Reflexões Avulsas - Reflexão sobre Identidade

“Toda a cultura é síntse”,  ensina Alexandro Serrano Caldera. Por analogia, é lícito afirmar que toda “identidade é síntese”, pois, os elementos que compõem a síntese da cultura são os mesmos que  definem o perfil da identidade étnica. Desta forma, cultura e identidade são as duas faces da mesma realidade. A cultura vem a ser o cenário sobre o qual, no qual e a partir do qual, se esboçam os traços que definem as identidades individuais e coletivas. Evidentemente, esta afirmação implica num universo de desdobramentos que assumem características próprias e peculiares em cada caso particular. Uma observação superficial dificilmene perceberá parentescos mais significaivos entre a cultura dos patagônios da Argentina e os tiroleses da Áustria; entre os esquimós do Alaska ou da Groenlândia e os pigmeus de Angola; entre os escoceses e os nativos da Austrália. Há, porém, evidências inegáveis que apontam para uma unidade da espécie humana. O homem compõe uma espécie zoológica com as características comuns de natureza bológica inerentes a esse conceito. Existe como existiu uma única espécie humana como provam, tanto a paleoantropologia, quanto os  criérios usuais de classificação zoológica das raças humanas historicamente conhecidas, quanto o mapeamento do genoma humano, concluído há dez anos. Uma identidade radical a nível taxonômico e a nível biogenético reune, portanto,  todas as raças humanas muma espécie, sendo, portano, interférteis e interfecundos, isto é, passíveis de  miscigenação natural,  gerando uma descendênia híbrida fecunda.

A constatação que se acaba de fazer leva a uma conclusão importante quando se pretende delimitar a extensão e as fronteiras na formação da identidade étnica e cultural. O homem como espécie biológica insere-se existencialmente no entorno natural, e isto de várias formas. Em primeiro lugar, o corpo humano é constituído pelos mesmos elementos químicos que entram na formação da natureza mineral, orgânica e viva, em todos os seus níveis. Em segundo lugar, os mesmos proccessos e as mesmas leis químico-fisiológicas básicas que mantém em funcionamento qualquer ser vivo, garantem também as funções vitais do organismo humano. Em terceiro lugar, como qualquer ser vivo, o homem vive numa relação existencial  permanente com o meio geográfico que o abriga. O conjunto das atividades fisiológicas necessárias à vida, buscam no ambiente natural a reposição das matérais primas pocessadas pela atividade vital. Da mesma forma a sobrevivência da espécie humana  depende das condições climáticas, das matérais primas e dos recursos naturais que lhe oferecem abrigo e proteção contra as intempéries  e as ameaças oriundas da parte dos inimigos humanos e animais predadores. Essa realidade põe-nos frente ao primeiro dos grandes conjuntos de elementos que determinam a gênese de uma identidade étnico-cultural: o entorno geográfico em que as identidades étnicas se consoslidam. Infelizmente a convicção de que a compreensão da História, sem tomar em consideração o meio gográfico em que ela acontece, priva-a de um dos seus componentes qualitativos, de um significado muito além do que muitos historiadores aceitam ou gostariam de aceitar. Em outras palavras uma história  sem tomar em consideração o chão em que ela foi moldada, termina  numa sequência  de fatos e acontecimentos, interpretados ao sabor de esterótipos metodológicos em moda no momento ou ideologias  politicamente corretas, num determinado momento. Desconhece as  raízes mais profundas, a seiva que vem alimentando sua energia vital desde que o homem se fez homem. Acontece que o homem, como alertam os antigos gregos, existe como os minerais, existe e vegeta como as plantas, existe, vegeta e sente como os animais, mas supera essas esferas pelo fato de ser capaz de raciocinar, de observar, de comparar, de avaliar, de rejeitar, de preferir, de optar por alternativas de solução. Em outras palavras o  homem está sujeito a todos os condicionamentos como os demais seres vivos, supera-os, entretanto, pela inteligência reflexa. Se o animal sabe das coisas, o homem é capaz de saber o porque do seu saber. Esta é a gande diferença. Serviu de ponte permitindo a travessia do Rubicão, que separa a biosfera da noosfera, com diria Teilhard de Chardin, diferencia o lago parado da história do animal, do caudal impetuoso da história do homem.

