Da Enxada à Cátedra [ 63 ]

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e Ciências Econômicas

Em fins de setembro reuni meus poucos pertences e fui morar na ala residencial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na avenida D. João Becker, em frente à estação rodoviária. Nos prédios destruídos por um incêndio em 1981, na quadra hoje ocupada pela prefeitura estava sendo instalado o complexo da História Natural e Geologia com os respetivos laboratórios, salas de aula, museu, marcenaria, oficina de equipamentos de vidro utilizados nos laboratórios e no andar térreo de um dos prédios a administração das faculdades já em funcionamento. Nos prédios ainda existentes no outro lado da rua Bento Gonçalves, além da ala residencial já mencionada, funcionavam os cursos de Letras, Pedagogia, Ciências Sociais além da Faculdade de Ciências Econômicas. Nesses espaços localizava-se a Biblioteca Central, o auditório, o barzinho e dois belos jardins internos à disposição dos alunos e professores. Em resumo aquilo que evoluiria 6 anos mais tarde para a Universidade do Vale do Rio dos Sinos entrava na fase da consolidação dos fundamentos, tanto no que dizia respeito ao aspeto físico das instalações, quanto da consolidação dos cursos já em funcionamento e dos novos a serem criados. Nessas circunstâncias exigia-se o possível e o impossível do grupo de jesuítas encarregados de pôr em pé e sobre fundamentos sólidos a tão sonhada futura universidade. Por um bom tempo foi preciso adiar pretensões de pesquisa e aperfeiçoamento acadêmico, arregaçar as mangas e fazer o papel de “pau para toda obra”, de “carregador de piano”, sacrificar todos os momentos disponíveis, inclusive sábados e domingos e não poucas vezes noites inteiras ou parte delas, para que a obra crescesse sólida e harmoniosa.

Para começo de conversa, assumi as aulas de Antropologia no Curso de Ciências Sociais ministradas até fins de agosto pelo Pe. I. Schmitz. Em termos docentes coube-me levar o semestre até o fim daquele ano. E nisso resumiu-se, por assim dizer, tarefa acadêmica formal. Confiei as aulas de geologia, mineralogia e petrografia que vinha ministrando desde 1959 no Curso de História Natural, a professores leigos. Continuei evidentemente a cumprir as 12 horas da universidade federal em Porto Alegre onde assumi interinamente a cátedra durante a licença de afastamento do titular, o Pe. I. Schmitz. A fim de não embaralhar as múltiplas providências a serem tomadas para consolidar as bases da universidade em gestação, tento organizá-las de acordo com sua natureza.

A organização do espaço físico.

Convém lembrar que aqueles magníficos prédios que ocupavam as duas quadras separadas pela rua Bento Gonçalves, projetados pelo arquiteto João Grünewald, o “Mestre João”, serviram, de 1913 a 1956 como seminário menor na quadra onde hoje se localiza a prefeitura e seminário maior nos prédios ainda hoje existentes. Os dois níveis de seminário, um de nível médio e outro superior funcionavam como internatos e moradia dos professores, todos jesuítas, assim como os irmãos leigos e um número variável de rapazes vindos da colônia para serviços complementares na limpeza, cozinha, horta, jardins, marcenaria, etc. Todos esses espaços tiveram que ser adaptados às demandas das faculdades com exigências específicas. Na ala residencial dos professores pouca coisa foi preciso remodelar. O mesmo valia para a cozinha, a adega, a dispensa, a marcenaria, o salão de atos, a biblioteca, o museu, os jardins e outros mais. Os demais espaços exigiram por vezes adaptações mais ou menos radicais. Em não poucos casos era preciso remover paredes e divisórias para dar lugar a sempre mais salas de aula na medida em que o número de alunos aumentava com a multiplicação de cursos novos. A necessidade por espaços para acomodar as diretorias, as chefias de departamento, as secretarias, os laboratórios de pesquisa, gabinetes para os professores, exigiam espaços adequados. Os trabalhos que exigiam mão de obra especializada, evidentemente, obrigavam apelar ao recurso a profissionais na área.

Acontece que naquele remoto ano de 1963 as jovens Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e, de modo especial, das Ciências Econômicas passavam por um momento crucial quanto à sua sustentabilidade. Chegou ao ponto de os superiores da ordem em Roma proibirem a abertura de novos cursos e o superior provincial ordenar o fechamento da Faculdade de Ciências Econômicas, isso entre 1961 e 1962. Com esse cenário nada animador meu colega Alcides Giehl coordenador das Ciências Econômicas, o Pe. Marcus Bach diretor da mesma e alguns professores leigos, resolvemos encarar a situação. Lembro-me que o Alcides e eu derrubamos uma parede de “estuque” durante uma noite de sábado para instalar uma sala de aula para a segunda-feira seguinte. Numa outra ocasião de sábado para domingo passamos a noite encerando o chão carcomido pelos cupins da antiga capela dos seminaristas, para receber os alunos das Ciências Econômicas na semana seguinte. Uma parte do sótão dividido em celas para servir de dormitório para os seminaristas foi transformado num recinto para abrigar um “laboratório de línguas”, ideia inovadora de última geração trazido pelo Pe. Evaldo Heckler que voltara com o mestrado concluído na universidade de Georgtwon nos Estados Unidos.

O impasse financeiro da Faculdade de Ciências Econômicas foi superado recorrendo a uma empréstimo, principalmente entre os colonos de Bom Princípio, São Wendelino, Harmonia e Tupandi. Os doadores receberam como garantia recibos com a especificação dos juros a que tinham direito por ocasião da devolução da quantia emprestada. Até minha mãe contribuiu com uma boa soma guardada de quando vendeu a propriedade que lhe coubera na partilha por ocasião do falecimento do pai. Quem se encarregou de percorrer numa combi de terceira mão as localidades acima mencionadas, foi o irmão Agostinho Kohler. Ele conhecia a grande maioria dos moradores mais antigos pois, trabalhara nas paróquias de Bom Princípio e Tupandi, na época em que elas se encontravam sob a responsabilidade de padres jesuítas. O gargalo financeiro, também afetou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ao ponto de os professores leigos ficarem por vários meses sem salário. Algo incrível aconteceu então, hoje certamente impensável. Apenas um único docente ameaçou abandonar o posto. Todos os demais continuaram dando normalmente suas aulas, esperando que a situação se equacionasse. Os empréstimos captados junto aos colonos, o crescente número de alunos e, principalmente, a compreensão e comprometimento solidários dos professores, fez com que em fins de 1962 a crise estivesse superada. O salário dos professores foi posto em dia e os empréstimos devolvidos com os juros combinados e as faculdades, tanto de Filosofia, Ciências e Letras como a de Ciências Econômicas, entraram num ritmo de crescimento numérico de alunos realmente animador. Nesse meio tempo a qualidade de conhecimentos e a sólida formação profissional garantida pelo corpo docente escolhido a dedo pelo Diretor, Pe. Marcus Bach e o coordenador Pe. Alcides Giehl, fez com que empresas até de São Paulo disputassem os jovens economistas recém formados. A mesma dinâmica, isto é, um corpo docente altamente qualificado resultando numa formação de elevado nível, fez com que os cursos da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras atraíssem candidatos procedentes de outros estados e até do centro do País. Esses fenômeno contou com um fator que não pode ser esquecido. No começo da década de 1960 o Rio Grande do Sul contava com 3 universidades: a Federal do Rio Grande do Sul, a Federal de Santa Maria e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. As demais instituições de ensino superior do Estado encontravam-se em fase de projeto, no máximo em começos de implantação. A mesma situação valia para Santa Catarina e Paraná. Essa realidade canalizou inúmeros candidatos à formação superior procedentes de fora do Vale do Rio Dos Sinos e Porto Alegre. São Leopoldo evoluiu para uma autêntica cidade universitária com a movimentação da Rua Grande (Independência), nos bares e restaurantes, onde se reuniam rapazes e moças das procedências mais diversas do Rio Grande do Sul e de fora dele. Na época era comum ouvir a observação que em São Leopoldo todos os alojamentos, até os sótãos das casas abrigavam estudantes vindos de fora.

Superada a crise financeira e retirada pelos superiores maiores da Ordem a proibição de abertura de novos cursos, tanto a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, quanto a de Ciências Econômicas, entraram num ritmo acelerado de crescimento e ampliação. Não só foram implantados novos cursos como também tomadas iniciativas importantes de extensão.

Cursos de Matemática, física e História.

