Lançamento do livro: “Campos múltiplos”

Numa das máximas que ele chama também de mínimas, Alexandro Serrano Caldera escreveu: Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre ele uma nova realidade” ,  e numa outra passagem chama a atenção: Não nos esqueçamos que o passado já foi futuro e o futuro um dia será passado.

Parece-me que este é um bom ponto de partida para  algumas reflexões que gostaria de fazer junto com os senhores e senhoras nesta ocasião. Os organizadores do livro “Campos Múltiplos”, o fizeram para homenagear a minha  contribuição recordando fragmentos do caminho percorrido pelos nossos antepassados especialmente no Sul do Brasil, com o objetivo de, a partir do momento presente, valendo-nos das lições do passado, preparar o caminho para o futuro.  Sinto-me  deveras recompensado por este gesto. Fui pego de total surpresa quando, naquele sábado chuvoso de 25 de outubro próximo passado, os integrantes da excursão anual do Instituto Histórico de São Leopoldo, reunidos para o almoço na “Casa da Ovelha”, nos “Caminhos da Casa de Pedra, em Bento Gonçalves,  anunciaram a homenagem pela boca do vice-presidente do Instituto Marcos Witt., do prof. Antônio Sidekum e da profa. Isabel Arendt.  A surpresa do momento deixou-me,  sem ação e, por isso, a fala da ocasião expressou apenas o que o turbilhão de sentimentos do momento me sugeriu. Passado pouco mais de um mês houve tempo suficiente para decantar as impressões e partir para algumas reflexões mais tranqüilas e mais bem pensadas.

“Recordar é um pouco percorrer velhos caminhos”. A tarefa do historiador e dos seus parceiros mais próximos, do filósofo, do antropólogo e do geógrafo,  consiste exatamente em percorrer  velhos caminhos. As pegadas deixadas pelas gerações do passado nas trilhas da história que construíram e viveram, falam da alternância das luzes e trevas que as iluminaram ou obscureceram, falam das utopias que mantiveram acesas as  esperanças, falam do choque da dura realidade com os  sonhos não realizados  e as expectativas frustradas. E no confronto constante entre o sonho e a realidade, os nossos maiores deixaram para a geração atual uma jornada percorrida e as lições de como vencer, apesar de tudo, e ao mesmo tempo como lançar a ponte entre o passado e o futuro.

Compete a  nós historiadores, antropólogos, filósofos,  e geógrafos, num esforço interdisciplinar solidário a oito mãos, zelar para que a trajetória percorrida  não se apague com o andar dos anos e da sucessão das gerações. Três realidades inerentes à própria condição humana marcam o compasso e determinam a extensão e a profundidade do embate:  o sonho, a  realidade e a utopia  A utopia e seu irmão gêmeo o sonho fazem parte da História. São a fonte que alimenta o que há de mais humano na história: a busca da realização plena, do aperfeiçoamento, da perfeição, manifestação suprema da capacidade do homem de refletir sobre si mesmo e sobre o  sentido da sua existência.

Se observarmos com atenção as motivações que no fundo e em última análise,  movimentam as engrenagens da História, deparamo-nos sempre com o binômio Utopia-Sonho pois, na origem de toda e qualquer realidade há sempre um sonho e na luta de qualquer natureza há sempre uma utopia. Em outras palavras: A realidade é  a realização de um sonho e a luta a busca da concretização de uma utopia que pela própria natureza é irrealizável porque, como diz a própria palavra, “u topos” é o lugar que não existe e, contudo, é de uma força de atração tão avassaladora que, desde os tempos primigênios, imemoriais não dá tréguas ao homem na busca da perfeição. A utopia assemelha-se por assim dizer ao horizonte que se afasta na medida em que o viajante, o peregrino, o forasteiro,  procura aproximar-se dele, uma realidade pela sua natureza inatingível.

Fazer história nestes parâmetros e filosofar nestes horizontes permite que se forme uma compreensão antropológica cujo perfil começou a moldar-se no momento em que, em algum ponto da terra, a primeira criatura dotada de inteligência reflexa, movida por utopias e sonhos,  numa parceria simbiótica com o entorno geográfico, deu partida à fantástica jornada do homem através dos séculos e  milênios. Na parceria  do homem com meio geográfico aconteceu, acontece e acontecerá no futuro a realização dos sonhos e a perseguição das utopias. Neste processo o homem é o autor e o ator em meio aos  cenários naturais mais diversos, valendo-se  de formas alternativas de vivências, que nada mais são do que as culturas diferentes, em busca da sua realização existencial.

