Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e Ciências Econômicas
Em fins de setembro reuni meus poucos pertences e fui morar na ala residencial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na avenida D. João Becker, em frente à estação rodoviária. Nos prédios destruídos por um incêndio em 1981, na quadra hoje ocupada pela prefeitura estava sendo instalado o complexo da História Natural e Geologia com os respetivos laboratórios, salas de aula, museu, marcenaria, oficina de equipamentos de vidro utilizados nos laboratórios e no andar térreo de um dos prédios a administração das faculdades já em funcionamento. Nos prédios ainda existentes no outro lado da rua Bento Gonçalves, além da ala residencial já mencionada, funcionavam os cursos de Letras, Pedagogia, Ciências Sociais além da Faculdade de Ciências Econômicas. Nesses espaços localizava-se a Biblioteca Central, o auditório, o barzinho e dois belos jardins internos à disposição dos alunos e professores. Em resumo aquilo que evoluiria 6 anos mais tarde para a Universidade do Vale do Rio dos Sinos entrava na fase da consolidação dos fundamentos, tanto no que dizia respeito ao aspeto físico das instalações, quanto da consolidação dos cursos já em funcionamento e dos novos a serem criados. Nessas circunstâncias exigia-se o possível e o impossível do grupo de jesuítas encarregados de pôr em pé e sobre fundamentos sólidos a tão sonhada futura universidade. Por um bom tempo foi preciso adiar pretensões de pesquisa e aperfeiçoamento acadêmico, arregaçar as mangas e fazer o papel de “pau para toda obra”, de “carregador de piano”, sacrificar todos os momentos disponíveis, inclusive sábados e domingos e não poucas vezes noites inteiras ou parte delas, para que a obra crescesse sólida e harmoniosa.
Para começo de conversa, assumi as aulas de Antropologia no Curso de Ciências Sociais ministradas até fins de agosto pelo Pe. I. Schmitz. Em termos docentes coube-me levar o semestre até o fim daquele ano. E nisso resumiu-se, por assim dizer, tarefa acadêmica formal. Confiei as aulas de geologia, mineralogia e petrografia que vinha ministrando desde 1959 no Curso de História Natural, a professores leigos. Continuei evidentemente a cumprir as 12 horas da universidade federal em Porto Alegre onde assumi interinamente a cátedra durante a licença de afastamento do titular, o Pe. I. Schmitz. A fim de não embaralhar as múltiplas providências a serem tomadas para consolidar as bases da universidade em gestação, tento organizá-las de acordo com sua natureza.
A organização do espaço físico.
Convém lembrar que aqueles magníficos prédios que ocupavam as duas quadras separadas pela rua Bento Gonçalves, projetados pelo arquiteto João Grünewald, o “Mestre João”, serviram, de 1913 a 1956 como seminário menor na quadra onde hoje se localiza a prefeitura e seminário maior nos prédios ainda hoje existentes. Os dois níveis de seminário, um de nível médio e outro superior funcionavam como internatos e moradia dos professores, todos jesuítas, assim como os irmãos leigos e um número variável de rapazes vindos da colônia para serviços complementares na limpeza, cozinha, horta, jardins, marcenaria, etc. Todos esses espaços tiveram que ser adaptados às demandas das faculdades com exigências específicas. Na ala residencial dos professores pouca coisa foi preciso remodelar. O mesmo valia para a cozinha, a adega, a dispensa, a marcenaria, o salão de atos, a biblioteca, o museu, os jardins e outros mais. Os demais espaços exigiram por vezes adaptações mais ou menos radicais. Em não poucos casos era preciso remover paredes e divisórias para dar lugar a sempre mais salas de aula na medida em que o número de alunos aumentava com a multiplicação de cursos novos. A necessidade por espaços para acomodar as diretorias, as chefias de departamento, as secretarias, os laboratórios de pesquisa, gabinetes para os professores, exigiam espaços adequados. Os trabalhos que exigiam mão de obra especializada, evidentemente, obrigavam apelar ao recurso a profissionais na área.