No ano de 1963 o embrião da Universidade do Vale do Rio dos Sinos entrou numa fase robusta de consolidação da sua base acadêmica. Além de se envolver em iniciativas tópicas em favor da comunidade do município de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Estância Velha, Dois Irmãos e outros mais do Vale do Sinos, projetos de maior abrangência e significado para o desenvolvimento para a região tiveram a origem nas duas faculdades então em funcionamento. A faculdade de Filosofia, Ciências e Letras contava naquela data com os Cursos de Filosofia, Letras Clássicas, Pedagogia, Ciências Sociais e História Natural. Em 1963 o Conselho Técnico Administrativo da Faculdade decidiu implantar os cursos de física, matemática e História. A história detalhada da implantação dos novos cursos pode ser encontrada no livro comemorativo dos 40 anos da Unisinos: “Um Sonho e uma Realidade – Unisinos – 1953-1969” (Edit. Unisinos, 2009). Como já lembrei mais acima o meu envolvimento com a formatação, ampliação e consolidação dos fundamentos da universidade começou desde seus primeiros começos em 1954. Nos primeiros 10 anos o foco principal do meu interesse foram as Ciências Naturais, com a instalação do primeiro laboratório coordenado pelo Pe. Hauser, ainda num quarto nos prédios do Colégio Cristo Rei. Mais tarde, em 1957 já cursando História Natural na UFRGS, dei a minha colaboração na implantação desse curso nos antigos prédios no centro de São Leopoldo. Minha atividade como docente começou em 1959, ministrando a disciplina de Geologia para os três alunos da primeira turma: Rolpf Gehlen, Flávio Luchese e Glésia Marques. Nos dois anos seguintes coube-me ministrar, além da Geologia, as disciplina de Mineralogia e Petrografia, além de participar do aperfeiçoamento da estrutura administrativa e acadêmica do curso, da elaboração do Regimento e da seleção de professores leigos. O fato de, a partir de março de 1960, estar comprometido com minha licenciatura em teologia e docência de Antropologia na UFRGS, entreguei os compromissos docentes de Mineralogia, Petrografia e Geologia a professores leigos escolhidos entre meus mestres da universidade federal: Ely Denhardt, Eugênio Gruhman, Paulo Lacerda e outros mais. Na época eu era jesuíta e estávamos ainda no período pré conciliar, a contratação do prof. Denhardt, um luterano e do prof. Gruhmann, um judeu, causou um tal ou qual espanto entre outros jesuítas.

Não cheguei a participar diretamente da criação e consolidação do Curso de Pedagogia além de colaborar no recrutamento de docentes e mais tarde lecionando Antropologia no formato de uma Introdução ao Estudo do Homem. Ao curso que me coube um empenho maior foi o de Ciências Sociais também no que dizia respeito ao recrutamento de docentes e mais tarde ministrando a disciplina de Antropologia Cultural. Em resumo essa foi a realidade acadêmica em que me envolvi até 1963 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da futura Unisinos.

A reviravolta para valer tomou corpo a partir do segundo semestre de 1963. Acima já lembrei que o meu exame “ad gradum”, isto é a conquista da licenciatura em Teologia aconteceu em 20 de setembro daquele ano. Com isso minha formação acadêmica como jesuíta estava concluída. Encontrava-me pois, em condições de dedicar-me em tempo integral à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no projeto da criação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Já que essa última exigia uma dedicação muito intensa, mantive o compromisso de 12 horas na primeira. A primeira providência foi morar na comunidade dos jesuítas na antiga sede da Unisinos no centro de São Leopoldo.

Ainda em agosto de 1963 ocorreu a instalação do curso de História. Na mesma ocasião foi decidido criar o Departamento de História e Ciências Sociais. Como o Pe. I. Schmitz viajaria em princípios de setembro para Kernten na Áustria para concluir a sua formação como jesuíta com um ano de “Terceira Provação”, fui eleito chefe do departamento que acabava de ser criado. Além do departamento coube-me assumir as preleções de antropologia dos dois cursos mais na Pedagogia onde a disciplina também constava no currículo. Como se pode deduzir falta de trabalho não foi problema somado aos compromissos com a universidade federal. Obviamente as primeiras providências focaram a consolidação do Departamento de História e Ciências Sociais numa unidade acadêmica interdisciplinar. A dificuldade de recrutar docentes qualificados e a consequente consolidação do Curso de Ciências Sociais criado em 1958 levou 5 anos. Nesses primeiros anos o curso enfrentou problemas sérios na formação de um corpo docente de bom nível. Começava por aí que não era fácil encontrar titulados nessa área específica. Nenhuma das três universidades em funcionamento no Rio Grande do Sul contava com programas de pós graduação “stricto sensu”. Os professores de sociologia também da URGS e da PUCRS costumavam ser recrutados entre formados em Direito, Economia e outras áreas. O curso de Ciências Sociais da Unisinos contou desde a sua criação com o Pe. Pedro C. Beltrão com doutorado em Sociologia pela universidade de Lovaina com enfoque na Sociologia da Família e Demografia. Além do Pe. Beltrão o prof. da disciplina Doutrinas Econômicas Gabriel Keglevich também era portador do título de doutor, mas em Ciências Econômicas pela universidade de Budapest. Completavam o corpo docente fundador o prof. de matemática Joaquim Blessmann Formado pelo ITA, Antenor Wink Brum estatística, Reinholdo Ullmann geografia humana, Ignácio Schmitz Antropologia, Jesus Hortal sociologia, Marcus Bach deontologia. Os superiores maiores dos jesuítas providenciaram nos anos que se seguiram a formação de um corpo docente com jovens recrutados nas próprias fileiras. Este foi reforçado e principalmente qualificado com o então Pe. Norberto Etges com doutorado em Sociologia pela Universidade de St. Louis, o Pe. Roque Lauschner graduado em Ciências Econômicas pela UFRGS e mais tarde com o doutorado em Sociologia Rural pela Universidade Gregoriana, o Pe. Odelso Schneider com doutorado pelo ILADES no Chile, o Pe. Ivo José Follmann com o doutorado em Sociologia pela Universidade de Lovaina.

Não foi esse o caso do Curso de História. No momento da instalação em agosto de 1963 contava com um corpo docente melhor qualificado. Esse conceito de melhor qualificado” evidentemente não se aplicaria aos requisitos acadêmicos exigidos para formar o corpo docente de um novo curso de graduação, a ser implantado quase 60 anos depois. Integravam o corpo docente fundador os professores Pedro Ignácio Schmitz, licenciado em História e Geografia e professor de Etnografia e Etnologia na universidade federal, Betariz V. Franzen, licenciada em História e Geografia da UFRGS, o Pe. Milton Valente com doutorado de Estado pela Sorbonne de Paris, o Pe. Oscar J. Nedel com doutorado em Biologia pela universidade de Munique, eu próprio na condição de professor de Antropologia na UFRGS e licenciado em História Natural e Geologia, também pela mesma universidade e licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo. Pode parecer estranho que o corpo docente fosse composto por titulares de áreas aparentemente distantes da história. Acontece que até aquela altura não existiam pós graduações “stricto Sensu” como já lembrado mais acima. Para obter um título de mestre ou PHD só em alguma universidade americana e o doutorado em universidades inglesas, alemãs, francesas, espanholas, italianas ou portuguesas. Essa situação explica que o critério mais comum quando se fundava uma nova faculdade ou um novo curso recorria-se ao “notório saber”,acolhido como válido na esfera da administração da educação no nível estadual e federal. Para exemplificar. Na criação da Faculdade Filosofia Ciências e Letras UFRGS, o corpo docente do curso de história foi recrutado entre formados em direito e áreas afins e outros, mesmo sem grau superior legalmente reconhecido como foi o do Pe. Balduino Rambo. Foram empossados como catedráticos fundadores a título de “notório saber”. Nos anos que se seguiram a maioria dos fundadores do curso de história da Unisinos conquistaram o título de “livre docente” na disciplina sob sua responsabilidade associado ao de “doutor” em Filosofia. Este foi o meu caso e do Pe. Ignácio Schmitz. A profa. Beatriz Franzen obteve seu doutorado pela Universidade de Lisboa. Com o correr dos anos os candidatos a vagas de titulares das disciplinas, tinham que ser obrigatoriamente portadores de título de “doutor” na área de História.

Depois desse inciso volto à instalação formal do Curso de História no segundo semestre de 1963. O candidato nato para o cargo de Chefe do Departamento vinha a ser naturalmente o Pe. Schmitz. Acontece, como acima já lembrei, ele partiria em setembro para a “Terceira Provação” em Kernten na Áustria. Foi por essa razão que fui escolhido pelo colegiado do curso como chefe do novo departamento. Acontece que o curso de Ciências Sociais até então funcionava sem estrutura departamental. O Pe. Nedel diretor da Faculdade que presidia a reunião propôs reunir num só departamento a História e as Ciências Sociais. Aprovada a sugestão saí da reunião como chefe do departamento de História e Ciências Sociais, situação que se prolongou até depois da criação oficial da Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 1969. As Faculdades de São Leopoldo agora formando uma universidade reconhecida pelo Ministério da Educação com o perfil da Reforma Universitária tornada obrigatória a partir de 1968 também para as instituições de ensino superior particulares, motivou o desmembramento em Departamento de História e Departamento de Sociologia. (Ciências Sociais). De então em diante continuei responsável por este último. Já em 1975 foi criado o Departamento de Filosofia e Teologia e, por nomeação do diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Pe. L. Mallmann, assumi esse novo departamento a partir de dezembro daquele ano. Entreguei a chefia do Departamento de Sociologia, para dispor de mais tempo na preparação da tese de Livre Docência associada à do Doutorado em Filosofia, defendida em 1976 na PUCRS.

Da Enxada à Cátedra [ 62 ]

O Ano de 1963

O ano de 1963 fixou-se na minha memória como decisivo, tanto no que se refere à formação acadêmica, quanto no rumo da atividade em duas universidades como docente e pesquisador. A fim de não embaralhar os acontecimentos nessas duas dimensões, falo primeiro da conclusão da formação teológica para depois detalhar o começo do envolvimento para valer na faculdade de Filosofia Ciências e Letras e na Faculdade Ciências Econômicas de São Leopoldo, embriões da futura universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Conclusão da formação teológica.

Mais acima já lembrei que fui aprovado no exame final do terceiro ano com um grau plenamente satisfatório para continuar no quarto e último ano em 1963 no da Teologia Maior. Essa condição habilitava-me prestar o exame o ad gradum”. Em poucas palavras esse exame cobria uma revisão dos três anos de Filosofia e dos quatro anos de Teologia.

