Da Enxada à Cátedra [ 60 ]

Até aqui a nossa viagem pelo sul e sudoeste do Rio Grade do Sul deixou a impressão de que as cidades que visitamos e as estradas que percorremos resultaram de um povoamento que não passa muito dos 200 anos. Seus protagonistas foram os imigrantes açorianos, seguidos dos imigrantes alemães, italianos, poloneses procedentes das demais regiões da Europa Central e do Norte. A viagem a São Borja nos levou para o noroeste do Rio Grande do Sul não só como referência geográfica mas, principalmente, para um cenário histórico único. São Borja foi fundada em 1687 pelo jesuíta espanhol Francisco Garcia que a batizou com esse o nome em homenagem ao terceiro superior geral da Companhia de Jesus, São Francisco de Borja. O desenho do brasão do município sintetiza a história das sete missões dos missionários jesuítas em território que passou para a história como a Região das Missões. Sobre um fundo vermelho (simbolizando o sangue dos guaranis) destaca-se em ouro a Cruz de Lorena, também, conhecida como Cruz de Caravaca, ou Cruz da Borgonha. São Borja também, é conhecida modernamente como a terra dos Presidentes – Getúlio Vargas e João Goulart – a capital do Fandango - o berço do Trabalhismo. Hoje manadas de gado pastam nas estâncias que cobrem esse território que os livros de história e o entendimento popular costuma chamar simplesmente “Região das Missões”, para distinguir do Alto Uruguai e as outras em que o Estado costuma ser dividido. Entrando em São Borja abre-se ao forasteiro a porteira para um território de um significado único para o Rio Grande do Sul e, por extensão para o sul do Brasil, o Uruguai, o norte da Argentina e o sul do Paraguai. Referimo-nos o projeto civilizatório dos missionários jesuítas, tão bem delineado por Ruiz de Montoia na sua obra clássica “A Conquista Espiritual”. Em resumo. Esse conceito e, consequentemente a sua materialização, consiste num modelo de organização sócio cultural no qual se procurava preservar a cultura, os valores, os fundamentos sociais e a própria religiosidade dos povos nativos, a não ser em questões de uma incompatibilidade irredutível da doutrina cristã e elementos da cosmovisão dos nativos. E, pode-se concluir, sem malabarismos teóricos, que essas incompatibilidades não impediram a construção de uma civilização em que a organização solidária material e espiritual, em que o uso e o fruto dos bens matérias, culturais, sociais e, acima de tudo, o bem comum servia de referência nas comunidades nativas sob a supervisão moderadora dos missionários. Recomendo aos historiadores contaminados com o vício de reescrever e reinterpretar esse modelo civilizatório como um genocídio cultural”, no caso do Riogrande do Sul, dos Guaranis, lembrarem que os missionários aprenderam a língua dos nativos, elaboraram gramáticas para facilitar o ensino nas escolas frequentadas pelos filhos dos guaranis. Conseguiram que as autoridades coloniais espanholas impedissem a intromissão e circulação nas reduções de comerciantes, exploradores e aventureiros de todo tipo e naipe. O mais importante, porém, foi que nas reduções jesuíticas no sul do Brasil, na Argentina e Paraguai estava em plena consolidação um protótipo muito próximo da “Utopia”, sonhada por Tomas Morus, porém, sem os desvios e aberrações cometidos por não poucos defensores da igualdade, liberdade e fraternidade. Nessas minhas recordações, melhor talvez crônica, vou restringir-me de modo especial às 7 reduções organizadas no Rio grande do Sul pelos missionários jesuítas entre 1626 e 1759, ano da sua expulsão dos domínios portugueses e em 1767 dos domínios espanhóis.

Para começar convém delimitar o panorama geográfico humano e cultural em que no século XVII e XVIII prosperou uma experiência, não utópica senão real, de uma sociedade fundamentada na solidariedade e compromisso mútuo. Na linguagem “politicamente correta” de hoje costuma-se discutir no nível acadêmico, em dissertações de mestrado, teses de doutorado projetos de pós doutorado, a versão que naqueles 140 anos, cometeu-se um genocídio sócio cultural e religioso ao “europizar” e “cristianizar” os Guaranis do noroeste do Rio Grande do sul, norte da Argentina e sul do Paraguai. Visto e analisado, porém, sob a perspetiva da Antropologia Histórica ou, se preferirmos pela perspetiva diacrônica da história, ou ainda pelo que nos ensinam os milhares de anos da história do homem e os milhões de encontros pacíficos e ou hostis, quando duas ou mais culturas diferentes se encontram, ocorre compulsoriamente uma aculturação. Elementos culturais dos mais diversos níveis fluem e refluem de uma tradição cultural para a outra num processo de amálgama no qual as partes inevitavelmente perdem mais ou menos elementos do seu perfil tradicional. Como esse processo costuma envolver tradições culturais, valores, costumes, hábitos, tecnologias, mais ou menos distantes, o parceiro culturalmente mais rico e tecnologicamente mais bem equipado, e porque não mais agressivo, leva vantagem. Aplicada à realidade histórica das missões jesuíticas do século XVII e XVIII no sul do Brasil, norte da Argentina e sul do Paraguai a metáfora da “amálgma”, percebe-se, sem muito esforço de imaginação, que o elemento “cristianização dos Guaranis” e a “guaranização do cristianismo”, resultou num perfil civilizatório no qual predominou evidentemente o europeu cristão católico trazido pelos missionários jesuítas. Essa realidade percebe-se tanto na organização social, política e econômica de cada redução em particular quanto na arquitetura, na organização dos aldeamentos, construção de igrejas e evidentemente na arte, principalmente a sacra. O arquiteto Nestor Torelli Martins, professor emérito de arquitetura da Unisinos escreveu sua dissertação de mestrado em História, focada no estilo das representações de São Miguel nas Missões. No museu Júlio de Castilhos pode-se admirar uma estátua de Nossa Senhora da Conceição entalhada num tronco de madeira com traços evidentemente indígenas. Os exemplos poderiam ser multiplicados às dezenas. Mas, não é aqui o lugar nem a intenção de aprofundar esse tema.

Os guaranis no caso viviam em tribos fundamentadas no compromisso e solidariedade comunal na qual os bens de subsistência, a caça, a pesca, os frutos silvestres, a matéria prima indispensável para a construção de suas habitações, a terra para produzir alimentos e criar animais domésticos, eram bens comuns aos quais todos tinham o direito de acesso. Depois da introdução do gado vacum pelo missionário Cristóvão de Mendonça em 1632 os rebanhos que se multiplicaram formavam um patrimônio coletivo. Não se conheciam donos de rebanhos de milhares de cabeças como propriedade particular ao modelo dos estanceiros modernos. O uso e o fruto das manadas que se multiplicavam nos campos da Vacaria do Mar do sudoeste e sul do Rio Grande do Sul e, mais tarde, na Vacaria dos Pinhais nos campos de Cima da Serra, vinha a ser administrado à maneira de cooperativas sempre sob a supervisão dos missionários. Estamos diante de um modelo de sociedade “solidária” não “socialista” no conceito corrente de hoje. O perfil da organização social, econômica, cultural e, porque não, religiosa das reduções fundamentava- se no “Solidarismo” o que significa umautêntica “terceira via” via entre o capitalismo liberal e capitalismo social, o perfil moldado entre os dois extremos igualmente concentradores da posse dos bens nas mãos de indivíduos legitimado pelo individualismo liberal e do outro lado pelo coletivismo nas mãos de uma nomenclatura dominante não menos voraz.

A história dos sete povos das Missões no noroeste do Rio Grande do Sul, começa em 1626. Naquele ano o missionário jesuíta Roque Gonzales vindo do Paraguai atravessou o rio Uruguai e começou a missionar os Guaranis da margem esquerda do rio. Em seguida outros missionários o seguiram. Com é sabido foi morto pelos índios na localidade de Caró junto com outro missionário Afonso Rodrigues, enquanto o terceiro João de Castilhos também foi martirizado nas imediações do Salto do Pirapó. A devoção desses santos mártires tem como referência o santuário de Caaró.

