Até aqui a nossa viagem pelo sul e sudoeste do Rio Grade do Sul deixou a impressão de que as cidades que visitamos e as estradas que percorremos resultaram de um povoamento que não passa muito dos 200 anos. Seus protagonistas foram os imigrantes açorianos, seguidos dos imigrantes alemães, italianos, poloneses procedentes das demais regiões da Europa Central e do Norte. A viagem a São Borja nos levou para o noroeste do Rio Grande do Sul não só como referência geográfica mas, principalmente, para um cenário histórico único. São Borja foi fundada em 1687 pelo jesuíta espanhol Francisco Garcia que a batizou com esse o nome em homenagem ao terceiro superior geral da Companhia de Jesus, São Francisco de Borja. O desenho do brasão do município sintetiza a história das sete missões dos missionários jesuítas em território que passou para a história como a Região das Missões. Sobre um fundo vermelho (simbolizando o sangue dos guaranis) destaca-se em ouro a Cruz de Lorena, também, conhecida como Cruz de Caravaca, ou Cruz da Borgonha. São Borja também, é conhecida modernamente como a terra dos Presidentes – Getúlio Vargas e João Goulart – a capital do Fandango - o berço do Trabalhismo. Hoje manadas de gado pastam nas estâncias que cobrem esse território que os livros de história e o entendimento popular costuma chamar simplesmente “Região das Missões”, para distinguir do Alto Uruguai e as outras em que o Estado costuma ser dividido. Entrando em São Borja abre-se ao forasteiro a porteira para um território de um significado único para o Rio Grande do Sul e, por extensão para o sul do Brasil, o Uruguai, o norte da Argentina e o sul do Paraguai. Referimo-nos o projeto civilizatório dos missionários jesuítas, tão bem delineado por Ruiz de Montoia na sua obra clássica “A Conquista Espiritual”. Em resumo. Esse conceito e, consequentemente a sua materialização, consiste num modelo de organização sócio cultural no qual se procurava preservar a cultura, os valores, os fundamentos sociais e a própria religiosidade dos povos nativos, a não ser em questões de uma incompatibilidade irredutível da doutrina cristã e elementos da cosmovisão dos nativos. E, pode-se concluir, sem malabarismos teóricos, que essas incompatibilidades não impediram a construção de uma civilização em que a organização solidária material e espiritual, em que o uso e o fruto dos bens matérias, culturais, sociais e, acima de tudo, o bem comum servia de referência nas comunidades nativas sob a supervisão moderadora dos missionários. Recomendo aos historiadores contaminados com o vício de reescrever e reinterpretar esse modelo civilizatório como “um genocídio cultural”, no caso do Riogrande do Sul, dos Guaranis, lembrarem que os missionários aprenderam a língua dos nativos, elaboraram gramáticas para facilitar o ensino nas escolas frequentadas pelos filhos dos guaranis. Conseguiram que as autoridades coloniais espanholas impedissem a intromissão e circulação nas reduções de comerciantes, exploradores e aventureiros de todo tipo e naipe. O mais importante, porém, foi que nas reduções jesuíticas no sul do Brasil, na Argentina e Paraguai estava em plena consolidação um protótipo muito próximo da “Utopia”, sonhada por Tomas Morus, porém, sem os desvios e aberrações cometidos por não poucos defensores da igualdade, liberdade e fraternidade. Nessas minhas recordações, melhor talvez crônica, vou restringir-me de modo especial às 7 reduções organizadas no Rio grande do Sul pelos missionários jesuítas entre 1626 e 1759, ano da sua expulsão dos domínios portugueses e em 1767 dos domínios espanhóis.
