Da Enxada à Cátedra [ 59 ]

Depois das visita a Rio Grande voltamos para pernoitar em Pelotas. Na manhã seguinte enfrentamos a então estrada de chão batido até Santa Vitória do Palmar e Chui na fronteira com o Uruguai. Não guardei na memória nada de importante da visita, como que em trânsito, por aquelas duas cidades. Registro apenas que na aduana do lado uruguaio o funcionário nos recebeu com uma metralhadora de mão ameaçadora depositada sobre a escrevaninha. Depois de dar uma circulada nos dois lados da fronteira fomos até a praia do Hermenegildo. Na ocasião não passava de um dessas praias do fim de mundo com poucos veranistas e uma infraestrutura precária. Resolvemos pernoitar aí mesmo. Meus dois companheiros acomodaram-se num hotelzinho que com muito favor poderia se classificado como tal. Eu, da minha parte, preferi passar a noite atrás de uma duna no abrigo de um touceira de maricá que protegia contra o vento. A temperatura estava amena mas aquele colchão de areia não favoreceu em nada os cochilos intermitentes daquela noite. Ao clarear do dia acomodamos nossos pertences na Wemaguete e retornamos pela mesma estrada de chão batido que liga Pelotas ao Chuí. A meio caminho mais ou menos visitamos uma granja de arroz e almoçamos num desses restaurantes de beira de estrada. Pernoitamos em Pelotas para no dia seguinte seguirmos até Jaguarão. Além de dar uma circulada para conhecer a cidade e a ponte internacional sobre o rio Jaguarão. Fizemos amizade com um fazendeiro, dono de uma moderna criação de vacas de leite de raça, com ordenha mecânica em estábulos bem planejados e uma higiene que não deixava nada a desejar. Convidou-nos para conhecer a residência da granja e, por fim, ofereceu-nos pousada para a noite. No dia seguinte seguimos sem incidentes viagem até Erval do Sul. O único fato digno de nota daquele percurso foi a caçada de uma enorme lebre saltando no meio da macega perto de uma cerca. O Berensen não duvidou. Estacionou a Wemaguete pegou uma calibre 12 e abateu o animal. Note-se que na época a concessão da posse e o porte de arma dependia apenas da assinatura de um documento pelo agente responsável da fiscalização das regras que disciplinavam o período e a quantidade de peças abatidas. A caça da lebre estava liberada para o ano todo pois, como espécie não nativa e livre de predadores naturais, temia-se que ocorresse uma multiplicação desordenada dela com o risco de se transformar numa praga como em outros países. Pelo fim da tarde entramos na cidadezinha do Herval e fomos pedir informação na casa paroquial sobre a possibilidades de pousada para aquela noite. Quem nos atendeu foi o pároco de sobrenome Persch natural de Bom Princípio mas integrado no clero da diocese de Pelotas. Recebeu-nos com toda boa vontade ainda mais ao saber que eu era natural de Tupandi, paróquia vizinha de Bom Princípio onde ele nascera. Há muitos anos pároco de Herval adquirira uma área de terra de bom tamanho especializada na produção de sementes de cebola. Confiou a administração daquela propriedade a um irmão casado que morava com ele na casa paroquial. E qual não foi a minha surpresa ao saudá-lo. Ele fora meu colega no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Desistira da carreira religiosa, casou e foi cuidar da produção de sementes de cebola do irmão pároco. Essas coincidências levaram ao convite para nós dois padres para pernoitar na casa paroquial. O Berensen como de costume alojou-se num hotel. Deixamos a lebre caçada na estrada para a cunhada do pároco. A conversa prolongou-se até altas horas da noite. Na manhã seguinte, depois de rezar a misa na matriz e um café reforçado apareceu o Berensen.

Acomodamos os nossos pertences na Wemaguete e seguimos viagem para Piratini. Depois de conhecer o centro com suas as construções históricas sede do governo da capital da efêmera República Farroupilha e a apresentação ao pároco, um frade franciscano, acampamos na margem do rio Piratini. De fato não me lembro de algo mais impactante nessa parada. Evidentemente valeu a noite na beira do rio como pausa bem vinda na viagem que nos esperava para os dias seguintes somada ao significado histórico da pequena cidade localizada no extremo sul do Estado.

