Identidades em debate: teuto-argentino – teuto-brasileiro – teuto-chileno

No decorrer do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX, foram implantados projetos de colonização alemã no Brasil, Argentina e Chile. Mostravam semelhanças muito acentuadas nos três países, tanto nos objetivos, quanto no modelo da estrutura agrária, na organização das comunidades rurais. Merece destaque neste processo, a ocupação de grandes regiões por um povoamento maciço de etnia alemã. Os imigrantes e seus descendentes das primeiras gerações permaneceram fiéis à língua e à tradição dos antepassados. Na condição, porém, de cidadãos dos respectivos países, foram sendo assimilados lentamente pela sociedade maior que compunha a nação argentina, brasileira e chilena. A partir dessa realidade, originou-se, a partir da década de 1930, uma discussão em todos os níveis, tendo como ponto central a pergunta: O que somos depois de duas, três, quatro ou mais gerações, qual a nossa identidade, ainda somos alemães, e em que sentido, até que ponto já somos chilenos, argentinos ou brasileiros ? Ou, quem sabe, não somos mais o que fomos e ainda não somos o deveremos ser no contexto dos nossos países ? Em outras palavras, o que entende o imigrante alemão no Chile quando se autodomina de teuto-chileno, o cidadão de origem alemã n a Argentina quando se assume como teuto-argentino ou o cidadão brasileiro descendente de alemães, como teuto-brasileiro ? A questão central que se coloca é esta: Como se deu o itinerário da inserção desses imigrantes alemães no corpo das nacionalidades que os receberam e qual a auto-avaliação feita por eles mesmos, como sujeitos dessa história? Como eles próprios se auto-identificavam e ainda se auto-identificam, na passagem da identidade alemã de origem em busca de uma identidade argentina, brasileira ou chilena ? Essa temática polarizou em meados da década de 1930, uma grande discussão em nível de jornais, revistas, conferências,  congressos, simpósios, etc. A questão pode ser resumida na pergunta: Após gerações, vivendo como cidadãos argentinos, brasileiros ou chilenos, o que, ao final das contas, o que está acontecendo com a nossa identidade alemã? O persiste ainda de nós do que fomos, o que somos neste momento e o que serão os nossos filhos, netos e bisnetos ?


Na Sombra do Carvalho


O Pe. Balduino Rambo definiu numa só frase a relação existencial do homem com o chão em que vive: “O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria”. Sem tomar em consideração as circunstâncias físicas e geográficas, é impossível entender as histórias dos povos e a gênese das suas identidades étnicas. Na reflexão a que damos o título “Na sombra do Carvalho”, tentamos mostrar como essa afirmação encontra a sua confirmação na tradição cultural vivida pelos imigrantes alemães e seus descendentes do no sul do Brasil. Desde a remota pré-História os povos germânicos dos quais descendem os “alemães” vindos para o Brasil, viveram e consolidaram suas tradições em meio as florestas que cobriam a Europa central e do norte. E pela sua imponência, seus troncos milenares, suas raízes sólidas encravadas no chão, tornou-se o símbolo da história e da solidez do caráter étnico dos povos daquelas paragens, tão admirados por Tácito. Na sombra de carvalhos celebravam-se armistícios, decidiam-se guerras, celebravam-se as efemérides importantes das comunidades germânicas. A derrubada do carvalho sagrado por São Bonifácio convenceu os germanos de que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que Thor, e em massa, converteram-se ao cristianismo.
Valendo-nos da metáfora da “Sombra do Carvalho” estendendo-se, primeiro sobre vastas regiões da Europa, acompanhamos seu avanço sobre países em outros continentes, também sobre o Brasil, a partir do sul. Onde quer que a “sombra do Carvalho” se faz pressente, estão presentes também as características do “rebento do carvalho”, transplantado para o Brasil: O amor à natureza e à querência natal – a Heimat; a paixão pela floresta virgem como cenário de múltiplos simbolismos; a família como núcleo da comunidade e esta como base da sociedade mais ampla; o papel da mulher na sociedade germânica; a lealdade aos chefes; o fascínio pelas personalidades fortes; a retidão de caráter; a religiosidade.