Depois desses episódios as missões no Rio Grande do Sul passaram por um período consolidação até 1641. Como já lembrado mais acima, foi nesse período, 1632 que o missionário Cristóvão de Mendonça introduziu o gado no Rio Grande do Sul. A partir de 1642, os bandeirantes procedentes de São Paulo lograram a expulsão dos jesuítas do território da margem esquerda do rio Uruguai e iniciaram um autêntica caça aos índios reduzindo-os à escravidão ou simplesmente os caçavam com se fossem animais. O período das razias dos bandeirantes no Rio Grande do Sul durou até a década de 1680. Daquela data em diante consolidaram-se os sete povos das Missões. Em ordem cronológica foram implantadas São Borja em 1682, São Nicolau em 1687, São Luiz Gonzaga e São Miguel Arcanjo, também em 1687, São Lourenço mártir em 1690, São João Batista em 1697 e, finalmente Santo Ângelo Custódio em 1707. Somadas às reduções do norte da Argentina e sul do Paraguai formavam um grande confederação, sob a orientação e comando dos jesuítas com sua sede regional (Província) em Assunción. É compreensível que essa “confederação”, em rápida consolidação, culturalmente exuberante como demonstram as ruínas hoje preservadas como patrimônio cultural da humanidade, fundamentada sobre um modelo sócio econômico orientado pelos princípios do Solidarismo, chamasse a atenção e preocupasse a coroa da Espanha. Em suas colônias da América do Sul esboçavam-se os contornos territoriais e político sociais do tamanho de um poder mais que suficiente para tornar-se um “Império”, melhor talvez uma “República”, capaz de competir com as demais colônias e com a própria matriz na Espanha. Sob o pretexto de acertar as eternas pendengas de fronteira entre a colônia portuguesa do Brasil e as colônias da Espanha, as cortes de Madrid e Lisboa, celebraram em 1750 o tratado em que a região dos Sete Povos passou para o domínio português em troca da Província Cisplatina. O Tratado de Madrid significou a sentença de morte para os Sete Povos no Rio Grande do Sul. Os jesuítas espanhóis foram expulsos do território. Uma parte dos índios os acompanhou para a margem direita do rio Uruguai, outros foram escravizados e os demais dispersos voltando gradativamente ao estilo de vida tribal de antes das missões. Houve também uma miscigenação de um considerável número com os portugueses que se apropriaram das reduções e das numerosas tropas de gado, resultando no tipo humano historicamente conhecido com“Missioneiro”. Em sua monumental obra “A fisionomia do Rio Grande do Sul”, o Pe. Balduino Rambo legou para a posteridade um resumo emocionante sobre a epopeia e a sina histórica que ainda hoje paira sobre aquela porção do Rio Grande do Sul. Permito-me reproduzir no original condensado na página 322 e 323 da obra que acabo de citar.

No limite norte dos campos de Itaroquen, nas coxilhas que formam o divisor de águas entre o Piratini e o Ijuí, onde o mato fechado e o campo gramináceo se mantem em distribuição equilibrada, está a região mais bela desta parte do planalto: bela na harmonia de suas formas, sagrada por suas tradições históricas.

Lá longe, onde o espelho límpido do Piratini se solda às ondas pardas do Uruguai, em 3 de maio de 1626, Roque Gonzales chantou no úbere solo da terra rio-grandense o mais feraz dos lenhos, a Cruz de Cristo. Ali no fundo, onde a mata se adensa nas abas de larga coxilha, em 1698, o missionário tirolês Antônio Sepp, erigiu a redução de são João Batista e fundiu o primeiro ferro em terras brasileiras. Mais adiante, a torre mirrada de São Miguel surge dentre espinheiros e umbus, símbolo grandioso da religião, civilização das missões guaraníticas. Santo Ângelo, São Luís, São Lourenço, levantadas nos pontos mais elevados da região, são outras tantas fortalezas que exalam o perfume da história.

A beleza das ruínas antigas, inexistentes no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal. Ali a fé cristã e a civilização europeia pela primeira vez firmaram pé nas plagas abençoadas do “Tape” misterioso. La, nesses campos marchetados de capões, viajaram, a pé e a cavalo, os Roque Gonzales, os Montoyas, os Romeros. Ali os selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguira dobrar. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de intenso dinamismo.

A melancolia da história paira sobre essa paisagem. Tudo quanto é belo é fadado a fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geográficas traçadas a esmo nos gabinetes de Madrid e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruína os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitadas com pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloquente, de acusação contra o mistério da humana iniquidade.

Na coxilha de Caaró, a capelinha erguida em 1936 designa o lugar onde o primeiro missionário do Rio Grande do Sul, Roque Gonzales, e seu companheiro Afonso Rodriguez sucumbiram aos golpes do tacape dos sicários de Nhençú; e o salto do Pirapó ainda murmura, na espuma de seus cachões, a prece derradeira de João de Castilho, trucidado nas suas margens. (até aqui a reflexão do Pe. Rambo).

E, para concluir as reflecções sobre a Sete Missões recomendo os dois parágrafos finais da introdução que escrevi para o meu livro sobre “O Projeto Pastoral dos Jesuítas no sul do Brasil”, publicado em 2013 pela Editora Unisinos.

Discute-se, como sempre se discutiu muito, a validade do modelo civilizatório cristianizador, ou retomando o conceito acima empregado, a “cristianização da guaranidade” ou vice versa a “guaranização do Cristianismo”, posto em prática pelos jesuítas dos séculos XVII e XVIII. Destacamos, de um lado, que não há palavras para ressaltar a excelência, a grandiosidade e mesmo a sublimidade desse empreendimento. Pode ser interpretado como um contraponto ao regime predatório e genocida dos colonizadores espanhóis e portugueses. Outros o condenam como uma intervenção não menos genocida de cunho cultural, com a imposição de uma cultura alienígena, valendo-se como arma e estratégia maior da evangelização e da conversão ao cristianismo. Condenam acidamente o projeto missioneiro argumentando que dessa forma não havia como salvar o cerne da cultura dos nativos as suas crenças religiosas e suas expressões, os costumes familiares, matrimônio, poligamia, antropofagia e outras mais. De qualquer forma, tratou-se de uma experiência muito menos traumática do que, por exemplo, aquela protagonizada pelos “heróis bandeirantes”, apresentados nas escolas como os grandes obreiros da consolidação das fronteiras definitivas do Brasil. O fato é que qualquer tentativa de reescrever a história daquele projeto missionário, adotando parâmetros e instrumentos teóricos e metodológicos hoje em moda, desanda necessariamente em interpretações na mínimo distorcidas ou equivocadas. De outra parte, os que só conhecem aplausos fariam bem em moderar o seu entusiasmo, pois, como obra conduzida por humanos, mesmo sendo jesuítas e missionários não passavam de homens, essa missão missioneira exibe as limitações, as falhas, os desvios, as aberrações os usos indevidos próprios das obras humanas. “Wo Menschen sind geht es menschlich zu” – mal traduzido – “Onde se encontram humanos, a sua maneira de agir trai sempre o lado humano”. Este provérbio originário da língua de um dos maiores missionários de então, Anton Sepp, poderia muito bem servir de baliza para quem se põe a refletir sobre essa experiência para dar o seu veredito. Na sua execução, sobressaem rasgos de heroísmo, ousadia, desprendimento, doação da própria vida em favor da causa maior que os motivava. Mas, o quotidiano mostra também evidências daquilo que os homens, também os mais idealistas e, porque não, os mais santos, têm de humano em interesses, pequenos vícios, intrigas, desentendimentos, conflitos pessoais.

Restaurada a Ordem dos Jesuítas em 1814, em poucos anos os discípulos de Santo Inácio de Loyola, como que emergindo revigorados de um “Retiro” compulsório de 40 anos, retornaram aos antigos cenários apostólicos dos Sete Povos acompanhando e liderando os colonizadores, não os guaranís, mas os imigrantes vindos da Europa Central e do Norte. Em lugar dos “Gonzales, dos Romeros, dos Montoyas de um século e meio antes, agora sãos os Lassberg, os Amstad, os Rick que, a cavalo ou a pé percorrem o mesmo cenário construindo os fundamentos de uma realidade humana das mais prósperas do sul do Brasil. Voltaram para retomar a obra civilizatória interrompida em 1773 com a supressão da Ordem. Lançaram as sementes de uma agricultura em constante aperfeiçoamento e ganhos em produtividade, criaram escolas, fundaram colégios, impulsionaram as missões populares, dedicaram-se à catequese, inclusive não faltaram iniciativas lideradas pelo Pe. Josepf Stüer para recuperar os descendentes dos índios dispersos pelo colapso dos Sete Povos. Foi em meio a essa dinâmica que desembarcaram no Rio Grande do Sul em 1849 os primeiros jesuítas de língua alemã da Ordem restaurada. Vieram com o objetivo principal para dar assistência pastoral aos núcleos de povoamento em formação, cuidar da educação religiosa e profana e dar andamento a audaciosos projetos de promoção humana, movidos pela mesma dinâmica missionária dos seus coirmãos espanhóis de um século e meio antes.