Desgaçadamente, a sequência de refomas do ensino e, principalmente, do ensino superior, abandonaram o conceito da Faculdlade de Filosofia, Ciências e Letras, à qual, por assim dizer,  cabia o papel de “alma mater” das universidades, isto é, o centro, por excelência da produção do conhecimento. Em volta dela agrupavam-se as escolas e faculdades que cuidavam da formação profissional e o desenvolvimento de tecnologias novas. A Geografia, de área humanística, formando um único departamente com a História, passou a ser tratada como uma área técnica. Até o começo da década de 1960, com a implantação da primeira grande reforma do ensino, formavam-se bacharéis ou licenciados, doutores ou livre-docentes em História e Geografia. O Pe. Schmitz, po ex., orgulha-se de ser portador de um desses diplomas. Com isso para o historiador e o geógrafo começou distanciamento, ao ponto de  se ignorarem mutuamente e julgarem  não existir nada em comum entre eles. O fato é que ambos perderam e continuam perdendo muito da sua consistência e ignoram, como que perdidos nas brumas do tempo, elementos fundamentais para entender a gênese das identidades étnicas. Na síntese em que vai resultar a identidade étnica  concretiza-se basicamente em duas dimensões: a síntese com o meio geográfico e a síntese entre as mais diversas identidades étnicas, quando por uma razão ou outra se encontram e se aculturam mutuamente. Hoje quero deter-me  na primeira, isto é, na dimensão físico-geográfica.


A natureza existe e subsiste sem o homem, mas o homem não existe nem subsiste sem a natureza. O ponto de partida da parceria do homem com seu meio geográfico,  na construção da história,  deu-se, repetindo  de novo Teilhard de Chardin, no momento em que em alguma savana da África, lampejou pela primeira vez,  a centelha da inteligência reflexa no cérebro do primeiro ser humano. Não importam as centenas de milhares, ou até milhões de anos que se passaram desde então; não importa também se foi numa savana da África, numa estepe de Euro-Ásia ou numa floresta tropical; não importa, tão pouco, se aquele primeiro ser humano apresentava uma fisionomia mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. As regras, as leis e as dinâmicas que até hoje regem a construção da identidade étnico-cultural, começaram a tomar forma naquele momento em que o homem, com olhar curioso e atento, embrenhava-se nas florestas, percorria as estepes e savanas, adentrava os desertos, escalava montanhas, percorria planicies e pescava nos rios. Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi aprendendo a identificar e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em alimentos, vestuário, abrigo e proteção. Sem demora as observações  e as reflexões levaram esses seres humanos que, injustamente rotulamos de “primitivos”, a equipar as mãos com artefatos e instrumentos que tornaram o acesso e o manuseio dos alimentos menos trabalhoso, mais rendosa a caça, mais segura a defesa contra os animais ferozes, mais eficiente a proteção contras intempéries.

E assim estavam postas as premissas para começar lentamente, numa dinâmica auto alimentada, num ritmo cada vez mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios e montanhas, entre o homem e as estepes, os desertos, os gelos polares, os trópicos e os climas temperados. Ao mesmo tempo  em que foi aperfeiçoando e diversificando as tecnologias da fabricação das ferramentas para garantir a sua sobrevivência física, cresceu o interesse pela compreensão dos fenômenos, das incógnitas e mistérios com que se deparava no seu cotidiano. O nascer, o viver e morrer dos homens e anmais, os ciclos da natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da lua, o germinar, o crescer, o florescer, o amadurecer dos frutos das plantas, tudo desafiava a curiosidade primigênia. E, na procura de respostas tomou forma todo um corpo de crenças, mitologias, simbologias que terminaram em formar as cosmovisões peculiares a cada situação histórica concreta.

Levado pelo instinto de sobrevivência, o homem foi buscar no seu entorno geográfico os alimentos de que necessitava. E, desde cedo, o próprio ato de alimentar-se, ultrapassou o ato elementar instintivo e compulsório, para revestir-se de procedimentos de natureza cultural, como hábitos, costumes, etiquetas, proibições e tabus. O ato de alimentar-se assumiu, de alguma forma, em todos povos, as características de um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte inegrante das respectivas culturas, ou tratadas como algo sagrado, dotado de poderes mágicos, milagrosos, ou proibidos como maléficos, impuros ou simplesmente nocivos à saúde.