A matéria foi publicada como capítulo do livro comemorativo dos 180 anos da Imigração Alemã: “Às Sombras do Carvalho”, organizado pelo prof. Antônio Sidekum. Editora Nova Harmonia, São Leopoldo, 2004.


A dinâmica da expansão colonial


Depois de vencidas as dificuldades iniciais, os imigrantes alemães e seus descendentes, que se instalaram a partir de 1824 na Real Feitoria do Linho Cânhamo em São Leopoldo, não demoraram em fundar e organizar comunidades em áreas próximas. O processo da expansão colonial começara. Essa dinâmica foi impulsionada por dois fatores poderosos. Em primeiro lugar, pesou a intensificação da vinda de novos imigrantes até 1931, ano em que os incentivos à imigração foram cancelados. O segundo fator, ao que parece o mais decisivo tem a ver com o forte crescimento  vegetativo da população, na região  de imigração alemã a partir de 1845, final da Guerra dos Farrapos. A  imigração foi retomada com todo o entusiasmo e a primeira geração nascida no Brasil, completara a idade de buscar seu lote de terra. Ora, é por todos conhecido que as famílias eram numerosas e a mortalidade infantil  relativamente baixa para a época. Ao mesmo tempo, os lotes coloniais com suas pequenas dimensões, não permitia mais do que uma ou duas divisões. Dados daquela época mostram que na média cada 1000 famílias geravam, anualmente, em torno de 300 excedentes, candidatos natos a novos lotes de terra. Como o crescimento populacional acontece em ritmo geométrico, fica fácil imaginar a movimentação no seio das colônias alemãs., constantemente às voltas com o superpovoamento.

A saga dessa expansão pode ser dividida nas seguintes etapas: Entre 1824 e 1850 consolidou-se a colonização no vale do rio dos Sinos e parcialmente no Caí, formando as assim chamadas “colônias velhas”; entre 1850 e 1880 aconteceu o restante da ocupação do Caí e os vales do Taquari, Pardo e Jacuí, a região das “colônias médias”; de 1890 a 1940 correspondeu à colonização da Serra, Missões e Alto Uruguai ou as “colônias novas”; de 1920 a 1960 deu-se a colonização do centro e oeste de Santa Catarina; de 1950-1970 o oeste do Paraná é colonizado; a partir de 1970 os descendentes dos imigrantes alemães vem participando da fundação de núcleos coloniais nos dois Mato Grosso, Rondônia, Acre e em áreas de outros estados do norte, nordeste e centro-oeste.



Modelos de Colonização

A história da colonização,  dos estados do sul do Brasil a partir de 1824, por imigrantes europeus: alemães, italianos, poloneses e outros, oferece ao pesquisador uma série de facetas interessantes que merecem ser analisadas. Há toda uma questão relativa ao próprio potencial geográfico das regiões a eles destinadas, às questões relativas à ocupação, a posse e legitimação das terras, à identidade e idoneidade  dos colonizadores, etc. Além destes e outros há um ângulo nesta história que normalmente não merece muito destaque, mas é possível identificar na linhas e nas entrelinhas da documentação relativa à colonização. Refiro-me à colonização como instrumento de política étnica, cultural e religiosa.
Partindo desse viés é possível distinguir em princípio três modelos de colonização. Coincidem, em linhas gerais com os objetivos dos diversos agentes colonizadores presentes nas frentes pioneiras: o poder público imperial ou republicano federal, provincial, estatal e municipal; as colonizações patrocinadas por organizações associativas; as colonizações tocadas pela iniciativa privada: empresas ou pessoas físicas. No primeiro centenário da imigração alemã constam 17 colonizações promovidas pelo governo imperial, 5 pelo governo provincial, 7 pelo governo federal,  16 pelo governo estadual, 3 por governos municipais, 27 por empresas, 186 por pessoas físicas e 2 por associações de agricultores. Cada qual perseguia objetivos e prioridades próprias.