Na manhã seguinte levantamos acampamento rumo a Bagé onde chegamos pela meia tarde. A primeira preocupação foi providenciar um local de pernoite. O Berensen alojou-se num hotel e o Alcides e eu conseguimos pousada no Colégio Auxiliadora sob a direção dos padres Salesianos. A acolhida não poderia teria sido melhor e mais fraterna. Até altas horas da noite o assunto predominante versou sobre a história e as atividades dos padres salesianos naquela cidade. Para começar o ensino médio, elementar e técnico, além da atividade pastoral e promoção de um clima religioso renovado, bem ao estilo da Restauração Católica, exibia um panorama muito parecido ao dos jesuítas em São Leopoldo, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. A diferença talvez mais interessante consistia no fato de os jesuítas terem vindo da Alemanha e os salesianos do Uruguai. Uma diferença de importância menor vem a ser a chegada dos salesianos 50 anos depois dos jesuítas e escolhendo como ponto de irradiação de suas atividades Bagé, uma cidade característica de estancieiros de origem açoriana, enquanto os jesuítas optaram por São Leopoldo, polo de irradiação da colonização dos imigrantes alemães nas sua agricultura familiar dedicada à cultura diversificada de produtos agrícolas. Os primeiros salesianos procedentes do Uruguai instalaram-se em Bagé em 15 de fevereiro de 1904. A administração municipal, interessada em promover o ensino elementar e médio ofereceu aos padres uma área no centro da cidade com a finalidade de fazer funcionário um colégio de nível médio. O Colégio Nossa Senhora Auxiliadora começou as suas atividades em 1906, sob a responsabilidade do primeiro diretor na pessoa do Pe. André Dell Oca. O bispo confiou-lhes a paróquia Nossa Senhora Auxiliadora além de capelanias e outras tarefas paroquiais. Só por curiosidade. Na sua chegada o Pe. Roberto Germano contava com um pouco mais de 20 anos e nunca se afastou da cidade até seu falecimento aos 94 anos. Mas, há uma outra coincidência entre atividade dos salesianos em Bagé e os jesuítas em São Leopoldo e Porto Alegre. Em 1903 duas irmãs franciscanas visitaram Bagé com o intuito de ver as possibilidades de fixar um posto permanente para cumprir a missão da congregação na educação da juventude feminina. Para encurtar a história em Bagé repetiu-se, embora três décadas depois, a história de São Leopoldo. Em 9 de março de 1905 o Colégio Franciscano Espírito Santo abriu as portas para receber as jovens desejosas de conquistar uma formação de nível médio. Somou-se assim à formação ética e religiosa da juventude masculina à um nível igual a formação da juventude feminina como tinha acontecido e continuava acontecendo em São Leopoldo e Porto Alegre. Não deixa de ser uma lástima que os historiadores da educação de hoje costumam avaliar com sérias restrições e, não poucos, com críticas ferozes os conteúdos e métodos pedagógicos daquelas instituições que formaram várias gerações de cidadãos íntegros, profissionais de alta qualificação, homens públicos comprometidos com o bem comum. Não é aqui o lugar par ampliar e aprofundar esse tema mas para chamar a atenção que se recupere esse período por meio dissertações de mestrado, teses de doutorado e ou outras pesquisas sérias e isentas do politicamente correto. Não passa de um dever de justiça preencher com a devida objetividade essa lacuna e cantar um hino de louvor às centenas de religiosos e religiosas anônimos empenhados em consolidar os fundamentos da educação não só nos centros urbanos como também no interior agrário e pastoril.

Na manhã seguinte cedo rezei a missa na igreja matriz vizinha do colégio, também sob a responsabilidade do padres salesianos. Depois do desjejum com os hospedeiros, acomodamos os nossos pertences na Wemaguete para enfrentar a estrada de chão batido com destino a Alegrete.

Alegrete como Bagé e muitas outras cidades maiores e menores do centro e sudoeste do Estado, vem a ser uma representante emblemática do resultado dos estancieiros de descendência açoriana, donos dos rebanhos de centenas de milhares de cabeças de gado que geraram por muitas décadas a riqueza que sustentou o Rio Grande do Sul, garantiu-lhe a hegemonia social, econômica e política no nível estadual e, em boa parte nacional. Só um exemplo. Osvaldo Aranha, chanceler brasileiro na ONU em 1948 defensor da criação do Estado de Israel foi filho de Alegrete. Pela meia tarde chegamos à cidade e procuramos a casa paroquial. O Berensen como de costume foi procurar um hotel para pernoitar. O Alcides e eu que éramos padres fomos recebidos cordialmente pelo pároco que nos ofereceu pernoite na casa paroquial. A conversa prolongou-se noite adentro. Lá pelo fim da tarde apareceu o Pe. Paulo Aripe, conhecido em todo o Rio Grande do Sul como o “Padre Potrilho. Vinha da celebração de um casamento. Todo alvoroçado contou que, depois da cerimônia religiosa levou os noivos e padrinhos para a sacristia par assinar os documentos prescritos pelo Direito Canônico. Na ocasião constatou que o noivo na verdade não era o de verdade, mas o irmão do mesmo. Aconteceu que o noivo verdadeiro estava cumprindo o serviço militar e nessa situação impedido de casar antes da baixa no quartel. Por isso, credenciou o irmão para representá-lo na cerimônia religiosa. O Pe. Potrilho estava confuso e não sabia o que fazer, ainda mais porque fora convidado para o jantar comemorativo num clube da cidade. Recorrendo aos meus conhecimentos do Direito Canônico que acabara de estudar na Teologia, chegamos a uma conclusão que o tranquilizou. Antes do jantar convidaria os noivos, desta vez o verdadeiro, junto com os padrinhos, para se retirarem discretamente para um recinto reservado do restaurante onde receberia o compromisso matrimonial dos noivos e repetiria a bênção nupcial, depois das assinaturas dos noivos e testemunhas prescritas pelo ritual. Não havia nada de errado nesse malabarismo canônico pois, na verdade a Igreja exige a presença de um sacerdote no matrimônio religioso na condição de testemunha que legitima o compromisso matrimonial assumido pelos noivos perante a Igreja.