O convívio do homem com a natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como melhor consolidar uma paraceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na moldagem de sua identidade. E, neste esforço, três tipos de desafios estimularam a sua criatividade. Em primeiro lugar, encontrar na natureza os alimentos e abrigos para garantir a sobrevivência física. Em segundo lugar, descobrir e desenvolver tecnologias cada vez mais variadas e eficientes, para facilitar a obtenção dos alimentos, confecção do vestuário, a instalação de abrigos e aperfeiçoar os meios de defesa contra os animais e o próprio homem. Em terceiro lugar, penetrar nos mistérios da natureza, tentar compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo e decifrar os mistérios da própria existência.

Cada uma das tradições culturais identificáveis na história, brotou e desenvolveu-se numa ambiente geográrfico de características próprias. Para a finalidade da análise aqui em questão, merecem destaque aqueles elementos que satisfazem, em primeiro lugar, as necessidades da sobrevivência biológica do homem: a alimentação, o vestuário, a habitação e a defesa. Num segundo momento, vêm as tecnologias que permitiram que tornaram cada vez mais eficiente e racional, o aproveitamento das matérias primas, desde o primitivo e tosco “machado de punho”, passando por milhares de modalidades de ferramentas, instrumentos, artefatos e implementos. Paralelamento evoluiu toda uma linha de tecnologias desenvolvendo euipamentos de caça e pesca e armas de defesa e ataque. O universo da “cultura material”, parte fundamental da identidade étnica, realizou-se neste plano. O fogo ocupou um lugar todo peculiar nessa síntese. Na sua visita ao museu de Chicago o Pe. Balduino Rambo, deixou a seguinte reflexão ao visitar o setor de artefatos pré-históricos.

O homem que como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pela florestas e estepes, de forma alguma era meio ou três quartas partes animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto alltamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos o instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e silex, tudo que hoje se fabrica de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, fritar, refogar, cozinhar e, com isto, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa  que hoje confiamos tranquilamente às cozinheiras e cozinheiros, o homem primitivo teve que tentar, experimentar  e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acendemos o fogo debaixo das panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor, aos nossos carros, às máquinas voadoras, devemo-lo, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda um raio, na eupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo friccionando dois pedaços de madeira ou batende uma fragmento de silex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do macahdo de guerra, da massa, dos punhais e das lanças arremessadas com as mãos. Foi o inventor da arte de costurar, comprovada, pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com o mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nú por aí, como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi o inventor da morada humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos e cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem menos  confortáveis que os nossos arranha-céus ou palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam  a família em volta da chama amiga, como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas, comemos até saciar”.

Continua depois as reflexões diante dos objetos expostos e que testemunham o universo artístico e mágico religioso do homem do paleolítico.

O homem primitivo, portanto, não era apenas um grande inventor – o maior de toda a história humana, como também um autêntico homem, bom no seu ser mais íntimo. Demonstram-no seus mortos, sepultados com todo o cuidado, fazendo-os acompanhar na sepulltura com suas armas prediletas e adornos. Somente desta formma chegaram até nós alguns crâneos e esqueletos. Os restos de uma criança na Riviera francesa sugerem uma imortal canção de amor de mãe. Mais de mil pequenas conchas, todas perfuradas e dispostas em fileiras, cobrem o esqueleto. Pode-se conclluir que algum dia estiveram unidas com um barbante e presas numa roupinha. Aqui uma mãe fez acompanhar o seu tesouro para a sepultura com que de melhor tinha. ( ... ) Onde se manifestam semelhantes sentimentos aí esstá viva a crença numa divindade e numa vida depois da morte. ( ... ) Nossso amigo e antepassado, homem primitivo, foii um poderoso artista, antes de mais nada um acabado pintor em preto e branco.

Mas é a reflexão diante dos objetos expostos, escavados pelo  arqueólogo Leonnard Wooley da universidade da Filadélfia, em 1922 e comentados em seu livro: “Ur e o Dilúvio”, que comprovam uma sociedade de agricultores existencialmente enraizada no seu chão.