Contribuição dos Imigrantes Alemães no Brasil

Percorrendo as áreas em que predominou e ainda predomina a presença alemã e sua descendência, constata-se que elas ostentam peculiaridades não encontráveis nas demais regiões do Brasil. Destacam-se no Rio Grande do Sul as bacias fluviais do rio dos Sinos, Caí, Taquari, Pardo, Jacuí, a zona das Missões e Alto Uruguai, além do leste e centro-oeste de Santa Catarina e o oeste do Paraná. Transita-se aí por centenas e milhares de núcleos coloniais, vilas e pequenas cidades. Centros urbanos maiores formam as sedes dos municípios. Alguns deles, localizados em pontos estratégicos, evoluíram para polos regionais de importância crescente. A população rural viveu e vive ainda hoje, da agricultura fundamentada na pequena propriedade rural de natureza familiar. Manda a justiça e a história que se incluam nessas características e contribuições, os demais imigrantes do norte da Itália e do centro e do norte da Europa, embora não sejam objeto específico do presente estudo.

Os estabelecimentos rurais identificam-se por um perfil comum. São microempresas de produção agrícola. Historicamente resultaram de uma característica colonização por povoamento. Sob este prisma  e, sob outros, inauguraram no País um modelo de ocupação territorial e uma paradigma inédito de organização social e econômica. Resumindo pode-se dizer que os imigrantes alemães, como também os demais a que nos referimos mais acima, prosperaram a base de novo modelo de colonização, a organização em comunidades solidamente estruturadas em torno de suas igrejas, cemitérios, escolas, casas de comércio, artesanatos, instituições de lazer e promoção da cultura, organizações associativas, tendo como motor, sólidos princípios éticos e religiosos e o trabalho como ferramenta sagrada.

[1] Publicado em “Estudos Leopoldenses”. Vol. 29, Nº 132, Abril/Maio, 1993, p. 47-79

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A presença alemã na América Latina nos Séculos XIX e XX

A imigração alemã para a América Latina propriamente dita tem o seu início depois da independência dos países do continente. Os governos da repúblicas recém-emancipadas do Chile e Argentina e do Império do Brasil tiveram uma preocupação comum. Nos três países havia extensas territórios praticamente despovoados, dotados de solos, relevo e clima propícios para implantar projetos de colonização, e assim, atender às demandas de abastecimento interno com gêneros alimentícios e demandas diversas de matéria prima. As áreas costumavam localizar-se onde sua ocupação e incorporação definitiva no todo nacional implicava na própria segurança das fronteiras. Os traçados nos mapas dos processes históricos de ocupação ou de tratados bi- ou multilaterais, em muitos casos, não passavam de uma ficção, enquanto os espaços imediatamente contíguos não fossem garantidos por meio de um povoamento sistemático, permanente e estável. Situações deste gênero encontravam-se no centro e sul do Chile, ao praticamente toda a fronteira oeste e norte da Argentina e do sul,  sudoeste e oeste do Brasil. Os imigrantes fixaram-se nesses territórios, de acordo com o modelo de colonização por povoamento, isto é, formando comunidades de pequenos proprietários, dedicados à agricultura familiar de subsistência, num primeiro momento e, num segundo abastecer o mercado  com alimentos e algumas matérias primas. Este modelo de povoamento representou um contraponto aos grandes latifúndios de monocultura, principalmente no Brasil e Argentina. Do substrato assim posto, originou-se uma economia de subsistência e de abastecimento dos mercados urbanos, a formação de comunidades solidamente organizadas e de uma classe média rural preenchendo o vácuo social e político existente entre a aristocracia dos grandes proprietários e a massa de peões, diaristas, trabalhadores sazonais, meeiros e escravos. O objeto deste estudo são as colonizações alemãs no sul do Chile, no norte da Argentina e no sul do Brasil.

Artigo publicado na revista “Estudos Ibero-Americanos” , PUCRGS, v. XXIX, n. 1. P. 107-135, junho de 2003