A nossa demora propriamente dita a São Borja durou menos de um dia. Depois de percorrer o centro da cidade não podíamos deixar de visitar o cemitério e o jazigo de Getúlio Vargas. Depois fomos encontrar-nos com o pároco cônego Hugo Hartmann que nos mostrou peças de arte sacra do tempo das missões num museu da paróquia.

Da Enxada à Cátedra [ 59 ]

Depois das visita a Rio Grande voltamos para pernoitar em Pelotas. Na manhã seguinte enfrentamos a então estrada de chão batido até Santa Vitória do Palmar e Chui na fronteira com o Uruguai. Não guardei na memória nada de importante da visita, como que em trânsito, por aquelas duas cidades. Registro apenas que na aduana do lado uruguaio o funcionário nos recebeu com uma metralhadora de mão ameaçadora depositada sobre a escrevaninha. Depois de dar uma circulada nos dois lados da fronteira fomos até a praia do Hermenegildo. Na ocasião não passava de um dessas praias do fim de mundo com poucos veranistas e uma infraestrutura precária. Resolvemos pernoitar aí mesmo. Meus dois companheiros acomodaram-se num hotelzinho que com muito favor poderia se classificado como tal. Eu, da minha parte, preferi passar a noite atrás de uma duna no abrigo de um touceira de maricá que protegia contra o vento. A temperatura estava amena mas aquele colchão de areia não favoreceu em nada os cochilos intermitentes daquela noite. Ao clarear do dia acomodamos nossos pertences na Wemaguete e retornamos pela mesma estrada de chão batido que liga Pelotas ao Chuí. A meio caminho mais ou menos visitamos uma granja de arroz e almoçamos num desses restaurantes de beira de estrada. Pernoitamos em Pelotas para no dia seguinte seguirmos até Jaguarão. Além de dar uma circulada para conhecer a cidade e a ponte internacional sobre o rio Jaguarão. Fizemos amizade com um fazendeiro, dono de uma moderna criação de vacas de leite de raça, com ordenha mecânica em estábulos bem planejados e uma higiene que não deixava nada a desejar. Convidou-nos para conhecer a residência da granja e, por fim, ofereceu-nos pousada para a noite. No dia seguinte seguimos sem incidentes viagem até Erval do Sul. O único fato digno de nota daquele percurso foi a caçada de uma enorme lebre saltando no meio da macega perto de uma cerca. O Berensen não duvidou. Estacionou a Wemaguete pegou uma calibre 12 e abateu o animal. Note-se que na época a concessão da posse e o porte de arma dependia apenas da assinatura de um documento pelo agente responsável da fiscalização das regras que disciplinavam o período e a quantidade de peças abatidas. A caça da lebre estava liberada para o ano todo pois, como espécie não nativa e livre de predadores naturais, temia-se que ocorresse uma multiplicação desordenada dela com o risco de se transformar numa praga como em outros países. Pelo fim da tarde entramos na cidadezinha do Herval e fomos pedir informação na casa paroquial sobre a possibilidades de pousada para aquela noite. Quem nos atendeu foi o pároco de sobrenome Persch natural de Bom Princípio mas integrado no clero da diocese de Pelotas. Recebeu-nos com toda boa vontade ainda mais ao saber que eu era natural de Tupandi, paróquia vizinha de Bom Princípio onde ele nascera. Há muitos anos pároco de Herval adquirira uma área de terra de bom tamanho especializada na produção de sementes de cebola. Confiou a administração daquela propriedade a um irmão casado que morava com ele na casa paroquial. E qual não foi a minha surpresa ao saudá-lo. Ele fora meu colega no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Desistira da carreira religiosa, casou e foi cuidar da produção de sementes de cebola do irmão pároco. Essas coincidências levaram ao convite para nós dois padres para pernoitar na casa paroquial. O Berensen como de costume alojou-se num hotel. Deixamos a lebre caçada na estrada para a cunhada do pároco. A conversa prolongou-se até altas horas da noite. Na manhã seguinte, depois de rezar a misa na matriz e um café reforçado apareceu o Berensen.

Acomodamos os nossos pertences na Wemaguete e seguimos viagem para Piratini. Depois de conhecer o centro com suas as construções históricas sede do governo da capital da efêmera República Farroupilha e a apresentação ao pároco, um frade franciscano, acampamos na margem do rio Piratini. De fato não me lembro de algo mais impactante nessa parada. Evidentemente valeu a noite na beira do rio como pausa bem vinda na viagem que nos esperava para os dias seguintes somada ao significado histórico da pequena cidade localizada no extremo sul do Estado.

Na manhã seguinte levantamos acampamento rumo a Bagé onde chegamos pela meia tarde. A primeira preocupação foi providenciar um local de pernoite. O Berensen alojou-se num hotel e o Alcides e eu conseguimos pousada no Colégio Auxiliadora sob a direção dos padres Salesianos. A acolhida não poderia teria sido melhor e mais fraterna. Até altas horas da noite o assunto predominante versou sobre a história e as atividades dos padres salesianos naquela cidade. Para começar o ensino médio, elementar e técnico, além da atividade pastoral e promoção de um clima religioso renovado, bem ao estilo da Restauração Católica, exibia um panorama muito parecido ao dos jesuítas em São Leopoldo, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. A diferença talvez mais interessante consistia no fato de os jesuítas terem vindo da Alemanha e os salesianos do Uruguai. Uma diferença de importância menor vem a ser a chegada dos salesianos 50 anos depois dos jesuítas e escolhendo como ponto de irradiação de suas atividades Bagé, uma cidade característica de estancieiros de origem açoriana, enquanto os jesuítas optaram por São Leopoldo, polo de irradiação da colonização dos imigrantes alemães nas sua agricultura familiar dedicada à cultura diversificada de produtos agrícolas. Os primeiros salesianos procedentes do Uruguai instalaram-se em Bagé em 15 de fevereiro de 1904. A administração municipal, interessada em promover o ensino elementar e médio ofereceu aos padres uma área no centro da cidade com a finalidade de fazer funcionário um colégio de nível médio. O Colégio Nossa Senhora Auxiliadora começou as suas atividades em 1906, sob a responsabilidade do primeiro diretor na pessoa do Pe. André Dell Oca. O bispo confiou-lhes a paróquia Nossa Senhora Auxiliadora além de capelanias e outras tarefas paroquiais. Só por curiosidade. Na sua chegada o Pe. Roberto Germano contava com um pouco mais de 20 anos e nunca se afastou da cidade até seu falecimento aos 94 anos. Mas, há uma outra coincidência entre atividade dos salesianos em Bagé e os jesuítas em São Leopoldo e Porto Alegre. Em 1903 duas irmãs franciscanas visitaram Bagé com o intuito de ver as possibilidades de fixar um posto permanente para cumprir a missão da congregação na educação da juventude feminina. Para encurtar a história em Bagé repetiu-se, embora três décadas depois, a história de São Leopoldo. Em 9 de março de 1905 o Colégio Franciscano Espírito Santo abriu as portas para receber as jovens desejosas de conquistar uma formação de nível médio. Somou-se assim à formação ética e religiosa da juventude masculina à um nível igual a formação da juventude feminina como tinha acontecido e continuava acontecendo em São Leopoldo e Porto Alegre. Não deixa de ser uma lástima que os historiadores da educação de hoje costumam avaliar com sérias restrições e, não poucos, com críticas ferozes os conteúdos e métodos pedagógicos daquelas instituições que formaram várias gerações de cidadãos íntegros, profissionais de alta qualificação, homens públicos comprometidos com o bem comum. Não é aqui o lugar par ampliar e aprofundar esse tema mas para chamar a atenção que se recupere esse período por meio dissertações de mestrado, teses de doutorado e ou outras pesquisas sérias e isentas do politicamente correto. Não passa de um dever de justiça preencher com a devida objetividade essa lacuna e cantar um hino de louvor às centenas de religiosos e religiosas anônimos empenhados em consolidar os fundamentos da educação não só nos centros urbanos como também no interior agrário e pastoril.