Acontece que naquele remoto ano de 1963 as jovens Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e, de modo especial, das Ciências Econômicas passavam por um momento crucial quanto à sua sustentabilidade. Chegou ao ponto de os superiores da ordem em Roma proibirem a abertura de novos cursos e o superior provincial ordenar o fechamento da Faculdade de Ciências Econômicas, isso entre 1961 e 1962. Com esse cenário nada animador meu colega Alcides Giehl coordenador das Ciências Econômicas, o Pe. Marcus Bach diretor da mesma e alguns professores leigos, resolvemos encarar a situação. Lembro-me que o Alcides e eu derrubamos uma parede de “estuque” durante uma noite de sábado para instalar uma sala de aula para a segunda-feira seguinte. Numa outra ocasião de sábado para domingo passamos a noite encerando o chão carcomido pelos cupins da antiga capela dos seminaristas, para receber os alunos das Ciências Econômicas na semana seguinte. Uma parte do sótão dividido em celas para servir de dormitório para os seminaristas foi transformado num recinto para abrigar um “laboratório de línguas”, ideia inovadora de última geração trazido pelo Pe. Evaldo Heckler que voltara com o mestrado concluído na universidade de Georgtwon nos Estados Unidos.
O impasse financeiro da Faculdade de Ciências Econômicas foi superado recorrendo a uma empréstimo, principalmente entre os colonos de Bom Princípio, São Wendelino, Harmonia e Tupandi. Os doadores receberam como garantia recibos com a especificação dos juros a que tinham direito por ocasião da devolução da quantia emprestada. Até minha mãe contribuiu com uma boa soma guardada de quando vendeu a propriedade que lhe coubera na partilha por ocasião do falecimento do pai. Quem se encarregou de percorrer numa combi de terceira mão as localidades acima mencionadas, foi o irmão Agostinho Kohler. Ele conhecia a grande maioria dos moradores mais antigos pois, trabalhara nas paróquias de Bom Princípio e Tupandi, na época em que elas se encontravam sob a responsabilidade de padres jesuítas. O gargalo financeiro, também afetou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ao ponto de os professores leigos ficarem por vários meses sem salário. Algo incrível aconteceu então, hoje certamente impensável. Apenas um único docente ameaçou abandonar o posto. Todos os demais continuaram dando normalmente suas aulas, esperando que a situação se equacionasse. Os empréstimos captados junto aos colonos, o crescente número de alunos e, principalmente, a compreensão e comprometimento solidários dos professores, fez com que em fins de 1962 a crise estivesse superada. O salário dos professores foi posto em dia e os empréstimos devolvidos com os juros combinados e as faculdades, tanto de Filosofia, Ciências e Letras como a de Ciências Econômicas, entraram num ritmo de crescimento numérico de alunos realmente animador. Nesse meio tempo a qualidade de conhecimentos e a sólida formação profissional garantida pelo corpo docente escolhido a dedo pelo Diretor, Pe. Marcus Bach e o coordenador Pe. Alcides Giehl, fez com que empresas até de São Paulo disputassem os jovens economistas recém formados. A mesma dinâmica, isto é, um corpo docente altamente qualificado resultando numa formação de elevado nível, fez com que os cursos da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras atraíssem candidatos procedentes de outros estados e até do centro do País. Esses fenômeno contou com um fator que não pode ser esquecido. No começo da década de 1960 o Rio Grande do Sul contava com 3 universidades: a Federal do Rio Grande do Sul, a Federal de Santa Maria e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. As demais instituições de ensino superior do Estado encontravam-se em fase de projeto, no máximo em começos de implantação. A mesma situação valia para Santa Catarina e Paraná. Essa realidade canalizou inúmeros candidatos à formação superior procedentes de fora do Vale do Rio Dos Sinos e Porto Alegre. São Leopoldo evoluiu para uma autêntica cidade universitária com a movimentação da Rua Grande (Independência), nos bares e restaurantes, onde se reuniam rapazes e moças das procedências mais diversas do Rio Grande do Sul e de fora dele. Na época era comum ouvir a observação que em São Leopoldo todos os alojamentos, até os sótãos das casas abrigavam estudantes vindos de fora.
Superada a crise financeira e retirada pelos superiores maiores da Ordem a proibição de abertura de novos cursos, tanto a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, quanto a de Ciências Econômicas, entraram num ritmo acelerado de crescimento e ampliação. Não só foram implantados novos cursos como também tomadas iniciativas importantes de extensão.
Cursos de Matemática, física e História.