Para começar convém delimitar o panorama geográfico humano e cultural em que no século XVII e XVIII prosperou uma experiência, não utópica senão real, de uma sociedade fundamentada na solidariedade e compromisso mútuo. Na linguagem “politicamente correta” de hoje costuma-se discutir no nível acadêmico, em dissertações de mestrado, teses de doutorado projetos de pós doutorado, a versão que naqueles 140 anos, cometeu-se um genocídio sócio cultural e religioso ao “europizar” e “cristianizar” os Guaranis do noroeste do Rio Grande do sul, norte da Argentina e sul do Paraguai. Visto e analisado, porém, sob a perspetiva da Antropologia Histórica ou, se preferirmos pela perspetiva diacrônica da história, ou ainda pelo que nos ensinam os milhares de anos da história do homem e os milhões de encontros pacíficos e ou hostis, quando duas ou mais culturas diferentes se encontram, ocorre compulsoriamente uma aculturação. Elementos culturais dos mais diversos níveis fluem e refluem de uma tradição cultural para a outra num processo de amálgama no qual as partes inevitavelmente perdem mais ou menos elementos do seu perfil tradicional. Como esse processo costuma envolver tradições culturais, valores, costumes, hábitos, tecnologias, mais ou menos distantes, o parceiro culturalmente mais rico e tecnologicamente mais bem equipado, e porque não mais agressivo, leva vantagem. Aplicada à realidade histórica das missões jesuíticas do século XVII e XVIII no sul do Brasil, norte da Argentina e sul do Paraguai a metáfora da “amálgma”, percebe-se, sem muito esforço de imaginação, que o elemento “cristianização dos Guaranis” e a “guaranização do cristianismo”, resultou num perfil civilizatório no qual predominou evidentemente o europeu cristão católico trazido pelos missionários jesuítas. Essa realidade percebe-se tanto na organização social, política e econômica de cada redução em particular quanto na arquitetura, na organização dos aldeamentos, construção de igrejas e evidentemente na arte, principalmente a sacra. O arquiteto Nestor Torelli Martins, professor emérito de arquitetura da Unisinos escreveu sua dissertação de mestrado em História, focada no estilo das representações de São Miguel nas Missões. No museu Júlio de Castilhos pode-se admirar uma estátua de Nossa Senhora da Conceição entalhada num tronco de madeira com traços evidentemente indígenas. Os exemplos poderiam ser multiplicados às dezenas. Mas, não é aqui o lugar nem a intenção de aprofundar esse tema.
Os guaranis no caso viviam em tribos fundamentadas no compromisso e solidariedade comunal na qual os bens de subsistência, a caça, a pesca, os frutos silvestres, a matéria prima indispensável para a construção de suas habitações, a terra para produzir alimentos e criar animais domésticos, eram bens comuns aos quais todos tinham o direito de acesso. Depois da introdução do gado vacum pelo missionário Cristóvão de Mendonça em 1632 os rebanhos que se multiplicaram formavam um patrimônio coletivo. Não se conheciam donos de rebanhos de milhares de cabeças como propriedade particular ao modelo dos estanceiros modernos. O uso e o fruto das manadas que se multiplicavam nos campos da Vacaria do Mar do sudoeste e sul do Rio Grande do Sul e, mais tarde, na Vacaria dos Pinhais nos campos de Cima da Serra, vinha a ser administrado à maneira de cooperativas sempre sob a supervisão dos missionários. Estamos diante de um modelo de sociedade “solidária” não “socialista” no conceito corrente de hoje. O perfil da organização social, econômica, cultural e, porque não, religiosa das reduções fundamentava- se no “Solidarismo” o que significa uma autêntica “terceira via” via entre o capitalismo liberal e capitalismo social, o perfil moldado entre os dois extremos igualmente concentradores da posse dos bens nas mãos de indivíduos legitimado pelo individualismo liberal e do outro lado pelo coletivismo nas mãos de uma nomenclatura dominante não menos voraz.
A história dos sete povos das Missões no noroeste do Rio Grande do Sul, começa em 1626. Naquele ano o missionário jesuíta Roque Gonzales vindo do Paraguai atravessou o rio Uruguai e começou a missionar os Guaranis da margem esquerda do rio. Em seguida outros missionários o seguiram. Com é sabido foi morto pelos índios na localidade de Caró junto com outro missionário Afonso Rodrigues, enquanto o terceiro João de Castilhos também foi martirizado nas imediações do Salto do Pirapó. A devoção desses santos mártires tem como referência o santuário de Caaró.