Na manhã seguinte cedo rezei a missa na igreja matriz vizinha do colégio, também sob a responsabilidade do padres salesianos. Depois do desjejum com os hospedeiros, acomodamos os nossos pertences na Wemaguete para enfrentar a estrada de chão batido com destino a Alegrete.

Alegrete como Bagé e muitas outras cidades maiores e menores do centro e sudoeste do Estado, vem a ser uma representante emblemática do resultado dos estancieiros de descendência açoriana, donos dos rebanhos de centenas de milhares de cabeças de gado que geraram por muitas décadas a riqueza que sustentou o Rio Grande do Sul, garantiu-lhe a hegemonia social, econômica e política no nível estadual e, em boa parte nacional. Só um exemplo. Osvaldo Aranha, chanceler brasileiro na ONU em 1948 defensor da criação do Estado de Israel foi filho de Alegrete. Pela meia tarde chegamos à cidade e procuramos a casa paroquial. O Berensen como de costume foi procurar um hotel para pernoitar. O Alcides e eu que éramos padres fomos recebidos cordialmente pelo pároco que nos ofereceu pernoite na casa paroquial. A conversa prolongou-se noite adentro. Lá pelo fim da tarde apareceu o Pe. Paulo Aripe, conhecido em todo o Rio Grande do Sul como o “Padre Potrilho. Vinha da celebração de um casamento. Todo alvoroçado contou que, depois da cerimônia religiosa levou os noivos e padrinhos para a sacristia par assinar os documentos prescritos pelo Direito Canônico. Na ocasião constatou que o noivo na verdade não era o de verdade, mas o irmão do mesmo. Aconteceu que o noivo verdadeiro estava cumprindo o serviço militar e nessa situação impedido de casar antes da baixa no quartel. Por isso, credenciou o irmão para representá-lo na cerimônia religiosa. O Pe. Potrilho estava confuso e não sabia o que fazer, ainda mais porque fora convidado para o jantar comemorativo num clube da cidade. Recorrendo aos meus conhecimentos do Direito Canônico que acabara de estudar na Teologia, chegamos a uma conclusão que o tranquilizou. Antes do jantar convidaria os noivos, desta vez o verdadeiro, junto com os padrinhos, para se retirarem discretamente para um recinto reservado do restaurante onde receberia o compromisso matrimonial dos noivos e repetiria a bênção nupcial, depois das assinaturas dos noivos e testemunhas prescritas pelo ritual. Não havia nada de errado nesse malabarismo canônico pois, na verdade a Igreja exige a presença de um sacerdote no matrimônio religioso na condição de testemunha que legitima o compromisso matrimonial assumido pelos noivos perante a Igreja.

Não posso deixar de registrar a minha admiração pelo Pe. Potrilho porque, em parceria com o Pe. Zanella, ter inserido a missa na tradição gaúcha sem desfigurar a característica sacramental tradicional. A “missa crioula” preservou o sentido teológico além do ritual litúrgico oficial da Igreja. Acontece que o Concílio vaticano II substituiu mais tarde o Latim como língua litúrgica obrigatória pelas línguas que os católicos dos mais diversos países falavam e entendiam. Eu da minha parte que me ordenei sacerdote em dezembro de 1962, celebrei as missas ainda em latim nos primeiros um ou dois anos. O padre Potrilho com sua missas crioulas não só adotou o português como língua litúrgica como também deu nomes familiares aos gaúchos à Santíssima Trindade e a Nossa Senhora. Deus vem a ser o “Pai Celeste”, Jesus Cristo o “Divino Tropeiro”, o Espírito Santo o “Divino Candeeiro” e Nossa senhora a “Primeira Prenda do Céu. Durante a celebração da missa um lenço branco dos Chimangos entrelaçado com num lenço vermelho dos Maragatos costumava fazer parte dos enfeites significando que, como cristãos católicos, todos eram irmãos, apesar de um passado marcado pelas guerras fratricidas e as degolas em massa, que mancharam a história do Rio Grande do Sul no final do século XIX e na revolução de 1923. A “missa crioula” foi aprovada em 1967 pelo então papa Pulo VI. O Pe. Potrilho destacou-se também como escritor. Entre suas obras destaca-se “A Igreja dos Galpões”. Nunca vou esquecer as horas agradáveis e, de modo especial, instrutivas com aquele padre ao mesmo tempo um apaixonado pela igreja e pelas características e tradições de seu povo.

A estação seguinte da nossa vigem veio a ser Sant Ana do Livramento e Rivera do outro lado da fronteira com o Uruguai. Como é do conhecimento geral as duas cidades formam, na verdade, uma unidade urbana dividida pela linha de fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai passando pela praça principal. As irmãs que administravam o hospital ofereceram o pernoite nas dependências da instituição. Na manhã seguinte rezei missa na capela do hospital para em seguida darmos uma caminhada pela cidade. Uma das curiosidades foi naturalmente a visita à praça e o marco de fronteira no meio dela. Como a nossa intenção não foi fazer compras a circulada por Rivera teve o sabor de ter transposto a fronteira de dois países com a sensação de ter estado no “estrangeiro”, como tinha sido no Chuí e Jaguarão, ambas na fronteira do Uruguai com o Rio Grande do Sul. Ainda no mesmo dia seguimos viagem até Uruguaiana.

Enquanto o Berensen foi providenciar pernoite num hotel o Alcides e eu tentamos a sorte no Seminário, vazio devido às férias dos seminaristas. O acolhimento não podia ter sido mais caloroso e fraternal. Em casa encontravam-se apenas dois ou três padres. O bispo D. Nadal estava viajando. Ao jantar com os padres do seminário seguiu uma conversa amena, porém, muito útil e instrutiva sobre as características, sociais, econômicas, políticas, culturais e, principalmente religiosas, daquele canto no extremo oeste do Rio Grande do Sul. Como não havia nada de impactante para visitar na cidade, resolvemos dar uma esticada até a Barra do Quaraí na embocadura com o rio Uruguai. Tomamos um delicioso banho no Quaraí e voltamos a Uruguaiana. Pela meia tarde resolvemos passar pela ponte internacional e jantar em Los Libres na Argentina. A Impressão dessa cidade não foi das melhores mas a janta que serviram foi de boa qualidade. Esperava mais de Los Libres em parte por ser a porta de entrada para a Argentina. Foi a quarta vez a pisar em solo estrangeiro, dessa vez na Argentina. Mas, depois de perto de 60 anos muita coisa deve ter mudado e para o melhor, com intensificação do tráfego de automóveis, ônibus e de modo especial transporte de mercadorias. Depois de pernoitar em Uruguaiana o destino do dia seguinte veio ser São Borja.

Da Enxada à Cátedra [ 58 ]

Viagem pelo Rio Grande do Sul

Na segunda metade de janeiro e primeiros dias de fevereiro de 1963 aproveitei o convite do sr. Jorge Berensen, chefe do escritório da Ferrostahl em Porto Alegre, uma empresa alemã empenhada nas instalação da metalúrgica “Aços finos Piratiny”. Esse senhor embora protestante, cultivava uma grande amizade com meu colega Alcides Giehl, coordenador da Faculdade de Ciências Econômicas, na qual eu coordenava o Departamento de Economia. Em meio a essas circunstâncias, isto é, como amigo de longa data do Alcides, somado ao envolvimento funcional com o coordenador na condição de chefe do Departamento de Economia, somado à participação dos projetos acadêmicos e de desenvolvimento do vale do Rio dos Sinos, aproximei-me também do sr. Berensen. Mais abaixo volto aos projetos que estavam sendo incubados e delineados pela Direção da Faculdade de Ciências Econômicas e do importante suporte logístico a partir do representante da empresa alemã, na época também prestando serviços na implantação do porto de Tubarão no Espírito Santo e da metalúrgica Mannesmann em Minas Gerais. Acontece que convidou o Alcides e a mim para acompanhá-lo numa viagem de carro pelo centro sul do Rio Grande do Sul. O roteiro por ele traçado começou em Porto Alegre pela Br 116 passando por São Lourenço, Pelotas, Rio Grande, Palmares, Chui e de volta a Pelotas, Jaguarão, Herval, Piratini, Bagé, Livramento, Alegrete, Urugaiana, São Borja, Itaqui, São Luiz Gonzaga, São Miguel das Missões, Sto. Ângelo, Sobradinho, Santa Cruz do Sul, Tabaí, Montenegro, até em casa.