Não posso deixar de registrar a minha admiração pelo Pe. Potrilho porque, em parceria com o Pe. Zanella, ter inserido a missa na tradição gaúcha sem desfigurar a característica sacramental tradicional. A “missa crioula” preservou o sentido teológico além do ritual litúrgico oficial da Igreja. Acontece que o Concílio vaticano II substituiu mais tarde o Latim como língua litúrgica obrigatória pelas línguas que os católicos dos mais diversos países falavam e entendiam. Eu da minha parte que me ordenei sacerdote em dezembro de 1962, celebrei as missas ainda em latim nos primeiros um ou dois anos. O padre Potrilho com sua missas crioulas não só adotou o português como língua litúrgica como também deu nomes familiares aos gaúchos à Santíssima Trindade e a Nossa Senhora. Deus vem a ser o “Pai Celeste”, Jesus Cristo o “Divino Tropeiro”, o Espírito Santo o “Divino Candeeiro” e Nossa senhora a “Primeira Prenda do Céu. Durante a celebração da missa um lenço branco dos Chimangos entrelaçado com num lenço vermelho dos Maragatos costumava fazer parte dos enfeites significando que, como cristãos católicos, todos eram irmãos, apesar de um passado marcado pelas guerras fratricidas e as degolas em massa, que mancharam a história do Rio Grande do Sul no final do século XIX e na revolução de 1923. A “missa crioula” foi aprovada em 1967 pelo então papa Pulo VI. O Pe. Potrilho destacou-se também como escritor. Entre suas obras destaca-se “A Igreja dos Galpões”. Nunca vou esquecer as horas agradáveis e, de modo especial, instrutivas com aquele padre ao mesmo tempo um apaixonado pela igreja e pelas características e tradições de seu povo.

A estação seguinte da nossa vigem veio a ser Sant Ana do Livramento e Rivera do outro lado da fronteira com o Uruguai. Como é do conhecimento geral as duas cidades formam, na verdade, uma unidade urbana dividida pela linha de fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai passando pela praça principal. As irmãs que administravam o hospital ofereceram o pernoite nas dependências da instituição. Na manhã seguinte rezei missa na capela do hospital para em seguida darmos uma caminhada pela cidade. Uma das curiosidades foi naturalmente a visita à praça e o marco de fronteira no meio dela. Como a nossa intenção não foi fazer compras a circulada por Rivera teve o sabor de ter transposto a fronteira de dois países com a sensação de ter estado no “estrangeiro”, como tinha sido no Chuí e Jaguarão, ambas na fronteira do Uruguai com o Rio Grande do Sul. Ainda no mesmo dia seguimos viagem até Uruguaiana.

Enquanto o Berensen foi providenciar pernoite num hotel o Alcides e eu tentamos a sorte no Seminário, vazio devido às férias dos seminaristas. O acolhimento não podia ter sido mais caloroso e fraternal. Em casa encontravam-se apenas dois ou três padres. O bispo D. Nadal estava viajando. Ao jantar com os padres do seminário seguiu uma conversa amena, porém, muito útil e instrutiva sobre as características, sociais, econômicas, políticas, culturais e, principalmente religiosas, daquele canto no extremo oeste do Rio Grande do Sul. Como não havia nada de impactante para visitar na cidade, resolvemos dar uma esticada até a Barra do Quaraí na embocadura com o rio Uruguai. Tomamos um delicioso banho no Quaraí e voltamos a Uruguaiana. Pela meia tarde resolvemos passar pela ponte internacional e jantar em Los Libres na Argentina. A Impressão dessa cidade não foi das melhores mas a janta que serviram foi de boa qualidade. Esperava mais de Los Libres em parte por ser a porta de entrada para a Argentina. Foi a quarta vez a pisar em solo estrangeiro, dessa vez na Argentina. Mas, depois de perto de 60 anos muita coisa deve ter mudado e para o melhor, com intensificação do tráfego de automóveis, ônibus e de modo especial transporte de mercadorias. Depois de pernoitar em Uruguaiana o destino do dia seguinte veio ser São Borja.

This entry was posted on quinta-feira, 7 de novembro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.