Depois desses episódios as missões no Rio Grande do Sul passaram por um período consolidação até 1641. Como já lembrado mais acima, foi nesse período, 1632 que o missionário Cristóvão de Mendonça introduziu o gado no Rio Grande do Sul. A partir de 1642, os bandeirantes procedentes de São Paulo lograram a expulsão dos jesuítas do território da margem esquerda do rio Uruguai e iniciaram um autêntica caça aos índios reduzindo-os à escravidão ou simplesmente os caçavam com se fossem animais. O período das razias dos bandeirantes no Rio Grande do Sul durou até a década de 1680. Daquela data em diante consolidaram-se os sete povos das Missões. Em ordem cronológica foram implantadas São Borja em 1682, São Nicolau em 1687, São Luiz Gonzaga e São Miguel Arcanjo, também em 1687, São Lourenço mártir em 1690, São João Batista em 1697 e, finalmente Santo Ângelo Custódio em 1707. Somadas às reduções do norte da Argentina e sul do Paraguai formavam um grande confederação, sob a orientação e comando dos jesuítas com sua sede regional (Província) em Assunción. É compreensível que essa “confederação”, em rápida consolidação, culturalmente exuberante como demonstram as ruínas hoje preservadas como patrimônio cultural da humanidade, fundamentada sobre um modelo sócio econômico orientado pelos princípios do Solidarismo, chamasse a atenção e preocupasse a coroa da Espanha. Em suas colônias da América do Sul esboçavam-se os contornos territoriais e político sociais do tamanho de um poder mais que suficiente para tornar-se um “Império”, melhor talvez uma “República”, capaz de competir com as demais colônias e com a própria matriz na Espanha. Sob o pretexto de acertar as eternas pendengas de fronteira entre a colônia portuguesa do Brasil e as colônias da Espanha, as cortes de Madrid e Lisboa, celebraram em 1750 o tratado em que a região dos Sete Povos passou para o domínio português em troca da Província Cisplatina. O Tratado de Madrid significou a sentença de morte para os Sete Povos no Rio Grande do Sul. Os jesuítas espanhóis foram expulsos do território. Uma parte dos índios os acompanhou para a margem direita do rio Uruguai, outros foram escravizados e os demais dispersos voltando gradativamente ao estilo de vida tribal de antes das missões. Houve também uma miscigenação de um considerável número com os portugueses que se apropriaram das reduções e das numerosas tropas de gado, resultando no tipo humano historicamente conhecido com“Missioneiro”. Em sua monumental obra “A fisionomia do Rio Grande do Sul”, o Pe. Balduino Rambo legou para a posteridade um resumo emocionante sobre a epopeia e a sina histórica que ainda hoje paira sobre aquela porção do Rio Grande do Sul. Permito-me reproduzir no original condensado na página 322 e 323 da obra que acabo de citar.
No limite norte dos campos de Itaroquen, nas coxilhas que formam o divisor de águas entre o Piratini e o Ijuí, onde o mato fechado e o campo gramináceo se mantem em distribuição equilibrada, está a região mais bela desta parte do planalto: bela na harmonia de suas formas, sagrada por suas tradições históricas.
Lá longe, onde o espelho límpido do Piratini se solda às ondas pardas do Uruguai, em 3 de maio de 1626, Roque Gonzales chantou no úbere solo da terra rio-grandense o mais feraz dos lenhos, a Cruz de Cristo. Ali no fundo, onde a mata se adensa nas abas de larga coxilha, em 1698, o missionário tirolês Antônio Sepp, erigiu a redução de são João Batista e fundiu o primeiro ferro em terras brasileiras. Mais adiante, a torre mirrada de São Miguel surge dentre espinheiros e umbus, símbolo grandioso da religião, civilização das missões guaraníticas. Santo Ângelo, São Luís, São Lourenço, levantadas nos pontos mais elevados da região, são outras tantas fortalezas que exalam o perfume da história.
A beleza das ruínas antigas, inexistentes no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal. Ali a fé cristã e a civilização europeia pela primeira vez firmaram pé nas plagas abençoadas do “Tape” misterioso. La, nesses campos marchetados de capões, viajaram, a pé e a cavalo, os Roque Gonzales, os Montoyas, os Romeros. Ali os selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguira dobrar. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de intenso dinamismo.
A melancolia da história paira sobre essa paisagem. Tudo quanto é belo é fadado a fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geográficas traçadas a esmo nos gabinetes de Madrid e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruína os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitadas com pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloquente, de acusação contra o mistério da humana iniquidade.
Na coxilha de Caaró, a capelinha erguida em 1936 designa o lugar onde o primeiro missionário do Rio Grande do Sul, Roque Gonzales, e seu companheiro Afonso Rodriguez sucumbiram aos golpes do tacape dos sicários de Nhençú; e o salto do Pirapó ainda murmura, na espuma de seus cachões, a prece derradeira de João de Castilho, trucidado nas suas margens. (até aqui a reflexão do Pe. Rambo).
E, para concluir as reflecções sobre a Sete Missões recomendo os dois parágrafos finais da introdução que escrevi para o meu livro sobre “O Projeto Pastoral dos Jesuítas no sul do Brasil”, publicado em 2013 pela Editora Unisinos.