No ano de 1963 o embrião da Universidade do Vale do Rio dos Sinos entrou numa fase robusta de consolidação da sua base acadêmica. Além de se envolver em iniciativas tópicas em favor da comunidade do município de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Estância Velha, Dois Irmãos e outros mais do Vale do Sinos, projetos de maior abrangência e significado para o desenvolvimento para a região tiveram a origem nas duas faculdades então em funcionamento. A faculdade de Filosofia, Ciências e Letras contava naquela data com os Cursos de Filosofia, Letras Clássicas, Pedagogia, Ciências Sociais e História Natural. Em 1963 o Conselho Técnico Administrativo da Faculdade decidiu implantar os cursos de física, matemática e História. A história detalhada da implantação dos novos cursos pode ser encontrada no livro comemorativo dos 40 anos da Unisinos: “Um Sonho e uma Realidade – Unisinos – 1953-1969” (Edit. Unisinos, 2009). Como já lembrei mais acima o meu envolvimento com a formatação, ampliação e consolidação dos fundamentos da universidade começou desde seus primeiros começos em 1954. Nos primeiros 10 anos o foco principal do meu interesse foram as Ciências Naturais, com a instalação do primeiro laboratório coordenado pelo Pe. Hauser, ainda num quarto nos prédios do Colégio Cristo Rei. Mais tarde, em 1957 já cursando História Natural na UFRGS, dei a minha colaboração na implantação desse curso nos antigos prédios no centro de São Leopoldo. Minha atividade como docente começou em 1959, ministrando a disciplina de Geologia para os três alunos da primeira turma: Rolpf Gehlen, Flávio Luchese e Glésia Marques. Nos dois anos seguintes coube-me ministrar, além da Geologia, as disciplina de Mineralogia e Petrografia, além de participar do aperfeiçoamento da estrutura administrativa e acadêmica do curso, da elaboração do Regimento e da seleção de professores leigos. O fato de, a partir de março de 1960, estar comprometido com minha licenciatura em teologia e docência de Antropologia na UFRGS, entreguei os compromissos docentes de Mineralogia, Petrografia e Geologia a professores leigos escolhidos entre meus mestres da universidade federal: Ely Denhardt, Eugênio Gruhman, Paulo Lacerda e outros mais. Na época eu era jesuíta e estávamos ainda no período pré conciliar, a contratação do prof. Denhardt, um luterano e do prof. Gruhmann, um judeu, causou um tal ou qual espanto entre outros jesuítas.
Não cheguei a participar diretamente da criação e consolidação do Curso de Pedagogia além de colaborar no recrutamento de docentes e mais tarde lecionando Antropologia no formato de uma Introdução ao Estudo do Homem. Ao curso que me coube um empenho maior foi o de Ciências Sociais também no que dizia respeito ao recrutamento de docentes e mais tarde ministrando a disciplina de Antropologia Cultural. Em resumo essa foi a realidade acadêmica em que me envolvi até 1963 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da futura Unisinos.
A reviravolta para valer tomou corpo a partir do segundo semestre de 1963. Acima já lembrei que o meu exame “ad gradum”, isto é a conquista da licenciatura em Teologia aconteceu em 20 de setembro daquele ano. Com isso minha formação acadêmica como jesuíta estava concluída. Encontrava-me pois, em condições de dedicar-me em tempo integral à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no projeto da criação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Já que essa última exigia uma dedicação muito intensa, mantive o compromisso de 12 horas na primeira. A primeira providência foi morar na comunidade dos jesuítas na antiga sede da Unisinos no centro de São Leopoldo.
Ainda em agosto de 1963 ocorreu a instalação do curso de História. Na mesma ocasião foi decidido criar o Departamento de História e Ciências Sociais. Como o Pe. I. Schmitz viajaria em princípios de setembro para Kernten na Áustria para concluir a sua formação como jesuíta com um ano de “Terceira Provação”, fui eleito chefe do departamento que acabava de ser criado. Além do departamento coube-me assumir as preleções de antropologia dos dois cursos mais na Pedagogia onde a disciplina também constava no currículo. Como se pode deduzir falta de trabalho não foi problema somado aos compromissos com a universidade federal. Obviamente as primeiras providências focaram a consolidação do Departamento de História e Ciências Sociais numa unidade acadêmica interdisciplinar. A dificuldade de recrutar docentes qualificados e a consequente consolidação do Curso de Ciências Sociais criado em 1958 levou 5 anos. Nesses primeiros anos o curso enfrentou problemas sérios na formação de um corpo docente de bom nível. Começava por aí que não era fácil encontrar titulados nessa área específica. Nenhuma das três universidades em funcionamento no Rio Grande do Sul contava com programas de pós graduação “stricto sensu”. Os professores de sociologia também da URGS e da PUCRS costumavam ser recrutados entre formados em Direito, Economia e outras áreas. O curso de Ciências Sociais da Unisinos contou desde a sua criação com o Pe. Pedro C. Beltrão com doutorado em Sociologia pela universidade de Lovaina com enfoque na Sociologia da Família e Demografia. Além do Pe. Beltrão o prof. da disciplina Doutrinas Econômicas Gabriel Keglevich também era portador do título de doutor, mas em Ciências Econômicas pela universidade de Budapest. Completavam o corpo docente fundador o prof. de matemática Joaquim Blessmann Formado pelo ITA, Antenor Wink Brum estatística, Reinholdo Ullmann geografia humana, Ignácio Schmitz Antropologia, Jesus Hortal sociologia, Marcus Bach deontologia. Os superiores maiores dos jesuítas providenciaram nos anos que se seguiram a formação de um corpo docente com jovens recrutados nas próprias fileiras. Este foi reforçado e principalmente qualificado com o então Pe. Norberto Etges com doutorado em Sociologia pela Universidade de St. Louis, o Pe. Roque Lauschner graduado em Ciências Econômicas pela UFRGS e mais tarde com o doutorado em Sociologia Rural pela Universidade Gregoriana, o Pe. Odelso Schneider com doutorado pelo ILADES no Chile, o Pe. Ivo José Follmann com o doutorado em Sociologia pela Universidade de Lovaina.
