aproveitamento das matérias
primas, desde o primitivo e tosco “machado de punho”, passando por milhares de
modalidades de ferramentas, instrumentos, artefatos e implementos.
Paralelamento evoluiu toda uma linha de tecnologias desenvolvendo euipamentos
de caça e pesca e armas de defesa e ataque. O universo da “cultura material”,
parte fundamental da identidade étnica, realizou-se neste plano. O fogo ocupou
um lugar todo peculiar nessa síntese. Na sua visita ao museu de Chicago o Pe.
Balduino Rambo, deixou a seguinte reflexão ao visitar o setor de artefatos
pré-históricos.
O homem que como caçador e coletor,
há muitos milhares de anos, vagava pela florestas e estepes, de forma alguma
era meio ou três quartas partes animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até
certo ponto alltamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são
os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos o instrumentos que servem
para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo
confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e silex, tudo que hoje se
fabrica de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, fritar, refogar, cozinhar
e, com isto, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente às
cozinheiras e cozinheiros, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o
descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana
é possível. Se hoje acendemos o fogo debaixo das panelas, atrelamos às máquinas
a vapor, ao motor, aos nossos carros, às máquinas voadoras, devemo-lo, em
última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da
queda um raio, na eupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo friccionando
dois pedaços de madeira ou batende uma fragmento de silex contra o outro. Ele
foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do macahdo de guerra, da
massa, dos punhais e das lanças arremessadas com as mãos. Foi o inventor da
arte de costurar, comprovada, pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com o
mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas de aço. Confeccionava vestes
com peles de animais e não vagava nú por aí, como querem aqueles que gostam de
venerar animais como seus avós. Foi o inventor da morada humana, primeiro em
cavernas, depois em buracos subterrâneos e cabanas e, finalmente, em casas de
verdade, mesmo que fossem menos
confortáveis que os nossos arranha-céus ou palácios. Certamente tinham
melhor ventilação e reuniam a família em
volta da chama amiga, como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar
hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas, comemos até saciar”.
Continua depois as reflexões
diante dos objetos expostos e que testemunham o universo artístico e mágico
religioso do homem do paleolítico.
O homem primitivo, portanto, não
era apenas um grande inventor – o maior de toda a história humana, como também
um autêntico homem, bom no seu ser mais íntimo. Demonstram-no seus mortos,
sepultados com todo o cuidado, fazendo-os acompanhar na sepulltura com suas
armas prediletas e adornos. Somente desta formma chegaram até nós alguns
crâneos e esqueletos. Os restos de uma criança na Riviera francesa sugerem uma
imortal canção de amor de mãe. Mais de mil pequenas conchas, todas perfuradas e
dispostas em fileiras, cobrem o esqueleto. Pode-se conclluir que algum dia
estiveram unidas com um barbante e presas numa roupinha. Aqui uma mãe fez
acompanhar o seu tesouro para a sepultura com que de melhor tinha. ( ... ) Onde
se manifestam semelhantes sentimentos aí esstá viva a crença numa divindade e
numa vida depois da morte. ( ... ) Nossso amigo e antepassado, homem primitivo,
foii um poderoso artista, antes de mais nada um acabado pintor em preto e
branco.
Mas é a reflexão diante dos
objetos expostos, escavados pelo
arqueólogo Leonnard Wooley da universidade da Filadélfia, em 1922 e
comentados em seu livro: “Ur e o Dilúvio”, que comprovam uma sociedade de
agricultores existencialmente enraizada no seu chão.
Parou-me a respiração quando,
subitamente, me deparei no museu de Filadelfia, com os objetos que me eram
conhecidos apenas em fotografias. O ricamente ornamentado carro fúnebre da
rainha Schubad vem do cemitério real dos velhos Sumérios - ancestrais dos Assírios e Babilônios,
inventores da escrita cuneiforme. No timnão estão os dois jumentos, em volta os
três peões encarregados dos animais e seus carrregadores, com lanças de ouro,
sacrificados junto com a rainha, seus pentes, agulhas de cabelo, brincos, anéis
com pedras preciosas embutidas; todo o seu tesouro de recipientes,
saboneteiras, caixinha de pó de arroz feitas de ouro, prata, cobre e pérolas. (
... ) Outras coisas ainda haviam sido colocadas na sepulltura com a rainha
Schubad. Havia em abundância punhais e cálices de ouro, caixinhas de prata,
lacres de pedras preciosas e metal. Um desses objetos é a grande lira de ouro
de lápis-lásuli na forma humana de animais; um asno tocando harpa, uma orelha
deitada para trás e a outra para frente, acompanhado de um urso que dançava ao
rítmo da música; uma grande cabeça de boi também de ouro e lápis-lásuli
encimava a lira. ( ... ) Outra peça de luxo é um cabrito, ereto atrás de um
arbusto, tudo moldado em ouro e prata, Só as grandes flores do arbusto são conchas
brilhantes sãode madrepérola.