Toda a viagem foi feita numa “Wemagete” da DKW pertencente ao Berensen. Não me lembro exatamente quantos dias durou a viagem. Antes de entrar em recordações propriamente ditas é oportuno lembrar que na época o asfalto terminava em Guaiaba e em todo o restante da viagem enfrentamos estradas de chão batido. Como era verão nas centenas de quilômetros percorridos não nos surpreendeu nenhuma chuva significativa. No começo da manhã lá por 15 de janeiro partimos de Porto Alegre. A primeira parada aconteceu em São Lourenço. Além de uma circulada pela cidade fomos recebidos pelo prefeito do município Oscar Westendorf, mais tarde um político influente como deputado estadual. A visita teve o objetivo de tomar contato com as características sócio econômicas, étnicas e culturais daquela região pois um boa parte dela fora colonizada por imigrantes alemães. O encontro com o prefeito não durou mais do que uma hora. Seguimos depois viagem até Pelotas. O Berensen providenciou o pernoite num hotel e o Alcides e eu na residência dos jesuítas. Na manhã seguinte, depois de rezar missa e tomado café, o Berensen veio nos buscar para darmos uma circulada por aquela cidade emblemática pela importância histórica na formação das bases econômicas, culturais e estratégicas do extremo sul do País, envolvendo as constantes escaramuças com o espanhóis na fixação definitiva das fronteiras. Além disso o padrão arquitetónico da cidade, principalmente da área central, testemunha da época em que Pelotas dominava, por assim dizer, o abate de gado, comercialização da carne e couros. Os imigrantes alemães que se fixaram em Pelotas não tardaram em estimular o comércio, artesanatos, além de ocuparem espaço como profissionais liberais: médicos, arquitetos, engenheiros. Merece destaque o fato de os grandes frigoríficos e abatedores costumarem descartar ossos, chifres, cebo, vísceras, etc. Artesãos vindos da Alemanha deram origem a toda uma rede de pequenas indústrias utilizando esses descarte como matéria prima para fabricar sabão, farinha de osso, pentes e outras utilidades tendo os chifres e ossos como matéria prima. Para mim como jesuíta e professor Pelotas vinha com significado histórico que marcou de forma significativa a elite social no final do século XIX e primeira quinzena do século XX. Por ocasião do nosso pernoite na residência dos jesuítas em 1963 eles cuidavam de capelanias e, principalmente, da capelania da Santa Casa. Os jesuítas não se esqueceram de Pelotas, no final do século XIX a segunda cidade mais importante do Rio Grande do Sul. Em 1895 fundaram o Colégio Gonzaga oriundo de uma escola que os jesuítas mantinham na cidade. Em 1907 o número de alunos subira para 319. Em 1905 o Gonzaga foi equiparado ao D. Pedro II. Encerrou suas atividades como consequência da Lei Rivadavia de 5 de abril de 1911, que privou os colégios da equiparação com o D. Pedro II.

Depois de um segundo pernoite em Pelotas, seguimos viagem até Rio Grande. A visita foi rápida, menos de um dia. Os poucos quilômetros que separam Rio Grande de Pelotas foram na época a única estrada pavimentada que percorremos no restante da viagem. Para aqueles que têm um mínimo de conhecimento da história do Rio Grande do Sul conhecem Rio Grande com seu porto que recua até período colonial e exerceu um papel decisivo na consolidação das fronteiras com as colônias sob o domínio espanhol, mais tarde, com as repúblicas do Uruguai e Argentina. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes do conhecimento das pessoas minimamente informadas sobre essa fase da história da região do Prata. Não vou me demorar também com considerações sobre a importância do Rio Grande e, de modo especial seu porto com sua localização estratégica. Estava em andamento a ampliação e modernização do porto para atender a estratégia do desenvolvimento do País no momento como embarque de exportação da produção agropecuária e importação de mercadorias que contribuem com um importante reforço do PIB do País como um todo.

Rio Grande com suas características geomorfológicas permitiu o acesso, como porto de entrada para o Rio Grande do Sul. Somava-se a isso a sua localização estratégica, junto com a ilha de Santa Catarina, na rota dos navios que desciam pela costa vindos do norte com destino ao Prata. O que, porém, merece destaque especial foi o papel que coube ao porto de Rio Grande como ponto de desembarque dos imigrantes alemães a partir de 1824. Na primeira etapa os veleiros e mais tarde os vapores que transportavam os imigrantes faziam a travessia do Atlântico até o Rio de Janeiro. De lá navios costeiros os levavam até o porto de Rio Grande. Subiam depois pela Lagoa dos Patos até o Guaíba e Porto Alegre para seguirem viajem pelo rio Dos Sinos até São Leopoldo, polo a partir do qual foram colonizando o vale desse rio, avançando sempre mais sobre as florestas virgens para o interior do Estado. Caminhando pelas ruas da cidade 140 anos depois do desembarque dos primeiros imigrantes alemães naquele porto, passou-me pela imaginação a extensão do significado daquele fato histórico. Procurei imaginar-me o ânimo daqueles homens e mulheres obrigados a deixarem suas querências seculares por absoluta falta de perspetivas de um futuro para seus filhos e netos. Com a certeza de nunca mais retornarem reuniam no cais do porto os poucos pertences que conseguiram trazer, junto com os filhos, geralmente pequenos, devem ter olhado com um misto de surpresa, apreensão e esperança aquele cenário em que prosperariam ou sucumbiriam os filhos e netos. Sabiam muito bem que os esperava um duro começo, que não os esperava um paraíso mas, em compensação um futuro que já não vislumbravam na pátria de origem. Imaginei o que deve ter passado pela mente e apertado o coração do meu trisavô Mathias e minha trisavó Susana com dois filhos pequenos tomando pé em fins de março de 1830, no chão em que nasceriam seus numerosos descendentes, hoje já na décima geração e encontráveis em praticamente todo o Brasil, com destaque para região sul. Como aconteceu em Pelotas estabeleceram-se em Rio Grande comerciantes, profissionais liberais, empresários imigrados com os colonos, influindo sensivelmente no perfil da sociedade da cidade portuária. A justiça manda destacar um outro elemento presente em qualquer centro urbano onde jesuítas alemães se encarregavam do atendimento religioso. Falamos da educação como ferramenta pastoral direta ou indireta. Mais acima destacamos o empenho na formação profana e religiosa no Colégio Gonzaga. Pois, em Rio Grande os jesuítas instalaram uma residência e a partir dela atendiam capelanias e hospitais. Puseram a funcionar o Colégio Stella Maris, mais tarde sob a direção do Pe. Reus passou a chamar-se Colégio Sagrado Coração de Jesus. Para concluir nossa visita a Rio Grande não posso deixar de mencionar deixar a fundação da Liga dos Operários Católicos por iniciativa do Pe. Reus que se informara ainda na Alemanha sobre esse tipo de organizações em pleno vigor e florescimento naquele país, Suíça e Áustria. Pode-se afirmar que foi a primeira organização de operários, embora confessional, criada no Brasil. Inspirado nessa organização o Pe. Leopoldo Brentano fundou, em 1932, os “Círculos Operários” que tiveram um desempenho marcante na organização dos operários no Brasil inteiro, ao ponto de coordenarem as organizações filiadas a partir da central sediada na capital do País. Quem estiver interessado sobre os detalhes dessa história protagonizada pelo Pe. Reus, recomendo a Biografia da minha autoria sobre ele, ainda não publicada de forma convencional mas, no formato de Eboock.