Não foi esse o caso do Curso de História. No momento da instalação em agosto de 1963 contava com um corpo docente melhor qualificado. Esse conceito de “melhor qualificado” evidentemente não se aplicaria aos requisitos acadêmicos exigidos para formar o corpo docente de um novo curso de graduação, a ser implantado quase 60 anos depois. Integravam o corpo docente fundador os professores Pedro Ignácio Schmitz, licenciado em História e Geografia e professor de Etnografia e Etnologia na universidade federal, Betariz V. Franzen, licenciada em História e Geografia da UFRGS, o Pe. Milton Valente com doutorado de Estado pela Sorbonne de Paris, o Pe. Oscar J. Nedel com doutorado em Biologia pela universidade de Munique, eu próprio na condição de professor de Antropologia na UFRGS e licenciado em História Natural e Geologia, também pela mesma universidade e licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo. Pode parecer estranho que o corpo docente fosse composto por titulares de áreas aparentemente distantes da história. Acontece que até aquela altura não existiam pós graduações “stricto Sensu” como já lembrado mais acima. Para obter um título de mestre ou PHD só em alguma universidade americana e o doutorado em universidades inglesas, alemãs, francesas, espanholas, italianas ou portuguesas. Essa situação explica que o critério mais comum quando se fundava uma nova faculdade ou um novo curso recorria-se ao “notório saber”,acolhido como válido na esfera da administração da educação no nível estadual e federal. Para exemplificar. Na criação da Faculdade Filosofia Ciências e Letras UFRGS, o corpo docente do curso de história foi recrutado entre formados em direito e áreas afins e outros, mesmo sem grau superior legalmente reconhecido como foi o do Pe. Balduino Rambo. Foram empossados como catedráticos fundadores a título de “notório saber”. Nos anos que se seguiram a maioria dos fundadores do curso de história da Unisinos conquistaram o título de “livre docente” na disciplina sob sua responsabilidade associado ao de “doutor” em Filosofia. Este foi o meu caso e do Pe. Ignácio Schmitz. A profa. Beatriz Franzen obteve seu doutorado pela Universidade de Lisboa. Com o correr dos anos os candidatos a vagas de titulares das disciplinas, tinham que ser obrigatoriamente portadores de título de “doutor” na área de História.
Depois desse inciso volto à instalação formal do Curso de História no segundo semestre de 1963. O candidato nato para o cargo de Chefe do Departamento vinha a ser naturalmente o Pe. Schmitz. Acontece, como acima já lembrei, ele partiria em setembro para a “Terceira Provação” em Kernten na Áustria. Foi por essa razão que fui escolhido pelo colegiado do curso como chefe do novo departamento. Acontece que o curso de Ciências Sociais até então funcionava sem estrutura departamental. O Pe. Nedel diretor da Faculdade que presidia a reunião propôs reunir num só departamento a História e as Ciências Sociais. Aprovada a sugestão saí da reunião como chefe do departamento de História e Ciências Sociais, situação que se prolongou até depois da criação oficial da Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 1969. As Faculdades de São Leopoldo agora formando uma universidade reconhecida pelo Ministério da Educação com o perfil da Reforma Universitária tornada obrigatória a partir de 1968 também para as instituições de ensino superior particulares, motivou o desmembramento em Departamento de História e Departamento de Sociologia. (Ciências Sociais). De então em diante continuei responsável por este último. Já em 1975 foi criado o Departamento de Filosofia e Teologia e, por nomeação do diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Pe. L. Mallmann, assumi esse novo departamento a partir de dezembro daquele ano. Entreguei a chefia do Departamento de Sociologia, para dispor de mais tempo na preparação da tese de Livre Docência associada à do Doutorado em Filosofia, defendida em 1976 na PUCRS.