Discute-se, como sempre se discutiu muito, a validade do modelo civilizatório cristianizador, ou retomando o conceito acima empregado, a “cristianização da guaranidade” ou vice versa a “guaranização do Cristianismo”, posto em prática pelos jesuítas dos séculos XVII e XVIII. Destacamos, de um lado, que não há palavras para ressaltar a excelência, a grandiosidade e mesmo a sublimidade desse empreendimento. Pode ser interpretado como um contraponto ao regime predatório e genocida dos colonizadores espanhóis e portugueses. Outros o condenam como uma intervenção não menos genocida de cunho cultural, com a imposição de uma cultura alienígena, valendo-se como arma e estratégia maior da evangelização e da conversão ao cristianismo. Condenam acidamente o projeto missioneiro argumentando que dessa forma não havia como salvar o cerne da cultura dos nativos as suas crenças religiosas e suas expressões, os costumes familiares, matrimônio, poligamia, antropofagia e outras mais. De qualquer forma, tratou-se de uma experiência muito menos traumática do que, por exemplo, aquela protagonizada pelos “heróis bandeirantes”, apresentados nas escolas como os grandes obreiros da consolidação das fronteiras definitivas do Brasil. O fato é que qualquer tentativa de reescrever a história daquele projeto missionário, adotando parâmetros e instrumentos teóricos e metodológicos hoje em moda, desanda necessariamente em interpretações na mínimo distorcidas ou equivocadas. De outra parte, os que só conhecem aplausos fariam bem em moderar o seu entusiasmo, pois, como obra conduzida por humanos, mesmo sendo jesuítas e missionários não passavam de homens, essa missão missioneira exibe as limitações, as falhas, os desvios, as aberrações os usos indevidos próprios das obras humanas. “Wo Menschen sind geht es menschlich zu” – mal traduzido – “Onde se encontram humanos, a sua maneira de agir trai sempre o lado humano”. Este provérbio originário da língua de um dos maiores missionários de então, Anton Sepp, poderia muito bem servir de baliza para quem se põe a refletir sobre essa experiência para dar o seu veredito. Na sua execução, sobressaem rasgos de heroísmo, ousadia, desprendimento, doação da própria vida em favor da causa maior que os motivava. Mas, o quotidiano mostra também evidências daquilo que os homens, também os mais idealistas e, porque não, os mais santos, têm de humano em interesses, pequenos vícios, intrigas, desentendimentos, conflitos pessoais.
Restaurada a Ordem dos Jesuítas em 1814, em poucos anos os discípulos de Santo Inácio de Loyola, como que emergindo revigorados de um “Retiro” compulsório de 40 anos, retornaram aos antigos cenários apostólicos dos Sete Povos acompanhando e liderando os colonizadores, não os guaranís, mas os imigrantes vindos da Europa Central e do Norte. Em lugar dos “Gonzales, dos Romeros, dos Montoyas de um século e meio antes, agora sãos os Lassberg, os Amstad, os Rick que, a cavalo ou a pé percorrem o mesmo cenário construindo os fundamentos de uma realidade humana das mais prósperas do sul do Brasil. Voltaram para retomar a obra civilizatória interrompida em 1773 com a supressão da Ordem. Lançaram as sementes de uma agricultura em constante aperfeiçoamento e ganhos em produtividade, criaram escolas, fundaram colégios, impulsionaram as missões populares, dedicaram-se à catequese, inclusive não faltaram iniciativas lideradas pelo Pe. Josepf Stüer para recuperar os descendentes dos índios dispersos pelo colapso dos Sete Povos. Foi em meio a essa dinâmica que desembarcaram no Rio Grande do Sul em 1849 os primeiros jesuítas de língua alemã da Ordem restaurada. Vieram com o objetivo principal para dar assistência pastoral aos núcleos de povoamento em formação, cuidar da educação religiosa e profana e dar andamento a audaciosos projetos de promoção humana, movidos pela mesma dinâmica missionária dos seus coirmãos espanhóis de um século e meio antes.
A nossa demora propriamente dita a São Borja durou menos de um dia. Depois de percorrer o centro da cidade não podíamos deixar de visitar o cemitério e o jazigo de Getúlio Vargas. Depois fomos encontrar-nos com o pároco cônego Hugo Hartmann que nos mostrou peças de arte sacra do tempo das missões num museu da paróquia.