Da Enxada à Cátedra [ 57 ]

Depois do Natal foi a vez de rever depois de longos anos a minha querência, a minha Heimat lá no alto do Morro da Manteiga em Tupandi. Viajei os em torno de 10 quilômetros de Harmonia até a então vila de Tupandi de ônibus. Pedi emprestado um cavalo a um parente próximo e subi pela estrada de chão com suas curvas emblemáticas, o córrego saindo da mata virgem onde costumávamos descansar ao voltarmos da missa nos domingos, um paredão de rocha com fama de lugar misterioso durante a noite. Uma trilha na faixa de floresta virgem na encosta do morro transitável apenas a pé ou a cavalo terminava na moradia do meu tio Antônio, irmão do meu pai, passava perto do grande potreiro com uma monumental araucária solitária e a bela casa do Pedro Hensel e pouco adiante a moradia do Frederico Sehnem. Mais ou menos duzentos metros além uma porteira franqueava a entrada no curral de porcos. Grandes ameixeiras (nêsperas), uma enorme touceira de Três Marias à esquerda e, um pouco além a casa de madeira bruta na qual nasci, rodeada de camélias, o enorme plátano nos fundos e um majestoso guabiju poupado por meu avô quando abriu a primeira clareira na mata virgem para construir aquela casa. Hoje a casa já não faz parte da paisagem assim como o plátano, o guabiju, as laranjeiras, as camélias, os marmeleiros e tantas outras árvores que fizeram parte do cenário da minha infância. Chegando mais perto levei um choque. A cozinha construída separada como mandava o costume da época, ligada à casa propriamente dita por uma passagem com telhado, fora demolida. Muitos outros detalhes emblemáticos para a minha infância já não estavam lá. Dei-me conta então que uma parcela importante do chão onde minha existência deitara raízes já não existia mais. Não consegui, por mais que esforçasse, sentir-me em casa. Sentia-me um estranho, um forasteiro, um transeunte naquele cenário onde nem tanto tempo passado encontrava-me em casa – “Zuhause”. Meu sobrinho e família conversamos na cozinha instalada na peça que fora meu quarto de dormir. Faltou-me ânimo para percorrer as demais dependências, muito menos o velho sótão com um enorme baú de carvalho trazido ainda da Europa por meu bisavô materno. Temia surpresas que seguramente não deixariam de machucar.

Da “minha casa”, irreconhecível, da qual praticamente tudo que pretendia reencontrar só sobraram vestígios, fui pernoitar na casa da minha cunhada viúva, 100 metros adiante. No dia seguinte esperava um compromisso muito importante, pelo menos na época, isto é, dar uma instrução preparatória para o matrimônio de duas sobrinhas, a Helena e a Marta com os respetivos noivos,conhecida como a “instrução para noivos”. Como marinheiro de primeira água nessa função dei o que achei de melhor. De acordo com a prática usual da época a “instrução “ terminou com a confissão dos noivos. Os noivos seguiram seu caminho e eu voltei para pernoitar na casa da minha cunhada Apolônia viúva do meu irmão Raimundo. Na manhã seguinte foi a vez de subirmos a cavalo até a Linha Babilônia onde me cabia presidir o matrimônio das duas sobrinhas. Obedecendo ao costume da época a cerimônia foi integrado na liturgia da missa. Para mim foi um acontecimento muito gratificante presidir o duplo matrimônio de duas sobrinhas filhas do meu irmão Raimundo, meu inseparável parceiro e modelo, como irmão maior, na infância. Naquela data, faziam 8 anos que ele “passara para o outro lado do caminho” como diria Santo Agostinho e com certeza abençoou lá da outra dimensão suas filhas e futuras famílias, junto com meu pai, minha irmã Ana e o Pe. Balduino.

Seguiu um almoço melhorado, porém, simples como costumavam ser os almoços dos casamentos da época em que, no interior colonial, o compromisso familiar e comunitário, os costumes frugais, e autenticidade do relacionamento das pessoas, ditava o ritmo do quotidiano. Hoje as duas sobrinhas, a Marta e a Helena são viúvas e os filhos bem sucedidos porque lhes souberam dar a educação que herdaram dos pais e avós. Em novembro de 2012 voltei para a Linha Babilônia para dar um abraço de solidariedade por ocasião do velório do marido da Helena, faltando dois meses para celebrarem as bodas de ouro.

Depois de pernoitar de novo na casa da cunhada Apolônia desci na tarde do dia seguinte o Morro da Manteiga para me hospedar na casa paroquial e no dia seguinte, domingo, celebrar a missa para a comunidade na igreja matriz de Tupandi. Por minha surpresa encontrei no caminho, na entrada da vila, meu antigo professor José Brandt, da escolinha do Morro da Manteiga. Tive um choque. Visivelmente envelhecido sua reação foi de um encontro com um desconhecido. Esse homem que fora o líder da comunidade, o regente do coral, respeitado pela integridade de caráter, o responsável por meu entusiasmo pelo saber e grande incentivador para entrar no seminário, entrar na Companhia de Jesus em busca de sempre mais conhecimento, parecia a sombra do que fora. Na manhã seguinte celebrei a missa na igreja matriz e fiz uma homilia em alemão para os presentes do alto do emblemático púlpito mandado esculpir pelo Pe. Mathias Pfluger, fundador da paróquia e seu pároco por mais de 30 anos, e no qual pregaram Johannes Rick, Johannes Hann, Stephan Gotzmann e outros mais, responsáveis pelo perfil da religiosidade daquela comunidade, um modelo do autêntico catolicismo de 60 anos passados. Quando, depois daquela missa caminhei a pé até Harmonia, cerca de 8 quilômetros, acometeu-me a desagradável sensação de ter passado uma semana como forasteiro nos espaços, lugares e caminhos que foram o palco da minha infância.

Sem grandes novidades demorei-me mais alguns dias em Harmonia com minha mãe, o irmão e família. Voltei de ônibus a São Leopoldo para apresentar-me a meu superior. O reencontro não foi nada agradável pois, em tom de reprimenda lembrou-me que me tinha demorado por perto de uma semana além do que na época previa a regulamentação relativa a permanência com a família e na terra natal por ocasião da primeira missa solene.

Da Enxada à Cátedra [ 56 ]

Ano de 1962

O ano de 1962 veio a significar um marco que, apesar da correção radical da rota 10 anos mais tarde, foi de uma importância existencial difícil de avaliar. A docência na universidade não trouxe grandes novidades durante todo esse ano. Nas terças feiras à tarde meus alunos vinham do curso de Geografia, por sinal não passavam de uma dezena; nas quartas-feiras de manhã vinham do Curso de História; nas quartas-feiras à tarde do Curso de Ciências Sociais. Foi um ano tranquilo sob o aspeto acadêmico. Como estudante do terceiro ano de Teologia a lógica da formação do jesuíta previa a ordenação sacerdotal para o dia 7 de dezembro. Ainda no primeiro semestre, não me lembro exatamente da data, fui ordenado subdiácono. Em fins de novembro prestei o exame de Teologia com um ótimo resultado o que valeu continuar na “Teologia Maior” no quarto e último ano. Em começos de dezembro sobreveio a ordenação como diácono. E, no dia 7 de dezembro, o coroamento de 12 anos de vida religiosa como jesuíta, fui ordenado sacerdote junto com meus colegas na capela do Colégio Cristo Rei. O arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer, presidiu a cerimônia. Minha mãe, o irmão Bertoldo e o Pe. Roberto prestigiaram o acontecimento. Meus sobrinhos do Morro da Manteiga compareceram num ônibus alugado. Concluída a cerimônia litúrgica seguiram os cumprimentos do arcebispo, dos professores de Filosofia e Teologia, dos irmãos leigos, dos colegas de curso, amigos, para, por fim, reunir-me com minha mãe, meus dois irmãos e demais parentes e vizinhos presentes. Ao meio dia encontramo-nos no refeitório para o almoço festivo oferecido aos novos sacerdotes e seus familiares. Pela meia tarde minha mãe e o Bertoldo voltaram para casa na Harmonia e demais parentes no ônibus para Tupandi e o Morro da Manteiga. Quanto me recordo não apareceu nenhum dos meus colegas professores da universidade, nem uma manifestação de simpatia da parte dos meus superiores daquela instituição. Na manhã seguinte, 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, celebrei a primeira missa no altar mor da capela do Cristo Rei, tendo como assistente meu irmão, o Pe. Roberto.