De um lado completou e ampliou em
muito as possibilidades de sobrevivência física do homem, do outro,
constituiu-se, pela própria natueza, numa fonte inesgotável de inspiração e de
simbolismos. Agora já no plano da “cultura imaterial”, o meio oferece, de
acordo com suas peculiaridades, inspirações, referências simbólicas, estímulos
à imaginação, fontes de crenças de natureza mágica ou religiosa, inspirações
para a prática de rituais, etc., etc. Resumindo. É legítimo afirmar que a
identidade étnica resultou originalmente da simbiose, da síntese entre o
atendimento às necessidades materiais e espirituais e os recursos materiais e
as fontes de estímulos espirituais, presentes no entorno geográfico específico
em meio ao qual as identidades étnicas foram consolidadas.
Até o século XIX adentro as civilizações de alguma importância
no cenário mundial, foram civilizações agrárias ou pastoris. Dois paradigmas
culturais, portanto, existencialmente enraizados no entorno geográfico. O meio entrou com os
condicionamentos circunstanciais: os recursos e matérias primas indispensáveis
para a sobrevivência física e os estímulos para desenvolver a cultura
imaterial. Do encontro do homem com o seu chão rsultou, passo por passo, a
simbiose entre a paisagem e a alma humana, fazendo com que nessa relação, durante os milênios, se
consolidassem as culturas com as respectivas identidades. O rumo e o ritmo dos
incontáveis perfís de culturas, foi traçado pelas peculiaridades climáticas,
topogeográficas, fitogeográficas, zoogográficas e edafológicas das diversas
regiões. Esses condicionamentos são muito mais decisivos para a compreensão de
uma identidade cultural, do que se imagina ou se gostaria de admitir. As
diferenças étnico-culturais são flagrantes quando se comparam aquelas que se
consolidaram aos longo dos rios, em áreas de florestas, em encostas de
montanhas, em altiplanos, em estepes, em savanas, em campos naturais, em
desertos ou nas regiões polares.
O convívio imediato, diuturno,
íntimo, existencial com a natureza despertou no homem a percepção inequívoca de
fazer parte integrante dela. Além de depender dela para a vida e a morte, sua
vida desenrolava-se na mesma cadência, nos mesmos ciclos. Em neste conviver
simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu
imaginário, a sua simbologia, alimentando suas crenças, sua religiosidade, seus
rituais, seus sistemas éticos, enfim, sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por
assim dizer, animava-se e personalizava-se de accordo com o significado
material, imaterial e relgioso de que vinha revestido. As realidades naturais e
os fenômenos que as acompanhavam, assumiam vida e importância pelo que
representavam no cotidiano e pelo que sugeriam à imaginação. Aconteceu assim
uma espelhar-se recíproco entrre o homem e as realidades e fenòmenos naturais.
E, em meio a esse processo de interação, de amálgama ou de síntese, as culturas
e as identidades étnicas foram desenhando seus perfis e a História defindo o
seu rumo.
Durante o Mesolítico, período de
transição entre o Paleoítico e o Neolitico, coletores e caçadores deram um
passo revolucionário na busca do controle no suprimento de suas necessidades
básicas se sobrevivência. O convívio com
os animais, a observação dos seus hábitos, deixaram claro que havia uma grande
dferença entre as muitas espécies que conviviam nos mesmos territórios com o
homem. Uns agrediam e outros evitavam a presença dos humanos. Havia-os também que se acostumaram com os
acampamentos de caçadores. E nesse convívio, de observação em observação,
de tentativa em tentativa, algumas espécias úteis, sob diversos aspectos,
passaram a fazer parte do quotidiano e da rotina diária. Deve ter sido assim
que, o acúmulo de experiências e a soma de resultados, levou à domesticação de
espécies fornecedoras de alimentos e abrigos como ovinos, bovinos, caprinos,
suinos; espécies auxiliares nas atividades diárias, como o cão de guarda;
espécies empregadas no transporte de carga, tração e montaria. Esta transição
obviamente não aconteceu de um dia para o outro. Foram necessários séculos e
milênios, para que aos caçadores nômades de animais selvagens, sucedessem os
pastores e criadores de animais. Essa passagem representou um passo gigantesco
em direção à libertação do homem da imposição do meio geográfico e assumir
gradativamente o controle sobre os recursos indispensáveis à sobrevivência.