Parou-me a respiração quando, subitamente, me deparei no museu de Filadelfia, com os objetos que me eram conhecidos apenas em fotografias. O ricamente ornamentado carro fúnebre da rainha Schubad vem do cemitério real dos velhos Sumérios  - ancestrais dos Assírios e Babilônios, inventores da escrita cuneiforme. No timnão estão os dois jumentos, em volta os três peões encarregados dos animais e seus carrregadores, com lanças de ouro, sacrificados junto com a rainha, seus pentes, agulhas de cabelo, brincos, anéis com pedras preciosas embutidas; todo o seu tesouro de recipientes, saboneteiras, caixinha de pó de arroz feitas de ouro, prata, cobre e pérolas. ( ... ) Outras coisas ainda haviam sido colocadas na sepulltura com a rainha Schubad. Havia em abundância punhais e cálices de ouro, caixinhas de prata, lacres de pedras preciosas e metal. Um desses objetos é a grande lira de ouro de lápis-lásuli na forma humana de animais; um asno tocando harpa, uma orelha deitada para trás e a outra para frente, acompanhado de um urso que dançava ao rítmo da música; uma grande cabeça de boi também de ouro e lápis-lásuli encimava a lira. ( ... ) Outra peça de luxo é um cabrito, ereto atrás de um arbusto, tudo moldado em ouro e prata, Só as grandes flores do arbusto são conchas brilhantes sãode madrepérola.

De um lado completou e ampliou em muito as possibilidades de sobrevivência física do homem, do outro, constituiu-se, pela própria natueza, numa fonte inesgotável de inspiração e de simbolismos. Agora já no plano da “cultura imaterial”, o meio oferece, de acordo com suas peculiaridades, inspirações, referências simbólicas, estímulos à imaginação, fontes de crenças de natureza mágica ou religiosa, inspirações para a prática de rituais, etc., etc. Resumindo. É legítimo afirmar que a identidade étnica resultou originalmente da simbiose, da síntese entre o atendimento às necessidades materiais e espirituais e os recursos materiais e as fontes de estímulos espirituais, presentes no entorno geográfico específico em meio ao qual as identidades étnicas foram consolidadas.

Até o século XIX  adentro as civilizações de alguma importância no cenário mundial, foram civilizações agrárias ou pastoris. Dois paradigmas culturais, portanto, existencialmente enraizados  no entorno geográfico. O meio entrou com os condicionamentos circunstanciais: os recursos e matérias primas indispensáveis para a sobrevivência física e os estímulos para desenvolver a cultura imaterial. Do encontro do homem com o seu chão rsultou, passo por passo, a simbiose entre a paisagem e a alma humana, fazendo com  que nessa relação, durante os milênios, se consolidassem as culturas com as respectivas identidades. O rumo e o ritmo dos incontáveis perfís de culturas, foi traçado pelas peculiaridades climáticas, topogeográficas, fitogeográficas, zoogográficas e edafológicas das diversas regiões. Esses condicionamentos são muito mais decisivos para a compreensão de uma identidade cultural, do que se imagina ou se gostaria de admitir. As diferenças étnico-culturais são flagrantes quando se comparam aquelas que se consolidaram aos longo dos rios, em áreas de florestas, em encostas de montanhas, em altiplanos, em estepes, em savanas, em campos naturais, em desertos ou nas regiões polares.

O convívio imediato, diuturno, íntimo, existencial com a natureza despertou no homem a percepção inequívoca de fazer parte integrante dela. Além de depender dela para a vida e a morte, sua vida desenrolava-se na mesma cadência, nos mesmos ciclos. Em neste conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, alimentando suas crenças, sua religiosidade, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim, sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer, animava-se e personalizava-se de accordo com o significado material, imaterial e relgioso de que vinha revestido. As realidades naturais e os fenômenos que as acompanhavam, assumiam vida e importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam à imaginação. Aconteceu assim uma espelhar-se recíproco entrre o homem e as realidades e fenòmenos naturais. E, em meio a esse processo de interação, de amálgama ou de síntese, as culturas e as identidades étnicas foram desenhando seus perfis e a História defindo o seu rumo.

Durante o Mesolítico, período de transição entre o Paleoítico e o Neolitico, coletores e caçadores deram um passo revolucionário na busca do controle no suprimento de suas necessidades básicas se  sobrevivência. O convívio com os animais, a observação dos seus hábitos, deixaram claro que havia uma grande dferença entre as muitas espécies que conviviam nos mesmos territórios com o homem. Uns agrediam e outros evitavam a presença dos humanos.  Havia-os também que se acostumaram com os acampamentos  de caçadores. E  nesse convívio, de observação em observação, de tentativa em tentativa, algumas espécias úteis, sob diversos aspectos, passaram a fazer parte do quotidiano e da rotina diária. Deve ter sido assim que, o acúmulo de experiências e a soma de resultados, levou à domesticação de espécies fornecedoras de alimentos e abrigos como ovinos, bovinos, caprinos, suinos; espécies auxiliares nas atividades diárias, como o cão de guarda; espécies empregadas no transporte de carga, tração e montaria. Esta transição obviamente não aconteceu de um dia para o outro. Foram necessários séculos e milênios, para que aos caçadores nômades de animais selvagens, sucedessem os pastores e criadores de animais. Essa passagem representou um passo gigantesco em direção à libertação do homem da imposição do meio geográfico e assumir gradativamente o controle sobre os recursos indispensáveis à sobrevivência.