O ritual daquele último ano previa a frequência das preleções durante o primeiro semestre. Em meados de maio foi-me entregue uma relação de 100 teses: 50 de filosofia e 50 de teologia de cujos conteúdos deveria dar conta perante a banca que seria constituída para o exame “ad gradum”. Com as 100 teses na mão estava dispensado da assistência às preleções. Aqui cabe um esclarecimento para o fato porque essas teses me foram entregues em meados de maio e não em julho como costumava acontecer. Acontece que o Pe. Ignácio Schmitz fora destinado pelos superiores para fazer a “terceira provação”, o ano de fecho da formação dos jesuítas, em Kerten na Áustria, a partir de setembro daquele ano. Com isso caberia a mim assumir as preleções sobre os tupis-guaranis na universidade federal do Rio Grande do Sul e as de Antropologia na Faculdade Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo.

De posse das 100 teses, o exame do “ad gradum” foi marcado para o dia 20 de setembro. Dispunha, portanto, de pouco mais de 4 meses para dar conta dos conteúdos. Continuei dando regulamente as aulas na universidade em Porto Alegre nas terças à tarde e nas quartas nos dois turnos. Nos demais dias mergulhei o mais fundo possível nos conteúdos relacionados nas teses que seriam objeto dos questionamentos que os examinadores fariam no dia do exame. A fim de evitar ao máximo qualquer perturbação e permitir a necessária concentração não costumava estudar no quarto. Nos dias de chuva recolhia-me ou na casa das abelhas já referida acima, ou na cabana escondida no meio de um bosque natural perto da lagoa do Cristo Rei. Nos dias de sol optava pelo bosque de árvores nativas até hoje parcialmente preservado na encosta à direita da avenida Unisinos subindo a partir da estação do trem. Foram 4 meses em que mergulhei o mais profundamente possível na doutrina e no pensamento dos Padres fundadores da Igreja, dos teólogos formuladores da doutrina, com ênfase na Escolástica: Aristóteles cristianizado por São Thomas de Aquino, Platão, Sto. Agostinho, Suarez, as Sagradas Escrituras, os Evangelhos, as Cartas de São Paulo, São Pedro, a doutrina e dogmas definidos nos diversos concílios, especialmente no de Trento, os teólogos posteriores de maior relevância, os nomes de referência em Exegese, Moral, Direito Canônico, História da Igreja, ocuparam todos os espaços disponíveis naqueles 4 meses. A tudo isso veio somar-se a revisão dos 3 anos de filosofia compreendendo a complexidade, a convergência e divergência natural nos grandes campos compreendidos pelo conceito Filosofia ou formação Filosófica: a Lógica, a Ontologia, a Ética, a Cosmologia, a História da Filosofia e por aí vai. Lembro-me com um toque de nostalgia daqueles 4 meses em que passei dia após dia sozinho, quase como um eremita, naquele bosque emblemático envolto de um clima perto do místico, o farfalahr do vento na copa das árvores, o canto dos pássaros, o zumbido de um uma colmeia de abelhas aninhado no oco de uma figueira do mato e naquela casinha do apiário escutando como melodia de fundo o zumbido de milhões de abelhas, indo e vindo das 40 ou 50 colmeias alinhadas por perto, somado ao perfume paradisíaco das laranjeiras em flor no começo da primavera. Não poucas vezes nem voltava para o Colégio para o almoço. Um bom chimarrão e uma marmita preparada por meu especial amigo, o irmão cozinheiro, permitiam que não se desperdiçasse o precioso tempo. Lá pelo dia 15 de setembro a frente de combate estava alinhada na minha cabeça para encarar as investidas da banca formada por cinco cabeças iluminadas, dispostas a tirar o couro de quem pretendesse fazer parte futuramente da categoria dos “professos”, vencendo a barreira do “exame ad gradum”. Cabe aqui um pequeno inciso. Mais acima já lembrei que os sacerdotes jesuítas dividiam-se em duas categorias: “os coadjutores” e “os professos”. Integrar a categoria dos “professos” pressupunha a aprovação no “exame ad gradum” e ou em casos de qualidades humanas espirituais notórias daqueles que não chegaram a se submeter ou não foram aprovados nesse exame. Quanto me recordo eu fui o único da minha turma de teologia que chegou a prestar esse exame. Os “professos” emitiam, posteriormente, além dos três votos normais: pobreza, castidade e obediência, um quarto, o voto de obediência direta ao papa. Formavam, por assim dizer uma elite dentro da ordem. De suas fileiras costumavam ser indicados os responsáveis por cargos de importância maior como superiores provinciais, superiores de faculdades de teologia, o superior geral da ordem e outros mais. Como já referi “coadjutores” que se distinguissem como bons administradores, cientistas e ou em outras tarefas a eles confiados, costumavam ser promovidos a “professos”. Entre os meus conhecidos cito duas dessas promoções. A primeira delas foi a do Pe. Edvino Friederichs, meu antigo professor de Ciências Naturais no Ginásio em Salvador do Sul. Pela sua capacidade administrativa fora do comum ocupou por duas vezes o posto de Provincial da Província Sul-brasileira da Companhia de Jesus e, consequentemente promovido a professo. O segundo exemplo foi o Pe. Ignacio Schmitz promovido a professo pelo nome conquistado com professor na universidade federal do Rio Grande do Sul e Unisinos somado à excelência de suas pesquisas arqueológicas que lhe renderam reconhecimento nacional e internacional. Mas, é preciso lembrar um detalhe pouco conhecido que assegurava ao professo uma garantia na própria ordem. Se por algum motivo os superiores decidissem desligar um professo, o quarto voto lhe garantia que o processo tramitasse não nas instâncias internas da Ordem mas no nível superior da Congregação dos Religiosos órgão ligado e subordinado diretamente ao papa.

Voltando ao meu exame ad gradum. Os dois ou três dias que o precederam restringi-me a uma recapitulação diária dos conteúdos. De resto procurava ocupar a mente caminhando pela bela natureza que na época ocupava toda a área onde hoje se ergue o complexo da Unisinos, o convento das carmelitas e arredores. Não podia faltar um chimarrão com meu pequeno de estatura mas grande amigo, o irmão Domingos Vinoti responsável pelas vacas e porcos, onde hoje se encontra o convento das carmelitas. Na véspera, 19 de setembro, obedecendo à orientação em vigor na época para os jesuítas em formação, procurei não me ocupar com os conteúdos a serem objeto de interrogações na manhã seguinte. Passei o dia perambulando nos lugares já mencionados, tentando ignorar por algumas horas tudo que fervia na minha cabeça e tentando fazer de conta que a manhã seguinte não passaria de uma troca de ideias com cinco eminências, doutores em filosofia e teologia.

Dia 20 de setembro de 1963. Chegara finalmente o dia de prestar contas do que aprendera e guardava na forma de conhecimento dos 3 anos de filosofia e dos 4 de teologia. Às 7h. em ponto entrei na sala destinada para o exame que se estenderia até às 11,30h. Atrás de uma comprida mesa esperavam da esquerda para a direita os padres Balduino Kipper, exegeta, Cândido Stefani, teólogo, Godofredo Kessler, teólogo e presidente da banca, Antônio Steffen, filósofo e Luiz Muller, também filósofo. As primeiras duas horas foram reservadas para a Filosofia, isto é, das 7h. até às 9h. Das 9 às 9,30 um intervalo para um lanche. Nesse lanche uma guloseima à base de moranguinho vinha a ser a maior curiosidade e não podia faltar. Acontece que na época os moranguinhos da horta do colégio ainda não estavam maduros. O Pe. Kessler se deu o trabalho de no dia anterior viajar de ônibus a Porto Alegre e comprar um quilo ou dois no mercado público. A presença obrigatória do moranguinho naquele intervalo do “exame ad gradum” inspirou o jargão entre os estudantes e professores da faculdade Teologia do Cristo Rei: “comer moranguinhos”. O fulano vai “comer moranguinhos” significava que fora considerado habilitado a enfrentar o “exame ad gradum”. Pois, em companhia dos examinadores, fui até o refeitório tomamos um lanche reforçado acompanhado dos emblemáticos moranguinhos. Pelo tom da conversa e a maneira como me trataram deu para perceber que a metade da batalha estava vencida. Das 9,30 às 11,30 foi a vez de ser sabatinado pelo padre Kipper sobre a Sagrada Escritura e os padres Kessler e Stefani sobre teologia propriamente dita. Saí exausto e acabado daquela batalha em que meus conhecimentos de filosofia e teologia foram virados às avessas, tudo em latim. O ritual prescrevia que o resultado seria comunicado mais tarde pelo secretário ou, novamente no jargão da ordem, pelo sócio” do Provincial. Mas, pelas manifestações dos examinadores ao sairmos da sala do exame não havia lugar para dúvida de que me saíra muito bem no entrevero. E, de fato, mais ou menos um mês depois fui buscar na Cúria do Provincial a confirmação que fora aprovado e o secretário da Faculdade de Teologia expediu o certificado de licenciado. Guardo esse documento até hoje como a relíquia que marcou o encerramento da minha formação acadêmica no nível superior, somado ao bacharelado em Línguas e Literatura Clássicas, bacharel e filosofia, bacharel em História Natural e Geologia. Para a formação como jesuíta faltava ainda o ano da “Terceira Provação”, isto é, 10 meses dedicados a uma imersão sistemática e definitiva no espírito da Ordem. Não cheguei a passar por essa experiência pois, após alguns anos de adiamento resolvi me desligar da Ordem. Esse, porém, é um assunto que deixo para mais abaixo.