Tanto a domesticação de animais
quanto a domesticação de plantas, resultou numa completa revolução na relaçao
do homem com o seu ambiente natural. Darci Ribeiro fala em Revolução dos
Alimentos. É dificil saber exatamente quais foram as espécies de animais que
foram domesticadas por primeiro. As evidências indicam que vestígios de
ovelhas, cabras, jumentos, bovinos, além de cães, aparecem como dos mais
antigos. Mas não são as espécies domesticadas em si que fizeram a diferença. O
importante foi o fato que os pastores foram buscar pastagens naturais onde seus
rebanhos pudessem multiplicar-se e
gantir um suprimento abundante de carne, peles, lã, ossos e chifres. Começaram
a viver em acampamentos semi-nômades e deslocavam-se por territórios por vezes
sem limites definidos. O quotidiano desses pastores consumia-se em função dos
rebanhos que, po sua vez, retribuíam com carne, leite, peles, lã, ossos e chifres.
Uma cuultura toda ela voltada para o pastoreio humanizou a fisionomia das
savanas da África, as estepes semi-áridas na periferia dos desertos do Oriente
Médio e Próximo, as estepes da Euro-Ásia. Não há necessidade de insistir que a
cultura desses povos nômades ou seminômades assumisse contornos com marcas
diferenciais inconfundíveis. Sem falar na cultura material, generalizou-se um
pardigma de organização social, com flagrante predominância do patriarcado. O
imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica dos rebanhos,
na dinâmica da vida dos acampamentos, e não em último lugar, nos fenômenos
naturais sempre presentes. Fatos do quotidiano como nascer, crescer, viver,
reproduzir-se e morrer, inspiraram os poetas, cantores e músicos. Os astros
tiveram um significado todo especial na vida desses povos. O ir e voltar do sol
comandando a dinâmica e a rotina do quotidiano, as fases da lua, a alternância
das estações do ano, transformaram, por assim dizer, o sol e a lua em
pesonalidades mitológicas, reverenciadas como entidades sobrenaturais ou
verdadeiras divindades. A vida em tendas e acampamentos moveis, as vigílias
noturnas junto aos rebanhos, induziram
uma relação toda particular entre os pastores e o firmamento estrelado.
Os pastores de ovelhas e cabras passavam noites e mais noites em vigílias
solitárias junto aos rebanhos. Dispunham de todo o tempo do mundo para cantar,
fazer versos, dar asas à imaginação, refletir, filosofar, e porque não, rezar.
E, como fonte de inspiração par tudo isso, contavam em sua volta com a
escuridão e o silêncio da noite, quebrado aqui e acolá, pelo balido de uma
ovelha, o grito de uma coruja, o uivo de um lobo, o canto de um grilo. E o
firmamento misterioso, fonte das fontes de reflexão e inspiração, estendia-se
sobre suas cabeças como uma gigantesca tenda. Sobre ela luziam milhões de
estrelas, brilhavam planetas, passavam cometas errantes e a lua navegava no
alto completando religiosamente seus ciclos de vinte em vinte oito dias. Não
tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo nada tinha
de estático. Os astros movimentavam-se numa coreografia disciplinada,
percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis
imutáveis. De tempos em tempos essa dança celeste sofria a intromissão de
fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões estranhos
iluminavam a noite escura ou algum astro peregrino emergia do desconhecido,
cruzava o firmamento para, em seguida, submergir de novo no desconhecido. O
inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas, a queda de
meteoros e meteoritos, devem ter impressionado os pastores em noites de vigíla
e mexido com seu imaginário, como se conta de Cadmon, antigo poeta inglês,
pastor de ovelhas, que escutou nas entranhas da noite uma voz que lhe pedia:
Cadmon, canta-me a canção do começo das coisas!” E observando as galáxias em
noites sem nuvens os conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo
contornos de figuras humanas e animais familiares como a virgem, o cão, o capricórnio, a ursa, a balança, os
peixes o touro, o leão. Desta forma o
firmamento acima das suas cabeças, povoou-se de criaturas imaginárias, réplicas
daquelas com as quais convivia no dia a dia.