Não me lembro ao certo do dia, se foi 22 ou 23 de dezembro, celebrei a primeira missa solene na matriz de Harmonia. Meu primo, o Pe. Germano, pároco da Glória em Porto Alegre, levou-me até lá. Esperavam-me minha mãe, o Bertoldo, o Pe. Roberto, o tio Roberto, irmão da mãe, sobrinhos e outros parentes. A cerimônia de recepção pela comunidade aconteceu às 15 h. na frente da igreja paroquial. Foi singela e sem o aparato que descrevi mais acima quando da primeira missa solene dos meus dois irmãos mais velhos, na terra natal de Tupandi. Como mandava o costume da época, minha mãe colocou uma grinalda de flores na minha cabeça. Entramos na igreja e depois da bênção Santíssimo, estava concluída a programação para aquela tarde de sábado. No final da tarde a mãe e familiares reunimo-nos na sombra das árvores no pátio da casa do Bertoldo para um chimarrão e uma conversa entre os familiares mais próximos. Uma visível atmosfera de melancolia, para não dizer tristeza fez com que aquele encontro, que deveria ser de festa, se gravou na minha memória como um momento de frustração. Sonhara a vida toda com aquele dia tendo como pano de fundo as primeiras missas solenes dos meus dois irmãos mais velhos. Começou pelo fato de o acontecimento não ter acontecido na terra natal, Tupandi mas em Harmonia, uma comunidade para quem eu não passava de um estranho e ela estranha para mim. Por não ter morado lá não conhecia quase ninguém. Meus conhecidos e amigos de infância residiam em Tupandi. Mas o fator mais determinante desse clima foi a ausência do meu pai, falecido em 1947, meu irmão Raimundo e minha irmã e confidente Ana, ambos falecidos em 1954, o Pe. Balduino falecido em setembro do ano anterior, o Fridolino morando lá longe em São João do Oeste, sem condições de estar presente devido à distância e à precariedade das estradas e meios de comunicação. Na manhã seguinte às 9 h. celebrei a primeira missa solene cantada em latim e gregoriano pois, ainda estamos no período pré conciliar. O Pe. Roberto esmerou-se num sermão simples, porém, carregado de significado por duas razões: pela reflexão que apresentou e por substituir o Pe. Balduino que tanto minha mãe, meus irmãos e familiares e não em último lugar a comunidade estava esperando e eu tinha escolhido para pregar naquela solenidade. Minha madrinha de batismo, Bárbara Both, presenteara-me com os paramentos vestidos na solenidade. A atmosfera que ofuscou e em parte frustrou a minha espectativa contou com mais um agravante. O pároco de Harmonia há muitos anos naquele posto muito pouco se empenhou para preparar os paroquianos para um acontecimento tão significativo para a vida religiosa comunitária, pelo menos naquela época. Tive a impressão que eu não passava de uma espécie de intruso pois, não era filho de Harmonia. Também o coral deixou muito a desejar. Soube mais tarde do Bertoldo que, por um nada o regente com o coral se negara a colaborar porque não tinham sido convidados para o almoço festivo. Acontece que nem minha mãe, nem o Bertoldo tinham condições de bancar um almoço para pessoas que não fossem parentes próximos. Conhecendo essa situação deixei para minha mãe a soma em dinheiro que parentes de mais posse me deram como presente e assim ajudar a cobrir a despesa com o almoço no salão dos Fink. Para a noite, no mesmo salão do Fink, meus sobrinhos tinham preparado um encontro aberto ao público com poesias, cantos, um teatrinho como encerramento. Em poucas linhas é nesses termos que me recordo do momento mais esperado e mais ainda, sonhado desde os anos da remota infância lá no Morro da Manteiga, quase um pesadelo depois uma noite mal dormida.

Véspera do Natal 24 de dezembro. Naquele remoto ano de 1962 ainda vigorava o costume de as pessoas se confessarem em peso em duas ocasiões: na véspera do Natal e na Quinta-Feira da Semana Santa. O pároco convocou-me para estar a postos no confessionário às 7 horas da manhã. Apresentei-me pontualmente e me deparei com uma fila de duas dezenas de penitentes esperando. Acomodei-me no confessionário munido de um contador de confissões, um aparelhinho acionado com o dedo depois de cada confissão. A soma tinha que ser anotada no livro de registros da paróquia. Tirando duas ou três interrupções de cinco minutos fiquei trancado naquele móvel abafado até a hora do meio dia, ouvindo os “pecados”, no mínimo 95% sem importância maior. Às 13 horas estava de volta para mais uma jornada até pelas 18. Ao sair da igreja para um rápido lanche, esperava uma viatura para levar-me até o “Gauereck”, hoje São José do Sul. Passei literalmente a noite inteira trancado no confessionário. Pelas 4 h. da madrugada o sono me derrubou e dei uma breve cochilada. O penitente esperou pacientemente e quando percebeu que me recompusera, educadamente perguntou: “padre, posso continuar?”. Às 8 h. celebrei missa na capela do Gauereck. Ao sair da capela uma viatura me esperava para às 10 h. celebrar outra missa na capela do Despique. Perto de meio dia me deixaram na casa do Bertoldo, desejei um feliz Natal para a minha mãe e ao Bertoldo e família. Depois do almoço minha mãe ofereceu-me a sua cama para dormir. Foi o meu batismo de fogo como sacerdote. Com meus 32 anos 4 horas bem dormidas na cama da mãe, estava pronto para outra. Nas entrelinhas percebe- se facilmente que o pároco se recolheu para sua casa canônica tranquila largando nas costas de um novato de primeira viagem a parte ingrata dos compromissos pastorais do Natal. De qualquer maneira sempre considerei esse episódio como mais uma parcela importante no delineamento da minha trajetória. Mesmo há mais de 50 anos afastado da condição clerical, lembro-me com carinho daquele tempo pois, tenho certeza, que contribuiu significativamente na minha postura perante as eventualidades da vida que iria enfrentar nas mais diversas situações posteriores.

Da Enxada à Cátedra [ 55 ]