Da Enxada à Cátedra [ 61 ]

A seguinte estação da nossa viagem veio a ser Itaqui. Ao escurecer alcançamos o rio Itaqui. Na época ainda não havia ponte e a travessia do rio dava-se por barca. Acontece que a barca não funcionava depois do escurecer. O que fazer?. Não havia nenhuma possibilidade de encontrar um estabelecimento para pernoitar. A saída foi pernoitar na margem do rio, esperar o clarear o dia para a barca nos levar até a outra margem. O Berensen e o Alcides acomodaram-se nos bancos da Wemagete e eu juntei umas braçadas de capim seco e enrolado num poncho passei a noite acomodado de baixo de um Sarandi na margem do rio.

Na manhã seguinte seguimos viagem até Itaqui. Não há muito a anotar sobre a visita aquela cidade. A uma certa altura ao caminhar pelo centro da cidade, ao atravessar a praça topamos com um senhor que veio ao nosso encontro e nos saudou. Pela aparência e estilo da roupa devia ser algum estancieiro que morava na cidade. Depois de nos identificarmos, o Berensen chefe do escritório da multinacional Ferrostahl em Porto Alegre, o Alcides coordenador da Faculdade de Ciências Econômicas em São e eu professor na Universidade Federal de Porto Alegre além das faculdades em São Leopoldo e informarmos o porque da nossa viagem pelo Rio Grande do Sul, ele tirou o chapéu, fez uma mesura e disse: “então vocês são coisa muito lá por cima!” Convidou- nos para conhecer a sua casa. Morava num bela e ampla mansão bem no centro. Acomodados na sua sala de estar ornamentada com símbolos gaúchos, pinturas e fotografias, conversamos por uma boa hora. Insistiu que almoçássemos com ele. Enquanto assava uma picanha no espeto continuamos a conversa até a hora do almoço pelo meio dia. Aquele encontro não programado fez com que levasse para o resto da vida uma recordação agradável daquela cidadezinha na barranca do Rio Uruguai. A figura daquele estancieiro trabalhador, honesto e de uma simpatia cativante fixou-se na minha memória como uma fotografia que não se esquece. Depois do almoço despedimo-nos do estanceiro para ainda na mesma tarde visitar as ruínas de São Miguel das Missões.

Ao por do sol paramos em frente a sede com o museu das Missões em São Miguel Arcanjo uma das sete Reduções, como já lembrei mais acima. Na época não havia nem pousada muito menos um hotel para passar a noite. A solução foi a mesma daquela da noite anterior passada na margem do Itaqui. O Berensen e o Alcides acomodaram-se nas “poltronas” da wemaguete e eu na varanda do museu. Depois de um lanche que serviu de janta ficamos conversando por um bom tempo tendo como cenário à nossa frente a fachada da imponente igreja severamente maltratada pelo tempo, porém, irradiando, por isso mesmo um fascínio indescritível. Acomodei-me do jeito que deu entre as estátuas esculpidas pelos artistas guaranis e a emblemática “Cruz de Lorena” esculpida num bloco de arenito, testemunha da obra civilizatória única empreendida pelos missionários jesuítas no século XVII e XVIII. Passei a noite praticamente em branco, não pelo cansaço mas, pelo cenário que me rodeava. Mais acima tentei descrever e mostrar o que as Missões representaram e ainda representam para conhecer e avaliar a história da América tanto espanhola quanto portuguesa. Aquela noite e todo o dia seguinte pude apreciar e sentir in loco o significado daquela experiência única sendo construída naquele cenário. Felizmente as ruínas de São Miguel são hoje protegidas como patrimônio cultural da humanidade. Tornaram-se um centro de visitação pública por parte de turistas curiosos, historiadores, arquitetos, urbanistas, artistas, de preferência escultores e, não em último lugar por peregrinos para quem esse cenário é sagrado. Aliás a atmosfera do sagrado, do espiritual, do místico que paira sobre esse pedaço chão no noroeste do Rio Grande do Sul, Norte da Argentina e sul do Paraguai, reveste-se de um sentido todo especial pois, foi ai que foram martirizados Roque Gonzales, Afonso Rodrigues e João de Castilho, hoje venerados como santos pelos católicos.

Ao clarear do dia flagrei-me a poucos metros da fachada da igreja maltratada pelo tempo com sua torre emblemática. A poucas dezenas de metros onde passara a noite a enorme cruz de Lorena, símbolo das reduções, como que vigiando as ruínas da sede da redução, em parte vítimas das intempéries mas, vítimas também da depredação dos herdeiros da Missão transformando-a numa autêntica pedreira, pilhando o material das construções. A primeira visita foi às ruínas da igreja. Ainda não gozando da proteção e vigilância do patrimônio histórico, sem infraestrutura adequada e sem guias e guardas, o interior tomado pelas macegas, as paredes danificadas pela ação do tempo, evidentemente sem vestígio da cobertura, sem querer, a “melancolia da história” continuava pairando sobre aquele cenário. O passo seguinte foi a visita ao cemitério à direita do templo. Continua a receber os falecidos das proximidades. Compreensivelmente pouco ou quase nada restou das sepulturas originais dos guaranis. Do lado direito da igreja, também tomado pelo mato os alicerces da moradia dos missionários. Em seguida foi a hora de dar uma caminhada pelos terrenos cobertos de mato e macega onde os nativos, sob a orientação dos missionários, cultivavam hortas para suprir as necessidades dos moradores e dos padres. Na etapa seguinte percorremos o conjunto de ruínas tomadas parcialmente pelo mato, da aldeia propriamente dita, sede da redução ocupando as laterais e os fundos de uma grande praça central. Na frente diretamente para a praça alinhavam-se as moradias dos índios e nos fundos as oficinas, depósitos, artesanatos, ateliers de arte sacra. A grande praça servia de palco para cerimônias, religiosas, competições esportivas, apresentação de peças de teatro, exibições de ginástica e outras programações de interesse coletivo. Mais acima já lembrei que o comando supremo da administração de uma redução cabia aos missionários nela residentes. Em assembleia presidida pelos missionários escolhia-se um chefe maior, hoje diríamos prefeito e um conselho superior formado, na conceituação de hoje, por uma “Câmara de Vereadores”. As catequeses e demais modalidades de formação religiosa e profana eram dadas na língua dos nativos. Em escolas e cursos específicos as mulheres apropriavam-se das artes e ofícios domésticos e os homens aprendiam principalmente a arte da escultura em madeira e arenito, a pedra predominante da região, além de ofícios como de ferreiro, marceneiro, funileiro e outros mais.

Na redução de São Miguel Arcanjo o missionário Anton Sepp nascido em Brixen ou Bressanone no Tirol do sul hoje sob a jurisdição da Itália, portador de uma formação acurada em música no Conservatório de Londres, perito em outras especialidades, fez funcionar com seus Guaranis a primeira usina de fundição de ferro do Brasil recorrendo à ”pedra cupim” como minério. Sob sua orientação foi instalada a primeira tipografia e o primeiro livro impresso no Rio Grande do Sul. Das oficinas, forjas e fundições de São Miguel saíram sinos e todo o tipo de ferramentas indispensáveis na agricultura, nas artes e, porque não, armas indispensáveis em momentos de ameaça às reduções.

No meio da tarde demos uma esticada até a margem do rio Piratini onde se encontravam as pedreiras para extrair as pedras para as construção da igreja, moradias, oficinas etc. Chega a ser espantoso o trabalho e o empenho em buscar as pedras de construção a uma tal distância e nas condições de transporte no século XVII e XVIII. Sem querer vem à memória, preservadas as devidas proporções, as pirâmides do Egito erguidas com blocos incomparavelmente maiores, mais pesados e transportados de uma distância muito maior do que os da redução de São Miguel.

Depois dessa peregrinação física e, principalmente histórica, pelo cenário geográfico e a visita às ruínas de São Miguel, uma questão de fundo continua desafiando os estudiosos do modelo de organização social, política, econômica, religiosa sui generis, tomava forma e consolidava-se no norte da Argentina, no sul do Paraguai e noroeste do Rio Grande do Sul. Em primeiro lugar não se pode esquecer que os nativos das reduções encontravam-se sob a jurisdição colonial espanhola e como tais considerados súditos da coroa da Espanha, não passavam de uma reserva de possíveis escravos a ser explorada pelos bandeirantes. Como já lembramos mais acima, os nativos corriam o permanente risco de caírem nas mãos dos bandeirantes e reduzidos à escravidão. E, como é lícito interpretar, resultou no desastroso e, para não dizer criminoso, tratado do redesenho das fronteiras entre Madrid e Lisboa. Já lembramos mais acima que os índios que não se refugiaram com seus missionários na margem direita do rio Uruguai foram caçados e escravizados pelos bandos de Raposo Tavares ou simples e puramente trucidados e os sobreviventes retornaram à vida tribal nas florestas do Alto Uruguai, Oeste de Santa Catarina e Oeste do Paraná. Um número considerável dificilmente dimensionável foi diluído na voragem da miscigenação resultando no tipo humano conhecido como missioneiro”.