Não é de se admirar que as raízes
da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia, devem ser
procuradas entre os criadores de gado e os pastores de ovelhas e cabras do
Neolítico. A relação real ou imaginária que se estabeleceu a partir dai, entre
o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino do homem, não parou de se
aprofundar e consolidar. Mesmo hoje quando o progresso cinetífico desvendou em
grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam
nem público nem popularidade, contando com um número de representantes nada
desprezível entre as camadas que se consideram cultas e ilustradas. Se
levássemos essas reflexões nesta linha avante, terminaríamos, com certeza, em
considerações filosóficas, como aquelas
que levaram Nicolau de Cusa a formular o princípio de que “o todo reflete-se
nas partes”, Espinosa a formular sua visão panteista do mundo, Teilhard de
Chardin apresentar sua grandiosa unidade universal, Ludwig von Bertalanffy a
propor que o universo forma um giganesco sistema, construído sobre inúmeros
subsistemas, Balduino Rambo observando os precipícios dos Aparados da Serra,
observar que alguém mora naqueles abismos
e alguém vigia naquelas torres de observação. E arrisco-me a concluir
que as raízes da Teologia da Imanência de Deus de Karl Rahner, podem ser
identificadas no pedido daquela voz misteriosa saindo dos arcanos da noite
silenciosa, pedindo a Cadmon: “Canta-me a canção do começo das coisas.” Mas,
não é aqui nem o momente nem a ocasião para aprofundar essa reflexão.
A posição dos astros foi assumindo
importância crescente na medida em que as civilizações foram-se desenvolvendo e
tornando mais organizadas. Serviam de orientação para as carvanas de camelos
que transportavam as mercadorias por centenas e milhares de quilômetros de
rotas comerciais entre a Ásia Central, o Oriente Médio e Próximo e por todo o
norte da África. Os Reis Magos que foram adorar o Messias recém-nascido foram
guiados por uma estrela. Da mesma forma, quando os navios perdiam de vista as
referênias da terra firme e das ilhas, os astros indicavam o rumo a seguir.
Se para os pastores e criadores
de animais a noite, iluminada pelos astros e povoada de mistérios, serviu de
inspiração maior, para os agricultores as lides à luz do dia, ofereciam os
motivos predominantes, que definiram as linhas da síntese que resultou na
identidade desses povos. O semear, o brotar, o crescer, o frutificar, o
amadurecer e o colher, atividades reitoras da rotina do agricultor, obedecem a
ciclos e fenômenos naturais. A
translação da terra ao redor do sol, é a responsável pelo eterno e implacável
ir e vir dos anos e, ao mesmo tempo, pela alternância das estações. A rotação
com a duração de 24 horas, tornou-se a referência para delimitar a fração de
tempo, dentro da qual foram sendo organizadas as rotinas da atividade dos
homens. Por isso mesmo, termos como “o quotidiano”, “o diário”, “diuturno”,
expressam muito mais do que uma simples rotina de ocupações, altrernando com
intervalos de repouso. O homem organizou essse espaço de tempo de tal forma que
fosse possível atender a todas as suas necessidades, tanto materiais, quanto
espirituais. Não é de se admdirar, portanto, que o dia, pela sua natureza um
fenômeno que resulta do funcionamento da mecânica que comanda o sistema solar,
tenha contribuido com tamanha carga de simbolismos em todas tradições
culturais. E ao sol como “personagem” central e, por assim dizer, “regente” da
coreografia do quotidiano, cabe o papel de eixo em torno do qual se movimenta
tudo, pois, a energia que brota de suas entranhas, é a fonte da vida. A
combinação das observações astronômicas,
com as estações do ano, com o ciclo de 24 hoas do dia e os 28 dias das fases da
lua, com a localização relativa nas latitudes,
longitudes e altitudes, plaanícies, planaltos, montanhas ou florestas,
compôs o cenário em que o homem construiu e continua construindo a sua história
e sua identidade. Desde tempos imemoriais o homem buscou “nesta sua mãe e
pátria, o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual”, como escreveu
o Pe. B. Rambo na Fisionomia do Rio Grande do Sul. Quanto mais se analisa e se
reflete sobre a extensão e profundidade da relação da identidade étnica e
cultural com o entorno circunstancial, tanto mais flagante se torna o fato de
que, “se a natureza existe e pode continuar existindo sem o homem, o homem não
existe nem subsiste sem a natureza”. E com essa
constatação abrem-se perspectivas sem limites para novas reflexões. O
tempo disponível não o permite.