Falecimento do Pe. Balduino Rambo – 12/09/1961

Para o segundo semestre esperava-me um autêntico temporal que repercutiria por muitos anos na minha jornada, tanto como docente na universidade, quanto como estudante de Teologia e não menos sobre a condição de jesuíta. No dia 11 de setembro pelo fim da tarde fui surpreendido com um telefonema do Colégio Anchieta informando que o Pe. Balduino fora encontrado sentado na sua mesa de trabalho, cabeça apoiada na mesa semi consciente. Foram-lhe administrados os sacramentos dos enfermos graves e internado no pavilhão Eliseu Paglioli junto à Santa Casa de Misericórdia, especializado no atendimento a pacientes acometidos de acidente vascular e outros problemas cerebrais e neurológicos. Uma combi do Cristo Rei levou-me até o hospital em Porto Alegre. Ao entrar no quarto deparei-me com um cenário que se fixou na minha memória com uma nitidez como poucas mais tarde. Lá jazia sobre a cama do hospital aquele homem dinâmico e indomável, cientista de renome internacional, professor catedrático da Universidade Federal do Rio Grande do sul, respeitado pelos alunos e colegas, amante da natureza e idealizador do Parque dos Aparados da Serra e da Fundação Zoo-botânica, diretor do Museu de História Natural do Estado, fervoroso defensor do seu amado povo colonial e sua cultura cujo futuro lhe rendia sérias preocupações e, sobretudo, meu irmão maior que me franqueara as portas para uma bela e frutuosa carreira como professor universitário. Demorei-me por uma boa meia hora junto a ele no quarto. Pelo que pude avaliar não me reconheceu. Passei a noite no Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias e na manhã do dia 12 de setembro desci até a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na época ainda situada na Paulo Gama. No caminho aproveitei para passar no hospital. O médico assegurou-me que durante a noite foram percebidas sensíveis sinais de melhora e a pressão voltara ao normal. Informei o diretor da Faculdade, prof. Luiz Pilla sobre a situação para, em seguida retornar ao Anchieta e aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Na portaria do Colégio encontrei o Reitor, Pe. José H. Nunes que, sem outro comentário, apenas disse: ele acaba de falecer. Soube depois que, logo após a minha visita, sobreviera um novo derrame, dessa vez fatal. Começaram então os preparativos para o velório na capela do Anchieta. Minha mãe e meus irmãos foram informados por telefone e lá pelo meio dia o corpo chegou à capela. Começou então o desfile dos professores da Universidade, alunos e ex-alunos, amigos e colaboradores na atividade científica, do Museu do Estado, da fundação do Parque dos Aparados da Serra da Fundação Zoo-botânica, da Sociedade União Popular, da SEF (Socorro à Europa Faminta), além de muitos outros. Pela meia tarde meu irmão Bertoldo trouxe a mãe. O velório ficou aberto a noite toda e a procissão de pessoas continuou ininterrupta até a manhã seguinte. Acompanhei a mãe até o Orfanato da Piedade nos fundos do Colégio Sevingué, onde as irmãs franciscanas providenciaram o pernoite. Na manhã do dia 13 o bispo auxiliar, D. Edmundo Kunz, o arcebispo não apareceu, celebrou a missa de corpo presente na catedral. Em seguida o cortejo fúnebre se movimentou até o cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Ao subirmos a meia dúzia de degraus para o cemitério o superior provincial dos jesuítas conversava em meio a gargalhadas sentado num dos degraus. Fiquei chocado, ainda mais que nem no velório no Anchieta aparecera, nem participara da missa de corpo presente na catedral. Outra surpresa desagradável estava por vir. Pedira ao regente do coral do Cristo Rei, por sinal um colega meu de Teologia, para cantar em alemão um canto tradicional para essa ocasião, em consideração à minha mãe que não entendia, muito menos falava português. O pedido foi ignorado e com isso privaram essa mulher viúva, mãe de três jesuítas e uma filha religiosa franciscana, de uma manifestação de valorização e carinho tão importante num momento como aquele. Sem querer veio-me à memória a inveja, o ciúme, a maldita invidia clericalis” que amargurou o relacionamento do Balduino com não poucos dos seus irmãos de ordem e terminou por um envelhecimento precoce. Nos registros do seu diário referências a essa situação tornam-se cada vez mais frequentes no decorrer da última década da sua vida. O mesmo pude notar nas conversas informais como irmão de sangue e de ordem religiosa. A negação de um canto em alemão para minha mãe fez-me relembrar a “suástica” acompanhando a minha foto no painel de boas-vindas aos novos teólogos no ano anterior. Guardo comigo uma foto tirada junto ao túmulo coberto de flores, depois de concluído o cerimonial litúrgico. Nessa fotografia aparecem os amigos e colaboradores do Pe. Balduino_ Alexander Gecke, Antônio Campani, Fritz Rotermund, Albano Volkmer, meu irmão Bertoldo, o Pe Roberto, minha mãe e eu.

O falecimento inesperado do Pe. Balduino resultou num impasse de não pequenas proporções na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras com a vacância da cátedra de Etnografia e Etnologia da qual ele fora o titular fundador. A congregação da faculdade composta pelos catedráticos, entendeu que o Pe. Pe. Ignácio Schmitz, docente desde 1959 e eu desde 1960, como assistentes carecíamos de experiência para assumir a cátedra. Nesse jogo entraram, sem dúvida também interesses pessoais de titulares de outras cátedras. Tinham em mãos uma bela oportunidade para acomodar um candidato de sua preferência. Não poucos nomes circularam nas altas rodas da faculdade, inclusive de docentes de outras universidades federais, como a do Paraná. No frigir dos ovos os senhores do Conselho da faculdade chegaram ao um acordo e propuseram o nome do Pe. I. Schmitz o mais antigo dos assistentes, para a promoção a catedrático. Opção foi aceita pelos altos escalões da universidade e o impasse resolvido. Acontece que tanto o Pe. Schmitz quanto eu trabalhávamos no regime de 12 horas e as demandas da disciplina pediam um reforço. De acordo com o ritual burocrático da contratação de novos docentes, o Pe. Schmitz convidou o prof. Sérgio Teixeira para preencher a vaga. Depois de dois semestres de experiência com Instrutor de Ensino Superior submeteu-se ao concurso prescrito e foi efetivado como assistente.

O segundo semestre de Teologia não trouxe grandes novidades. Fui aprovado com folga no exame final e, para 1962 continuei no nível da Teologia Maior. Como no verão anterior acompanhei meus colegas de teologia para uma temporada de duas semanas de férias no Morro das Pedras em Florianópolis. No dia 8 de dezembro o Ignácio Schmitz foi ordenado sacerdote. Convidou-me para as solenidades da primeira missa solene em Bom Princípio no domingo antes do Natal. Para o sermão festivo ele escolhera o Pe. Balduino, famoso pelas suas prédicas nessas ocasiões. A sua morte inesperada levou-o a optar pelo Pe. Emílio Hartmann coordenador pedagógico do Colégio Anchieta. Naquela ocasião hospedei-me na casa de um prima moradora de Bom Princípio.

O cenário político nacional foi sacudido no segundo semestre por um autêntico vendaval provocado pela espalhafatosa renúncia do Presidente da República, Jânio Quadros. Acontece que o vice-presidente João Goulart, o Jango, encontrava-se em viagem na China. O presidente da Câmara Rainieri Masilli, assumiu a interinidade como mandava a constituição. Lideranças políticas importantes, apoiadas por segmentos militares não menos decididos tentaram impedir a posse de Jango na sua volta da China. Sob a liderança de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, apoiado pelo comandante do Sul, general José Machado Lopes, desencadeou o movimento da “Legalidade” que se estendeu de 25 de agosto até 7 de setembro de 1961. Os quartéis do terceiro exército, com destaque para o Rio Grande do Sul, entraram em prontidão e mobilizados para enfrentar as tropas do segundo exército favoráveis ao impedimento do vice-presidente. O então décimo nono regimento de infantaria de São Leopoldo recebeu ordem de marchar em direção ao centro do País, para enfrentar as tropas que avançavam para o sul. Um ou dois colegas meus de teologia acompanharam a tropa na condição de capelães militares. Nesse meio tempo o Congresso Nacional em sintonia com o Alto Comando das forças armadas negociaram uma solução intermediária. Implantaram o Parlamentarismo e Jango assumiu na condição de Presidente e Francisco Brochado da Rocha como primeiro ministro. Um pouco mais de um ano depois, um plebiscito restaurou o regime presidencialista e Jango governou nessa condição até 31 de março de 1964, quando, em companhia de Leonel Brisola fugiu para Porto Alegre para organizar a resistência. Percebendo a inutilidade dessa empreitada em função da pressão militar, refugiou-se no Uruguai. O Congresso Nacional declarou vaga a Presidência da República e o presidente da Câmara, Reinieri Masilli assumiu provisoriamente como Presidente interino. No dia 15 de abril o Congresso elegeu o marechal Castelo Branco como Presidente. Computando as datas observa-se que o falecimento do Pe. Balduino ocorreu poucos dias após o episódio da Legalidade. Não é aqui o lugar para me demorar numa abordagem mais detalhada desse episódio. Inúmeros historiadores já se debruçaram sobre o assunto e, de mais a mais, impactou muito pouco, para não dizer quase nada, na minha rotina de estudante de teologia e docente na universidade.

Um detalhe que não posso deixar de lembrar foi a troca da batina clerical pelo clargyman há muito adotado pelos jesuítas norte-americanos. Em poucas palavras resumia-se num terno comum da moda, com um colete munido dum colarinho clerical que distinguia os religiosos católicos dos de outras confissões cristãs. O chapéu clerical jocosamente apelidado de “torrador de café” foi banido definitivamente entre os religiosos comuns. Continuou sendo emblemático para as categorias mais elevadas na hierarquia eclesiástica como bispos e cardeias. Meu primo Roberto, alfaiate em Porto Alegre, confecionou-me um terno de tergal cinza e o colete com colarinho clerical, o “Clergyman”. Lembro-me como se tivesse sido ontem que numa terça-feira depois do meio dia desci até o ponto de ônibus, atravessando a horta do Cristo Rei, onde hoje se localiza o Bairro Cristo Rei, até a altura do Centro Clínico Estadual, então “Alumínio Ecnômico de Augusto Meyer. Ao me apresentar aos alunos com essa metamorfose fui saudado com uma sonora salva de palmas. Tempos novos com seus prós e contras alinhavam-se na linha do horizonte da história, no meu caso, tanto na história da academia quanto na condição de religioso jesuíta. Remeto para mais abaixo a análise aprofundada dessa guinada com seus lances de maior significado.