Depois de todas essas visitas, observações e conclusões feitas sobre a missões jesuítas em geral na América latina e, especialmente sobre o Sete Povos no Rio Grande do Sul, ficou em aberto a pergunta chave. Depois das muitas análises feitas em encontros de antropólogos, historiadores, sociólogos,políticos,estudiososdareligiosidadeedasreligiões,nãosechegoua umaresposta conclusiva definitiva; depois de inúmeras matérias pertinentes publicadas em revistas especializadas e em livros; depois de vasculhar os documentos guardados na Biblioteca Nacional, nos arquivos de Assunion, Buenos Aires, Lisboa, Madrid, Roma, além da monumental coleção “De Angelis”, tudo reunido em microfilmes pelo Pe. Arnaldo Bruxel, não dispomos de uma resposta conclusiva sobre duas questões. Sobre a primeira. Quais os fundamentos Sócio filosóficos e religiosos sobre os quais estava sendo consolidado, o assim por vezes apelidado, “Império dos jesuítas?” (Até um lendário imperador Nicolau I, fruto da imaginação aparece nas lendas das missões) ou “República Socialista – Comunista Guaranítica”. Penso que, considerados ospersonagens envolvidos, os jesuítas e guaranis e outros povos nativos, a resposta situa-se num meio termo. “In medio stat virtus – “A virtude ou a verdade encontra-se no meio termo”, como ensina a antiga sabedoria romana. Parece que para entender essa experiência única na história de uma organização de grandes proporções não se pode esquecer que os missionários jesuítasrecorreram à estratégia de “cristianizar os nativos”, deixando espaço para concretizar-se paralelamente uma “nativização do cristianismo”. Tento explicar. Os missionários não começaram desmontando a estrutura tribal, base da sociedade dos nativos. Equiparam-na com o que havia de mais moderno da época em termos organização urbana, material de construção e estilo de moradia e instalações complementares, como pode ser deduzido da descrição mais acima da redução de São Miguel. O verdadeiramente novo parece ter sido a igreja, o cemitério, a moradia dos padres, à escola e às oficinas, como referência central da redução, além da escola, oficinas e demais instalações que variavam de acordo com as características circunstanciais de cada redução. Os missionários valiam-se da língua dos indígenas nas escolas e na catequese. Para tanto elaboraram gramáticas, catecismos etc. nessas línguas. Os problemas mais complicados e de difícil solução na fase inicial dessa miscigenação, foram com certeza a poligamia e a antropofagia, praticada pelos guaranis das Sete Missões no Rio Grande do Sul. Pela alfabetização e consequente abertura para um mundo além das fronteiras tribais e o contato com a cultura, principalmente a europeia e suas conquistas científicas e tecnológicas ou a “europeizização” foi conquistando cada vez mais espaço. Pela sua importância como fator sem o qual o progresso e a sustentabilidade não tinham como se manter foi o cultivo de alimentos e a criação de rebanhos bovinos, somados aos demais animais domésticos. Mais acima já lembramos que o plantel do qual descendiam as centenas de milhares, senão milhões de cabeças de bovinos na “Vacaria do Mar” no centro sul do Estado e na “Vacaria dos Pinais” em cima da serra, foi introduzido pelo missionário Cristóvão de Mendonça na primeira metade da década de 1630.

Quanto à agricultura e produção de insumos indispensáveis para o diário de uma redução, é preciso alertar que os guaranis, por ex., viviam no Neolítico, isto é, da era da pedra polida praticando uma horticultura primitiva. Num regime de terra comunitária e de agricultura desenvolvida nessas condições os produtos de maior interesse para garantir o abastecimento da redução costumavam ser considerados um bem comum armazenados em depósitos comunitários. Ao mesmo tempo cada agricultor tinha direito a uma parcela do produto do seu trabalho a título de propriedade particular. Essas peculiaridades do uso da terra na produção agrícola levam à conclusão que nas reduções vigorava um regime intermediário, “uma terceira via” a qual classificaríamos hoje como “Solidarismo”, pelo menos muito próximo a esse conceito. Cem anos mais tarde o bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler definiu em seus célebres sermões em dezembro de 1848, o direito natural à propriedade e o limite da mesma ditada pelo direito dos outros, base que leva o Solidarismo a uma terceira via entre o Capitalismo Liberal e o Capitalismo do Estado. Mas, essa discussão já foi objeto de reflexão mais acima.

No nível da organização sociopolítica as reduções gozavam de autonomia. Ligava-as, porém, entre si a orientação dos superiores maiores dos missionários com sede em Assunción do Paraguai. A exportação de erva-mate, couros e outros bens revertiam para o patrimônio comum de cada redução. Esse modelo de organização das reduções evidentemente deve ter gerado preocupações tanto da coroa portuguesa quanto da espanhola pois, para muitos, principalmente as autoridades, sinalizava para o perigo de uma confederação autônoma ao modelo em andamento nas colônias norte americanas. Esse fantasma ameaçava tornar-se realidade na medida em que as missões progrediam com o aporte de tecnologias modernas, como fundição de ferro, ferramentas e armas de fogo. As consequências do tratado de Madrid desencadeou uma luta sangrenta, na qual se notabilizou o capitão guarani Sepé Tiaraju. Depois de dois anos de escaramuças e autênticas batalhas, os índios foram derrotados. Um contingente atravessou o rio Uruguai e foi refugiar-se no norte da Argentina e sul do Paraguai. Terminada a guerra em que milhares de índios morreram nos combates, inúmeros outros caíram nas mãos dos bandeirantes e reduzidos a escravos enquanto um número não menor refugiou-se nas florestas mais ao norte na margem esquerda do Uruguai, regredindo gradativamente ao nível tribal e à primitividade dos ancestrais de 150 anos antes.

Só para satisfazer a imaginação. Se o “Império” ou “Reino” ou República” temidos por uns e glorificados por outros tantos, se tivesse concretizado, a história da América do Sul teria tomado um rumo completamente diferente e o desenho do mapa geopolítico, além do nível cultural irreconhecivelmente outro do que o de hoje. Depois dessas reflexões estamos em condições de levantar o acampamento em São Miguel e continuar a viagem até São Luiz Gonzaga, outra sede de Redução.

As reduções de São João Batista e São Luiz Gonzaga encontram-se em estado bem mais precário do que São Miguel. De qualquer forma paira sobre os fragmentos de São Luiz Gonzaga e a igreja reformada permitindo do alto de sua torre uma visão sobre as redondezas, as ruínas encobertas pela vegetação de São João e a catedral de Santo Ângelo, réplica da igreja de São Miguel, a mesma atmosfera de “melancolia da história” como a observada pelo Pe. Rambo.

Pernoitamos em São Luiz Gonzaga e na manhã seguinte seguimos viagem com uma breve parada nas ruínas de São João, uma visita rápida à catedral de Santo Ângelo. De lá continuamos a nossa viagem até Santa Cruz do Sul, onde pernoitamos. Na manhã seguinte visitamos a catedral, percorremos o centro da cidade com uma parada na sede da Souza Cruz. À meia tarde enfrentamos os últimos 100 quilômetros até São Leopoldo, nossa residência no Colégio Cristo Rei. O Berensen voltou a Porto Alegre onde residia e o Alcides e eu retomamos a rotina do restante das férias: um retiro de oito dias, um curso intensivo de Hebraico e, no meu caso a preparação das preleções na Universidade Federal e as de Geologia na Faculdade de Ciências e Letras de São Leopoldo.

Da Enxada à Cátedra [ 60 ]

Até aqui a nossa viagem pelo sul e sudoeste do Rio Grade do Sul deixou a impressão de que as cidades que visitamos e as estradas que percorremos resultaram de um povoamento que não passa muito dos 200 anos. Seus protagonistas foram os imigrantes açorianos, seguidos dos imigrantes alemães, italianos, poloneses procedentes das demais regiões da Europa Central e do Norte. A viagem a São Borja nos levou para o noroeste do Rio Grande do Sul não só como referência geográfica mas, principalmente, para um cenário histórico único. São Borja foi fundada em 1687 pelo jesuíta espanhol Francisco Garcia que a batizou com esse o nome em homenagem ao terceiro superior geral da Companhia de Jesus, São Francisco de Borja. O desenho do brasão do município sintetiza a história das sete missões dos missionários jesuítas em território que passou para a história como a Região das Missões. Sobre um fundo vermelho (simbolizando o sangue dos guaranis) destaca-se em ouro a Cruz de Lorena, também, conhecida como Cruz de Caravaca, ou Cruz da Borgonha. São Borja também, é conhecida modernamente como a terra dos Presidentes – Getúlio Vargas e João Goulart – a capital do Fandango - o berço do Trabalhismo. Hoje manadas de gado pastam nas estâncias que cobrem esse território que os livros de história e o entendimento popular costuma chamar simplesmente “Região das Missões”, para distinguir do Alto Uruguai e as outras em que o Estado costuma ser dividido. Entrando em São Borja abre-se ao forasteiro a porteira para um território de um significado único para o Rio Grande do Sul e, por extensão para o sul do Brasil, o Uruguai, o norte da Argentina e o sul do Paraguai. Referimo-nos o projeto civilizatório dos missionários jesuítas, tão bem delineado por Ruiz de Montoia na sua obra clássica “A Conquista Espiritual”. Em resumo. Esse conceito e, consequentemente a sua materialização, consiste num modelo de organização sócio cultural no qual se procurava preservar a cultura, os valores, os fundamentos sociais e a própria religiosidade dos povos nativos, a não ser em questões de uma incompatibilidade irredutível da doutrina cristã e elementos da cosmovisão dos nativos. E, pode-se concluir, sem malabarismos teóricos, que essas incompatibilidades não impediram a construção de uma civilização em que a organização solidária material e espiritual, em que o uso e o fruto dos bens matérias, culturais, sociais e, acima de tudo, o bem comum servia de referência nas comunidades nativas sob a supervisão moderadora dos missionários. Recomendo aos historiadores contaminados com o vício de reescrever e reinterpretar esse modelo civilizatório como um genocídio cultural”, no caso do Riogrande do Sul, dos Guaranis, lembrarem que os missionários aprenderam a língua dos nativos, elaboraram gramáticas para facilitar o ensino nas escolas frequentadas pelos filhos dos guaranis. Conseguiram que as autoridades coloniais espanholas impedissem a intromissão e circulação nas reduções de comerciantes, exploradores e aventureiros de todo tipo e naipe. O mais importante, porém, foi que nas reduções jesuíticas no sul do Brasil, na Argentina e Paraguai estava em plena consolidação um protótipo muito próximo da “Utopia”, sonhada por Tomas Morus, porém, sem os desvios e aberrações cometidos por não poucos defensores da igualdade, liberdade e fraternidade. Nessas minhas recordações, melhor talvez crônica, vou restringir-me de modo especial às 7 reduções organizadas no Rio grande do Sul pelos missionários jesuítas entre 1626 e 1759, ano da sua expulsão dos domínios portugueses e em 1767 dos domínios espanhóis.