Acontece que o filósofo, o historiador, o antropólogo, o geógrafo e todos os representantes dos ramos do saber que de alguma forma lidam com a realidade humana, enfrentam, na visão do mundo pós-moderno,  uma série de dificuldades que exigem deles um esforço monumental. A realidade do mundo pós-moderno consiste na dissociação, na dispersão, na fragmentação, na desconstrução dos paradigmas,  na negação de princípios e valores sociais, morais e religiosos permanentes. Perderam-se as referências seguras, as balizas que orientam a vida individual e coletiva. Não é nenhuma surpresa que, em respirando essa atmosfera e debatendo-se nas contradições que a caracterizam, ao escrever história, cabe ao historiador a missão ousada de chamar a atenção de como a jornada da humanidade através dos tempos, está pontilhada por desvios,  aberrações e por uma sucessão de períodos de tranqüilidade e turbulências, por anos dourados e décadas de  chumbo. Mas no fundo encontra-se sempre o mesmo personagem, o mesmo autor, o mesmo ator, o mesmo espectador, o homem à procura da realização, em busca da perfeição. E a História não passa de uma sucessão de tentativas, de ensaios e erros, em busca desse objetivo. Sendo assim entender o passado histórico ou, voltando à nossa metáfora, o conhecimento da jornada do homem através dos tempos, assume um sentido todo especial. Em primeiro lugar nos leva a aprender  dos antepassados de como lidar com as vicissitudes da vida, aperfeiçoando as soluções e não  repetindo os mesmos erros. Em segundo lugar ensina-nos como municiar a atual geração com subsídios e, desta maneira, prepará-la para construir  o futuro em que os nossos herdeiros irão viver.

Com isso voltamos ao ponto do qual partimos: Escrever História é percorrer velhos caminhos, imaginar o ocorrido e sobre ele construir a nossa realidade que, por sua vez,  servirá de subsídio para a projeção do futuro. E volto a insistir que essa empreitada envolve um esforço interdisciplinar sério, honesto e desinteressado. Cabe ao filósofo identificar, analisar e interpretar os paradigmas, a visão do mundo, a concepção do homem e da sua razão de ser; cabe ao antropólogo interpretar a obra do homem nas suas ambições, limitações e grandezas; cabe ao geógrafo fornecer os dados necessários para entender os milhares de perfis de culturas e civilizações que se sucederam e alternaram durante  História nos contextos ambientais mais desencontrados; cabe, enfim, ao historiador a tarefa de, considerando o pano de fundo oferecido pelo filósofo, a realidade humana pintada pelo antropólogo e a paisagem natural desenhada pelo geógrafo,  ordenar e escrever a história tanto na sua dimensão sincrônica quanto diacrônica.

Como se pode concluir a  missão das ciências que lidam diretamente com o homem, não é fácil porque  não poucas vezes é considerada dispensável, inútil, incômoda e perda de tempo pois o que vale é o aqui e agora, o passado nada tem  oferecer, o futuro é uma ilusão ao ponto de se anunciar o fim da história. Mas, de outra parte, faz com que as tendências mais profundas do homem clamem pela reversão do quadro de fragmentação, dissocição, desconstrução  de paradigmas e abolição referências;  e clamem pela volta de uma síntese, de um ponto de convergência que  reintegre o ser humano, o homem a mulher, o sujeito histórico,  na sua realidade e o reconcilie com sua história.

Concluindo quero repetir os meus agradecimentos mais calorosos ao Antônio, à Imgart, à Isabel, organizadores da Festschrift, ao Marcos Witt e ao dr. Eggers por ter acolhido  o Lançamento oficial do livro no Museu Histórico de São Leopoldo, ao Erni Mugge pelo esmero na confecção gráfica da publicação, aos colegas de academia que contribuíram com as matérias que compõem o livro; Luiz Osvaldo Leite, Antônio Sidekum, Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, Beatriz Vasconcelos Franzen, Martin N. Dreher, René Gertz, Marcos Witt, Rosane Neumann, Paulo Afonso Zarth, Lúcio Kreutz, Isabel Cristina Arendt, Gisela Lermen, Erneldo Schallenberger,  Regina Weber, Roswithia Weber, Imgart Grützmann, Giovani Meinhardt e Raul Fornet Betancourt. Sou grato também aos  ex-bolsistas, alunos e orientandos que confiaram na minha participação na sua formação e, muitos deles, hoje empenhados em continuar a batalha pela valorização da história, nas suas mais diversas ramificações. Não posso deixar de citar a presença solidária da Inez pelo apoio irrestrito que vem de mais de trinta e seis anos de convivência e compromisso mútuo e da Ingrid, do Victor  e do Ernani que não faltaram com a sua presença  mais importante do que talvez imaginem.


Quero que estejam certos de que esta demonstração me dá a certeza de que tenho bons motivos para continuar em pé e seguir sonhando com a concretização da síntese que reconstrua a unidade despedaçada e que reúna novamente  os fragmentos dispersos da existência. E se não é possível alcançar o horizonte longínquo dessa utopia, ao menos é possível caminhar em sua direção construindo a história em busca do horizonte comum no qual se encontrem, na reflexão de Alexandro Caldera,  a experiência e a esperança, a ideologia e a utopia, o passado e o futuro. Construir pontes e apontar caminhos que tornem possível uma passagem tranqüila de um para o outro, esta é a tarefa que cabe à geração do momento.

This entry was posted on segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.