Tanto a domesticação de animais quanto a domesticação de plantas, resultou numa completa revolução na relaçao do homem com o seu ambiente natural. Darci Ribeiro fala em Revolução dos Alimentos. É dificil saber exatamente quais foram as espécies de animais que foram domesticadas por primeiro. As evidências indicam que vestígios de ovelhas, cabras, jumentos, bovinos, além de cães, aparecem como dos mais antigos. Mas não são as espécies domesticadas em si que fizeram a diferença. O importante foi o fato que os pastores foram buscar pastagens naturais onde seus rebanhos pudessem  multiplicar-se e gantir um suprimento abundante de carne, peles, lã, ossos e chifres. Começaram a viver em acampamentos semi-nômades e deslocavam-se por territórios por vezes sem limites definidos. O quotidiano desses pastores consumia-se em função dos rebanhos que, po sua vez, retribuíam com carne, leite, peles, lã, ossos e chifres. Uma cuultura toda ela voltada para o pastoreio humanizou a fisionomia das savanas da África, as estepes semi-áridas na periferia dos desertos do Oriente Médio e Próximo, as estepes da Euro-Ásia. Não há necessidade de insistir que a cultura desses povos nômades ou seminômades assumisse contornos com marcas diferenciais inconfundíveis. Sem falar na cultura material, generalizou-se um pardigma de organização social, com flagrante predominância do patriarcado. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica dos rebanhos, na dinâmica da vida dos acampamentos, e não em último lugar, nos fenômenos naturais sempre presentes. Fatos do quotidiano como nascer, crescer, viver, reproduzir-se e morrer, inspiraram os poetas, cantores e músicos. Os astros tiveram um significado todo especial na vida desses povos. O ir e voltar do sol comandando a dinâmica e a rotina do quotidiano, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram, por assim dizer, o sol e a lua em pesonalidades mitológicas, reverenciadas como entidades sobrenaturais ou verdadeiras divindades. A vida em tendas e acampamentos moveis, as vigílias noturnas junto aos rebanhos, induziram  uma relação toda particular entre os pastores e o firmamento estrelado. Os pastores de ovelhas e cabras passavam noites e mais noites em vigílias solitárias junto aos rebanhos. Dispunham de todo o tempo do mundo para cantar, fazer versos, dar asas à imaginação, refletir, filosofar, e porque não, rezar. E, como fonte de inspiração par tudo isso, contavam em sua volta com a escuridão e o silêncio da noite, quebrado aqui e acolá, pelo balido de uma ovelha, o grito de uma coruja, o uivo de um lobo, o canto de um grilo. E o firmamento misterioso, fonte das fontes de reflexão e inspiração, estendia-se sobre suas cabeças como uma gigantesca tenda. Sobre ela luziam milhões de estrelas, brilhavam planetas, passavam cometas errantes e a lua navegava no alto completando religiosamente seus ciclos de vinte em vinte oito dias. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo nada tinha de estático. Os astros movimentavam-se numa coreografia disciplinada, percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis imutáveis. De tempos em tempos essa dança celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões estranhos iluminavam a noite escura ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, cruzava o firmamento para, em seguida, submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas, a queda de meteoros e meteoritos, devem ter impressionado os pastores em noites de vigíla e mexido com seu imaginário, como se conta de Cadmon, antigo poeta inglês, pastor de ovelhas, que escutou nas entranhas da noite uma voz que lhe pedia: Cadmon, canta-me a canção do começo das coisas!” E observando as galáxias em noites sem nuvens os conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo contornos de figuras humanas e animais familiares como a virgem,  o cão, o capricórnio, a ursa, a balança, os peixes o touro, o leão.  Desta forma o firmamento acima das suas cabeças, povoou-se de criaturas imaginárias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia.

Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia, devem ser procuradas entre os criadores de gado e os pastores de ovelhas e cabras do Neolítico. A relação real ou imaginária que se estabeleceu a partir dai, entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino do homem, não parou de se aprofundar e consolidar. Mesmo hoje quando o progresso cinetífico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade, contando com um número de representantes nada desprezível entre as camadas que se consideram cultas e ilustradas. Se levássemos essas reflexões nesta linha avante, terminaríamos, com certeza, em considerações  filosóficas, como aquelas que levaram Nicolau de Cusa a formular o princípio de que “o todo reflete-se nas partes”, Espinosa a formular sua visão panteista do mundo, Teilhard de Chardin apresentar sua grandiosa unidade universal, Ludwig von Bertalanffy a propor que o universo forma um giganesco sistema, construído sobre inúmeros subsistemas, Balduino Rambo observando os precipícios dos Aparados da Serra, observar que alguém mora naqueles abismos  e alguém vigia naquelas torres de observação. E arrisco-me a concluir que as raízes da Teologia da Imanência de Deus de Karl Rahner, podem ser identificadas no pedido daquela voz misteriosa saindo dos arcanos da noite silenciosa, pedindo a Cadmon: “Canta-me a canção do começo das coisas.” Mas, não é aqui nem o momente nem a ocasião para aprofundar essa reflexão.

A posição dos astros foi assumindo importância crescente na medida em que as civilizações foram-se desenvolvendo e tornando mais organizadas. Serviam de orientação para as carvanas de camelos que transportavam as mercadorias por centenas e milhares de quilômetros de rotas comerciais entre a Ásia Central, o Oriente Médio e Próximo e por todo o norte da África. Os Reis Magos que foram adorar o Messias recém-nascido foram guiados por uma estrela. Da mesma forma, quando os navios perdiam de vista as referênias da terra firme e das ilhas, os astros indicavam o rumo a seguir.

Se para os pastores e criadores de animais a noite, iluminada pelos astros e povoada de mistérios, serviu de inspiração maior, para os agricultores as lides à luz do dia, ofereciam os motivos predominantes, que definiram as linhas da síntese que resultou na identidade desses povos. O semear, o brotar, o crescer, o frutificar, o amadurecer e o colher, atividades reitoras da rotina do agricultor, obedecem a ciclos e fenômenos naturais.  A translação da terra ao redor do sol, é a responsável pelo eterno e implacável ir e vir dos anos e, ao mesmo tempo, pela alternância das estações. A rotação com a duração de 24 horas, tornou-se a referência para delimitar a fração de tempo, dentro da qual foram sendo organizadas as rotinas da atividade dos homens. Por isso mesmo, termos como “o quotidiano”, “o diário”, “diuturno”, expressam muito mais do que uma simples rotina de ocupações, altrernando com intervalos de repouso. O homem organizou essse espaço de tempo de tal forma que fosse possível atender a todas as suas necessidades, tanto materiais, quanto espirituais. Não é de se admdirar, portanto, que o dia, pela sua natureza um fenômeno que resulta do funcionamento da mecânica que comanda o sistema solar, tenha contribuido com tamanha carga de simbolismos em todas tradições culturais. E ao sol como “personagem” central e, por assim dizer, “regente” da coreografia do quotidiano, cabe o papel de eixo em torno do qual se movimenta tudo, pois, a energia que brota de suas entranhas, é a fonte da vida. A combinação das observações  astronômicas, com as estações do ano, com o ciclo de 24 hoas do dia e os 28 dias das fases da lua, com a localização relativa nas latitudes,  longitudes e altitudes, plaanícies, planaltos, montanhas ou florestas, compôs o cenário em que o homem construiu e continua construindo a sua história e sua identidade. Desde tempos imemoriais o homem buscou “nesta sua mãe e pátria, o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual”, como escreveu o Pe. B. Rambo na Fisionomia do Rio Grande do Sul. Quanto mais se analisa e se reflete sobre a extensão e profundidade da relação da identidade étnica e cultural com o entorno circunstancial, tanto mais flagante se torna o fato de que, “se a natureza existe e pode continuar existindo sem o homem, o homem não existe nem subsiste sem a natureza”. E com essa  constatação abrem-se perspectivas sem limites para novas reflexões. O tempo disponível não o permite.


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