Para começar convém delimitar o panorama geográfico humano e cultural em que no século XVII e XVIII prosperou uma experiência, não utópica senão real, de uma sociedade fundamentada na solidariedade e compromisso mútuo. Na linguagem “politicamente correta” de hoje costuma-se discutir no nível acadêmico, em dissertações de mestrado, teses de doutorado projetos de pós doutorado, a versão que naqueles 140 anos, cometeu-se um genocídio sócio cultural e religioso ao “europizar” e “cristianizar” os Guaranis do noroeste do Rio Grande do sul, norte da Argentina e sul do Paraguai. Visto e analisado, porém, sob a perspetiva da Antropologia Histórica ou, se preferirmos pela perspetiva diacrônica da história, ou ainda pelo que nos ensinam os milhares de anos da história do homem e os milhões de encontros pacíficos e ou hostis, quando duas ou mais culturas diferentes se encontram, ocorre compulsoriamente uma aculturação. Elementos culturais dos mais diversos níveis fluem e refluem de uma tradição cultural para a outra num processo de amálgama no qual as partes inevitavelmente perdem mais ou menos elementos do seu perfil tradicional. Como esse processo costuma envolver tradições culturais, valores, costumes, hábitos, tecnologias, mais ou menos distantes, o parceiro culturalmente mais rico e tecnologicamente mais bem equipado, e porque não mais agressivo, leva vantagem. Aplicada à realidade histórica das missões jesuíticas do século XVII e XVIII no sul do Brasil, norte da Argentina e sul do Paraguai a metáfora da “amálgma”, percebe-se, sem muito esforço de imaginação, que o elemento “cristianização dos Guaranis” e a “guaranização do cristianismo”, resultou num perfil civilizatório no qual predominou evidentemente o europeu cristão católico trazido pelos missionários jesuítas. Essa realidade percebe-se tanto na organização social, política e econômica de cada redução em particular quanto na arquitetura, na organização dos aldeamentos, construção de igrejas e evidentemente na arte, principalmente a sacra. O arquiteto Nestor Torelli Martins, professor emérito de arquitetura da Unisinos escreveu sua dissertação de mestrado em História, focada no estilo das representações de São Miguel nas Missões. No museu Júlio de Castilhos pode-se admirar uma estátua de Nossa Senhora da Conceição entalhada num tronco de madeira com traços evidentemente indígenas. Os exemplos poderiam ser multiplicados às dezenas. Mas, não é aqui o lugar nem a intenção de aprofundar esse tema.

Os guaranis no caso viviam em tribos fundamentadas no compromisso e solidariedade comunal na qual os bens de subsistência, a caça, a pesca, os frutos silvestres, a matéria prima indispensável para a construção de suas habitações, a terra para produzir alimentos e criar animais domésticos, eram bens comuns aos quais todos tinham o direito de acesso. Depois da introdução do gado vacum pelo missionário Cristóvão de Mendonça em 1632 os rebanhos que se multiplicaram formavam um patrimônio coletivo. Não se conheciam donos de rebanhos de milhares de cabeças como propriedade particular ao modelo dos estanceiros modernos. O uso e o fruto das manadas que se multiplicavam nos campos da Vacaria do Mar do sudoeste e sul do Rio Grande do Sul e, mais tarde, na Vacaria dos Pinhais nos campos de Cima da Serra, vinha a ser administrado à maneira de cooperativas sempre sob a supervisão dos missionários. Estamos diante de um modelo de sociedade “solidária” não “socialista” no conceito corrente de hoje. O perfil da organização social, econômica, cultural e, porque não, religiosa das reduções fundamentava- se no “Solidarismo” o que significa umautêntica “terceira via” via entre o capitalismo liberal e capitalismo social, o perfil moldado entre os dois extremos igualmente concentradores da posse dos bens nas mãos de indivíduos legitimado pelo individualismo liberal e do outro lado pelo coletivismo nas mãos de uma nomenclatura dominante não menos voraz.

A história dos sete povos das Missões no noroeste do Rio Grande do Sul, começa em 1626. Naquele ano o missionário jesuíta Roque Gonzales vindo do Paraguai atravessou o rio Uruguai e começou a missionar os Guaranis da margem esquerda do rio. Em seguida outros missionários o seguiram. Com é sabido foi morto pelos índios na localidade de Caró junto com outro missionário Afonso Rodrigues, enquanto o terceiro João de Castilhos também foi martirizado nas imediações do Salto do Pirapó. A devoção desses santos mártires tem como referência o santuário de Caaró.

Depois desses episódios as missões no Rio Grande do Sul passaram por um período consolidação até 1641. Como já lembrado mais acima, foi nesse período, 1632 que o missionário Cristóvão de Mendonça introduziu o gado no Rio Grande do Sul. A partir de 1642, os bandeirantes procedentes de São Paulo lograram a expulsão dos jesuítas do território da margem esquerda do rio Uruguai e iniciaram um autêntica caça aos índios reduzindo-os à escravidão ou simplesmente os caçavam com se fossem animais. O período das razias dos bandeirantes no Rio Grande do Sul durou até a década de 1680. Daquela data em diante consolidaram-se os sete povos das Missões. Em ordem cronológica foram implantadas São Borja em 1682, São Nicolau em 1687, São Luiz Gonzaga e São Miguel Arcanjo, também em 1687, São Lourenço mártir em 1690, São João Batista em 1697 e, finalmente Santo Ângelo Custódio em 1707. Somadas às reduções do norte da Argentina e sul do Paraguai formavam um grande confederação, sob a orientação e comando dos jesuítas com sua sede regional (Província) em Assunción. É compreensível que essa “confederação”, em rápida consolidação, culturalmente exuberante como demonstram as ruínas hoje preservadas como patrimônio cultural da humanidade, fundamentada sobre um modelo sócio econômico orientado pelos princípios do Solidarismo, chamasse a atenção e preocupasse a coroa da Espanha. Em suas colônias da América do Sul esboçavam-se os contornos territoriais e político sociais do tamanho de um poder mais que suficiente para tornar-se um “Império”, melhor talvez uma “República”, capaz de competir com as demais colônias e com a própria matriz na Espanha. Sob o pretexto de acertar as eternas pendengas de fronteira entre a colônia portuguesa do Brasil e as colônias da Espanha, as cortes de Madrid e Lisboa, celebraram em 1750 o tratado em que a região dos Sete Povos passou para o domínio português em troca da Província Cisplatina. O Tratado de Madrid significou a sentença de morte para os Sete Povos no Rio Grande do Sul. Os jesuítas espanhóis foram expulsos do território. Uma parte dos índios os acompanhou para a margem direita do rio Uruguai, outros foram escravizados e os demais dispersos voltando gradativamente ao estilo de vida tribal de antes das missões. Houve também uma miscigenação de um considerável número com os portugueses que se apropriaram das reduções e das numerosas tropas de gado, resultando no tipo humano historicamente conhecido com“Missioneiro”. Em sua monumental obra “A fisionomia do Rio Grande do Sul”, o Pe. Balduino Rambo legou para a posteridade um resumo emocionante sobre a epopeia e a sina histórica que ainda hoje paira sobre aquela porção do Rio Grande do Sul. Permito-me reproduzir no original condensado na página 322 e 323 da obra que acabo de citar.

No limite norte dos campos de Itaroquen, nas coxilhas que formam o divisor de águas entre o Piratini e o Ijuí, onde o mato fechado e o campo gramináceo se mantem em distribuição equilibrada, está a região mais bela desta parte do planalto: bela na harmonia de suas formas, sagrada por suas tradições históricas.

Lá longe, onde o espelho límpido do Piratini se solda às ondas pardas do Uruguai, em 3 de maio de 1626, Roque Gonzales chantou no úbere solo da terra rio-grandense o mais feraz dos lenhos, a Cruz de Cristo. Ali no fundo, onde a mata se adensa nas abas de larga coxilha, em 1698, o missionário tirolês Antônio Sepp, erigiu a redução de são João Batista e fundiu o primeiro ferro em terras brasileiras. Mais adiante, a torre mirrada de São Miguel surge dentre espinheiros e umbus, símbolo grandioso da religião, civilização das missões guaraníticas. Santo Ângelo, São Luís, São Lourenço, levantadas nos pontos mais elevados da região, são outras tantas fortalezas que exalam o perfume da história.

A beleza das ruínas antigas, inexistentes no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal. Ali a fé cristã e a civilização europeia pela primeira vez firmaram pé nas plagas abençoadas do “Tape” misterioso. La, nesses campos marchetados de capões, viajaram, a pé e a cavalo, os Roque Gonzales, os Montoyas, os Romeros. Ali os selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguira dobrar. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de intenso dinamismo.

A melancolia da história paira sobre essa paisagem. Tudo quanto é belo é fadado a fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geográficas traçadas a esmo nos gabinetes de Madrid e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruína os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitadas com pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloquente, de acusação contra o mistério da humana iniquidade.

Na coxilha de Caaró, a capelinha erguida em 1936 designa o lugar onde o primeiro missionário do Rio Grande do Sul, Roque Gonzales, e seu companheiro Afonso Rodriguez sucumbiram aos golpes do tacape dos sicários de Nhençú; e o salto do Pirapó ainda murmura, na espuma de seus cachões, a prece derradeira de João de Castilho, trucidado nas suas margens. (até aqui a reflexão do Pe. Rambo).

E, para concluir as reflecções sobre a Sete Missões recomendo os dois parágrafos finais da introdução que escrevi para o meu livro sobre “O Projeto Pastoral dos Jesuítas no sul do Brasil”, publicado em 2013 pela Editora Unisinos.

Discute-se, como sempre se discutiu muito, a validade do modelo civilizatório cristianizador, ou retomando o conceito acima empregado, a “cristianização da guaranidade” ou vice versa a “guaranização do Cristianismo”, posto em prática pelos jesuítas dos séculos XVII e XVIII. Destacamos, de um lado, que não há palavras para ressaltar a excelência, a grandiosidade e mesmo a sublimidade desse empreendimento. Pode ser interpretado como um contraponto ao regime predatório e genocida dos colonizadores espanhóis e portugueses. Outros o condenam como uma intervenção não menos genocida de cunho cultural, com a imposição de uma cultura alienígena, valendo-se como arma e estratégia maior da evangelização e da conversão ao cristianismo. Condenam acidamente o projeto missioneiro argumentando que dessa forma não havia como salvar o cerne da cultura dos nativos as suas crenças religiosas e suas expressões, os costumes familiares, matrimônio, poligamia, antropofagia e outras mais. De qualquer forma, tratou-se de uma experiência muito menos traumática do que, por exemplo, aquela protagonizada pelos “heróis bandeirantes”, apresentados nas escolas como os grandes obreiros da consolidação das fronteiras definitivas do Brasil. O fato é que qualquer tentativa de reescrever a história daquele projeto missionário, adotando parâmetros e instrumentos teóricos e metodológicos hoje em moda, desanda necessariamente em interpretações na mínimo distorcidas ou equivocadas. De outra parte, os que só conhecem aplausos fariam bem em moderar o seu entusiasmo, pois, como obra conduzida por humanos, mesmo sendo jesuítas e missionários não passavam de homens, essa missão missioneira exibe as limitações, as falhas, os desvios, as aberrações os usos indevidos próprios das obras humanas. “Wo Menschen sind geht es menschlich zu” – mal traduzido – “Onde se encontram humanos, a sua maneira de agir trai sempre o lado humano”. Este provérbio originário da língua de um dos maiores missionários de então, Anton Sepp, poderia muito bem servir de baliza para quem se põe a refletir sobre essa experiência para dar o seu veredito. Na sua execução, sobressaem rasgos de heroísmo, ousadia, desprendimento, doação da própria vida em favor da causa maior que os motivava. Mas, o quotidiano mostra também evidências daquilo que os homens, também os mais idealistas e, porque não, os mais santos, têm de humano em interesses, pequenos vícios, intrigas, desentendimentos, conflitos pessoais.

Restaurada a Ordem dos Jesuítas em 1814, em poucos anos os discípulos de Santo Inácio de Loyola, como que emergindo revigorados de um “Retiro” compulsório de 40 anos, retornaram aos antigos cenários apostólicos dos Sete Povos acompanhando e liderando os colonizadores, não os guaranís, mas os imigrantes vindos da Europa Central e do Norte. Em lugar dos “Gonzales, dos Romeros, dos Montoyas de um século e meio antes, agora sãos os Lassberg, os Amstad, os Rick que, a cavalo ou a pé percorrem o mesmo cenário construindo os fundamentos de uma realidade humana das mais prósperas do sul do Brasil. Voltaram para retomar a obra civilizatória interrompida em 1773 com a supressão da Ordem. Lançaram as sementes de uma agricultura em constante aperfeiçoamento e ganhos em produtividade, criaram escolas, fundaram colégios, impulsionaram as missões populares, dedicaram-se à catequese, inclusive não faltaram iniciativas lideradas pelo Pe. Josepf Stüer para recuperar os descendentes dos índios dispersos pelo colapso dos Sete Povos. Foi em meio a essa dinâmica que desembarcaram no Rio Grande do Sul em 1849 os primeiros jesuítas de língua alemã da Ordem restaurada. Vieram com o objetivo principal para dar assistência pastoral aos núcleos de povoamento em formação, cuidar da educação religiosa e profana e dar andamento a audaciosos projetos de promoção humana, movidos pela mesma dinâmica missionária dos seus coirmãos espanhóis de um século e meio antes.

A nossa demora propriamente dita a São Borja durou menos de um dia. Depois de percorrer o centro da cidade não podíamos deixar de visitar o cemitério e o jazigo de Getúlio Vargas. Depois fomos encontrar-nos com o pároco cônego Hugo Hartmann que nos mostrou peças de arte sacra do tempo das missões num museu da paróquia.

Da Enxada à Cátedra [ 59 ]

Depois das visita a Rio Grande voltamos para pernoitar em Pelotas. Na manhã seguinte enfrentamos a então estrada de chão batido até Santa Vitória do Palmar e Chui na fronteira com o Uruguai. Não guardei na memória nada de importante da visita, como que em trânsito, por aquelas duas cidades. Registro apenas que na aduana do lado uruguaio o funcionário nos recebeu com uma metralhadora de mão ameaçadora depositada sobre a escrevaninha. Depois de dar uma circulada nos dois lados da fronteira fomos até a praia do Hermenegildo. Na ocasião não passava de um dessas praias do fim de mundo com poucos veranistas e uma infraestrutura precária. Resolvemos pernoitar aí mesmo. Meus dois companheiros acomodaram-se num hotelzinho que com muito favor poderia se classificado como tal. Eu, da minha parte, preferi passar a noite atrás de uma duna no abrigo de um touceira de maricá que protegia contra o vento. A temperatura estava amena mas aquele colchão de areia não favoreceu em nada os cochilos intermitentes daquela noite. Ao clarear do dia acomodamos nossos pertences na Wemaguete e retornamos pela mesma estrada de chão batido que liga Pelotas ao Chuí. A meio caminho mais ou menos visitamos uma granja de arroz e almoçamos num desses restaurantes de beira de estrada. Pernoitamos em Pelotas para no dia seguinte seguirmos até Jaguarão. Além de dar uma circulada para conhecer a cidade e a ponte internacional sobre o rio Jaguarão. Fizemos amizade com um fazendeiro, dono de uma moderna criação de vacas de leite de raça, com ordenha mecânica em estábulos bem planejados e uma higiene que não deixava nada a desejar. Convidou-nos para conhecer a residência da granja e, por fim, ofereceu-nos pousada para a noite. No dia seguinte seguimos sem incidentes viagem até Erval do Sul. O único fato digno de nota daquele percurso foi a caçada de uma enorme lebre saltando no meio da macega perto de uma cerca. O Berensen não duvidou. Estacionou a Wemaguete pegou uma calibre 12 e abateu o animal. Note-se que na época a concessão da posse e o porte de arma dependia apenas da assinatura de um documento pelo agente responsável da fiscalização das regras que disciplinavam o período e a quantidade de peças abatidas. A caça da lebre estava liberada para o ano todo pois, como espécie não nativa e livre de predadores naturais, temia-se que ocorresse uma multiplicação desordenada dela com o risco de se transformar numa praga como em outros países. Pelo fim da tarde entramos na cidadezinha do Herval e fomos pedir informação na casa paroquial sobre a possibilidades de pousada para aquela noite. Quem nos atendeu foi o pároco de sobrenome Persch natural de Bom Princípio mas integrado no clero da diocese de Pelotas. Recebeu-nos com toda boa vontade ainda mais ao saber que eu era natural de Tupandi, paróquia vizinha de Bom Princípio onde ele nascera. Há muitos anos pároco de Herval adquirira uma área de terra de bom tamanho especializada na produção de sementes de cebola. Confiou a administração daquela propriedade a um irmão casado que morava com ele na casa paroquial. E qual não foi a minha surpresa ao saudá-lo. Ele fora meu colega no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Desistira da carreira religiosa, casou e foi cuidar da produção de sementes de cebola do irmão pároco. Essas coincidências levaram ao convite para nós dois padres para pernoitar na casa paroquial. O Berensen como de costume alojou-se num hotel. Deixamos a lebre caçada na estrada para a cunhada do pároco. A conversa prolongou-se até altas horas da noite. Na manhã seguinte, depois de rezar a misa na matriz e um café reforçado apareceu o Berensen.

Acomodamos os nossos pertences na Wemaguete e seguimos viagem para Piratini. Depois de conhecer o centro com suas as construções históricas sede do governo da capital da efêmera República Farroupilha e a apresentação ao pároco, um frade franciscano, acampamos na margem do rio Piratini. De fato não me lembro de algo mais impactante nessa parada. Evidentemente valeu a noite na beira do rio como pausa bem vinda na viagem que nos esperava para os dias seguintes somada ao significado histórico da pequena cidade localizada no extremo sul do Estado.

Na manhã seguinte levantamos acampamento rumo a Bagé onde chegamos pela meia tarde. A primeira preocupação foi providenciar um local de pernoite. O Berensen alojou-se num hotel e o Alcides e eu conseguimos pousada no Colégio Auxiliadora sob a direção dos padres Salesianos. A acolhida não poderia teria sido melhor e mais fraterna. Até altas horas da noite o assunto predominante versou sobre a história e as atividades dos padres salesianos naquela cidade. Para começar o ensino médio, elementar e técnico, além da atividade pastoral e promoção de um clima religioso renovado, bem ao estilo da Restauração Católica, exibia um panorama muito parecido ao dos jesuítas em São Leopoldo, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. A diferença talvez mais interessante consistia no fato de os jesuítas terem vindo da Alemanha e os salesianos do Uruguai. Uma diferença de importância menor vem a ser a chegada dos salesianos 50 anos depois dos jesuítas e escolhendo como ponto de irradiação de suas atividades Bagé, uma cidade característica de estancieiros de origem açoriana, enquanto os jesuítas optaram por São Leopoldo, polo de irradiação da colonização dos imigrantes alemães nas sua agricultura familiar dedicada à cultura diversificada de produtos agrícolas. Os primeiros salesianos procedentes do Uruguai instalaram-se em Bagé em 15 de fevereiro de 1904. A administração municipal, interessada em promover o ensino elementar e médio ofereceu aos padres uma área no centro da cidade com a finalidade de fazer funcionário um colégio de nível médio. O Colégio Nossa Senhora Auxiliadora começou as suas atividades em 1906, sob a responsabilidade do primeiro diretor na pessoa do Pe. André Dell Oca. O bispo confiou-lhes a paróquia Nossa Senhora Auxiliadora além de capelanias e outras tarefas paroquiais. Só por curiosidade. Na sua chegada o Pe. Roberto Germano contava com um pouco mais de 20 anos e nunca se afastou da cidade até seu falecimento aos 94 anos. Mas, há uma outra coincidência entre atividade dos salesianos em Bagé e os jesuítas em São Leopoldo e Porto Alegre. Em 1903 duas irmãs franciscanas visitaram Bagé com o intuito de ver as possibilidades de fixar um posto permanente para cumprir a missão da congregação na educação da juventude feminina. Para encurtar a história em Bagé repetiu-se, embora três décadas depois, a história de São Leopoldo. Em 9 de março de 1905 o Colégio Franciscano Espírito Santo abriu as portas para receber as jovens desejosas de conquistar uma formação de nível médio. Somou-se assim à formação ética e religiosa da juventude masculina à um nível igual a formação da juventude feminina como tinha acontecido e continuava acontecendo em São Leopoldo e Porto Alegre. Não deixa de ser uma lástima que os historiadores da educação de hoje costumam avaliar com sérias restrições e, não poucos, com críticas ferozes os conteúdos e métodos pedagógicos daquelas instituições que formaram várias gerações de cidadãos íntegros, profissionais de alta qualificação, homens públicos comprometidos com o bem comum. Não é aqui o lugar par ampliar e aprofundar esse tema mas para chamar a atenção que se recupere esse período por meio dissertações de mestrado, teses de doutorado e ou outras pesquisas sérias e isentas do politicamente correto. Não passa de um dever de justiça preencher com a devida objetividade essa lacuna e cantar um hino de louvor às centenas de religiosos e religiosas anônimos empenhados em consolidar os fundamentos da educação não só nos centros urbanos como também no interior agrário e pastoril.

Na manhã seguinte cedo rezei a missa na igreja matriz vizinha do colégio, também sob a responsabilidade do padres salesianos. Depois do desjejum com os hospedeiros, acomodamos os nossos pertences na Wemaguete para enfrentar a estrada de chão batido com destino a Alegrete.

Alegrete como Bagé e muitas outras cidades maiores e menores do centro e sudoeste do Estado, vem a ser uma representante emblemática do resultado dos estancieiros de descendência açoriana, donos dos rebanhos de centenas de milhares de cabeças de gado que geraram por muitas décadas a riqueza que sustentou o Rio Grande do Sul, garantiu-lhe a hegemonia social, econômica e política no nível estadual e, em boa parte nacional. Só um exemplo. Osvaldo Aranha, chanceler brasileiro na ONU em 1948 defensor da criação do Estado de Israel foi filho de Alegrete. Pela meia tarde chegamos à cidade e procuramos a casa paroquial. O Berensen como de costume foi procurar um hotel para pernoitar. O Alcides e eu que éramos padres fomos recebidos cordialmente pelo pároco que nos ofereceu pernoite na casa paroquial. A conversa prolongou-se noite adentro. Lá pelo fim da tarde apareceu o Pe. Paulo Aripe, conhecido em todo o Rio Grande do Sul como o “Padre Potrilho. Vinha da celebração de um casamento. Todo alvoroçado contou que, depois da cerimônia religiosa levou os noivos e padrinhos para a sacristia par assinar os documentos prescritos pelo Direito Canônico. Na ocasião constatou que o noivo na verdade não era o de verdade, mas o irmão do mesmo. Aconteceu que o noivo verdadeiro estava cumprindo o serviço militar e nessa situação impedido de casar antes da baixa no quartel. Por isso, credenciou o irmão para representá-lo na cerimônia religiosa. O Pe. Potrilho estava confuso e não sabia o que fazer, ainda mais porque fora convidado para o jantar comemorativo num clube da cidade. Recorrendo aos meus conhecimentos do Direito Canônico que acabara de estudar na Teologia, chegamos a uma conclusão que o tranquilizou. Antes do jantar convidaria os noivos, desta vez o verdadeiro, junto com os padrinhos, para se retirarem discretamente para um recinto reservado do restaurante onde receberia o compromisso matrimonial dos noivos e repetiria a bênção nupcial, depois das assinaturas dos noivos e testemunhas prescritas pelo ritual. Não havia nada de errado nesse malabarismo canônico pois, na verdade a Igreja exige a presença de um sacerdote no matrimônio religioso na condição de testemunha que legitima o compromisso matrimonial assumido pelos noivos perante a Igreja.

Não posso deixar de registrar a minha admiração pelo Pe. Potrilho porque, em parceria com o Pe. Zanella, ter inserido a missa na tradição gaúcha sem desfigurar a característica sacramental tradicional. A “missa crioula” preservou o sentido teológico além do ritual litúrgico oficial da Igreja. Acontece que o Concílio vaticano II substituiu mais tarde o Latim como língua litúrgica obrigatória pelas línguas que os católicos dos mais diversos países falavam e entendiam. Eu da minha parte que me ordenei sacerdote em dezembro de 1962, celebrei as missas ainda em latim nos primeiros um ou dois anos. O padre Potrilho com sua missas crioulas não só adotou o português como língua litúrgica como também deu nomes familiares aos gaúchos à Santíssima Trindade e a Nossa Senhora. Deus vem a ser o “Pai Celeste”, Jesus Cristo o “Divino Tropeiro”, o Espírito Santo o “Divino Candeeiro” e Nossa senhora a “Primeira Prenda do Céu. Durante a celebração da missa um lenço branco dos Chimangos entrelaçado com num lenço vermelho dos Maragatos costumava fazer parte dos enfeites significando que, como cristãos católicos, todos eram irmãos, apesar de um passado marcado pelas guerras fratricidas e as degolas em massa, que mancharam a história do Rio Grande do Sul no final do século XIX e na revolução de 1923. A “missa crioula” foi aprovada em 1967 pelo então papa Pulo VI. O Pe. Potrilho destacou-se também como escritor. Entre suas obras destaca-se “A Igreja dos Galpões”. Nunca vou esquecer as horas agradáveis e, de modo especial, instrutivas com aquele padre ao mesmo tempo um apaixonado pela igreja e pelas características e tradições de seu povo.

A estação seguinte da nossa vigem veio a ser Sant Ana do Livramento e Rivera do outro lado da fronteira com o Uruguai. Como é do conhecimento geral as duas cidades formam, na verdade, uma unidade urbana dividida pela linha de fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai passando pela praça principal. As irmãs que administravam o hospital ofereceram o pernoite nas dependências da instituição. Na manhã seguinte rezei missa na capela do hospital para em seguida darmos uma caminhada pela cidade. Uma das curiosidades foi naturalmente a visita à praça e o marco de fronteira no meio dela. Como a nossa intenção não foi fazer compras a circulada por Rivera teve o sabor de ter transposto a fronteira de dois países com a sensação de ter estado no “estrangeiro”, como tinha sido no Chuí e Jaguarão, ambas na fronteira do Uruguai com o Rio Grande do Sul. Ainda no mesmo dia seguimos viagem até Uruguaiana.

Enquanto o Berensen foi providenciar pernoite num hotel o Alcides e eu tentamos a sorte no Seminário, vazio devido às férias dos seminaristas. O acolhimento não podia ter sido mais caloroso e fraternal. Em casa encontravam-se apenas dois ou três padres. O bispo D. Nadal estava viajando. Ao jantar com os padres do seminário seguiu uma conversa amena, porém, muito útil e instrutiva sobre as características, sociais, econômicas, políticas, culturais e, principalmente religiosas, daquele canto no extremo oeste do Rio Grande do Sul. Como não havia nada de impactante para visitar na cidade, resolvemos dar uma esticada até a Barra do Quaraí na embocadura com o rio Uruguai. Tomamos um delicioso banho no Quaraí e voltamos a Uruguaiana. Pela meia tarde resolvemos passar pela ponte internacional e jantar em Los Libres na Argentina. A Impressão dessa cidade não foi das melhores mas a janta que serviram foi de boa qualidade. Esperava mais de Los Libres em parte por ser a porta de entrada para a Argentina. Foi a quarta vez a pisar em solo estrangeiro, dessa vez na Argentina. Mas, depois de perto de 60 anos muita coisa deve ter mudado e para o melhor, com intensificação do tráfego de automóveis, ônibus e de modo especial transporte de mercadorias. Depois de pernoitar em Uruguaiana o destino do dia seguinte veio ser São Borja.