A compreensão de que a floresta é um organismo autônomo peculiar, foi pela primeira vez formulada por Alfred Möller. Teve como objetivo insistir no ponto de vista de que a floresta representa uma realidade biológica única, sui generis, em oposição àqueles que a simplificam, reduzindo-a a uma mera fornecedora de matérias primas e assim perdem de vista o todo. De tantas árvores e troncos já não se percebe a floresta. Na proposta de Möller nota-se claramente uma reorientação do foco da discussão. A avaliação biológica contrapõe-se à mecanicista utilitária e, ao mesmo tempo, propõe-se a superar e compensar as limitações da visão sociológica da floresta. Põe todo o peso na percepção holística em contraposição às tentativas parciais de dissecação anatômica das estruturas florestais e a identificação das partes.
A atividade florestal de caráter permanente lida com a floresta como se fosse uma entidade viva, uma unidade integrada por inúmeros órgãos, todos operando em conjunto, em regime de reciprocidade. (Wolfarth, 1953, p. 13-14)
A concepção organísmica da floresta conforme Möller conquistou adeptos entusiastas. Não tardou, porém, que se fizessem ouvir vozes e opiniões fortes apontando para os flancos vulneráveis. Uma dessas manifestações discordantes mais enérgicas foi a de Dengler, classificando-a como falsa, exagerada e passível de levar a conclusões equivocadas.
De qualquer forma a ligação é muito mais superficial do que num organismo propriamente dito. Os componentes da floresta não são órgãos no sentido estrito do termo. De outra parte a floresta não cresce de dentro para fora como um organismo, mas seus componentes encontram-se na sua origem numa dinâmica livre, de fora para dentro, como pode ser observado em qualquer formação de nova floresta. (Wohlfarth, 1953, -p. 14)
Parte de Fabricius o argumento mais contundente contra a concepção organísmica de Möller, observando que, quando se atribui à floresta a natureza de um organismo, transfere-se a ela um conceito inspirado no conhecimento da vida dos indivíduos em detrimento das partes constitutivas totalmente ignoradas. Seckholzer, citado por Wohlfarth, falando da floresta afirma que “ela é orgânica, isto é, una na sua formação, mas não organísmica, isto é, não um ser vivo”. Falta na formação da floresta o gérmen como potência do todo. A vida acontece por gênese, a floresta por síntese. Ou ainda. A floresta tem a capacidade de auto regular-se em condições normais em que as perturbações não tiverem ultrapassado um determinado limite, característica privativa dos organismos. Quando então se fala da floresta como um organismo não se entende um organismo individual, mas um organismo de nível superior. (cf. Wolfarth, 1953, p. 14)
Todas essas reflexões, concepções e formulações, permitem tirar algumas conclusões. Começa pelo fato de todas elas oferecerem mais ou menos elementos que iluminam a compreensão do que seja uma floresta. Uns mais do que outros aproximam-se do âmago da questão. Da grande diversidade de formulações, conclui-se que a questão não está definitivamente resolvida. Essa constatação significa que cada uma delas acrescenta mais alguma coisa. Aichinger fala em “organismo global” (Gesamtorganismus); Thienemann define a floresta como uma unidade biológica formada pela comunidade viva mais o espaço vital (Lebensraum). Expressões como “totalidade viva” (Ganzheit); “sistema, forma” (Gestalt), etc., mostram de um lado uma direção comum na qual se esboça a tentativa de definição que aproxima da natureza da floresta. Do outro lado a falta de consenso em torno de termo aceito por todos, prova que nem tudo está claro e resolvido. Qualquer uma das formulações contém muito de verdadeiro, deixando, contudo, margem a questionamentos.
Essas tentativas de encontrar um conceito que contempla os elementos essenciais que entram na definição do que é uma floresta, foram formuladas entre 1920 a 1940. Nesse período Ludwig von Bertalanffy consolidava sua “Teoria Geral dos Sistemas”, finalmente publicada em 1968, na versão original em inglês e em 1977 na versão em português, publicado pela Vozes de Petrópolis. Num apêndice da obra encontramos a definição lógico descritiva do que ele entende por sistema.
Trata-se de um campo lógico-matemático, cuja tarefa é a formulação e a derivação dos princípios gerais aplicáveis aos “sistemas” em geral. Desta maneira, torna-se possível a exata formulação dos termos totalidade e soma, diferenciação, mecanização progressiva, ordem hierárquica, finalidade e equifinalidade, etc., termos que tratam com “sistemas” e implicam na sua homologia lógica. (Bertalanffy, 1977, p. 333)
Submetendo os elementos que entram para dar sentido ao conceito de “sistema, constata-se que todos eles estão presentes quando se fala em floresta. Parece que o conceito de “organismo” complementado pelo de “sistema”, tem tudo para oferecer uma compreensão útil ao analisarmos as marcas que as florestas imprimem nas culturas. Pelo visto contemplam todos os elementos que de alguma forma tiveram papel importante na formação da identidade cultural. Começa pelas matérias primas, madeira, frutas, fibras, indispensáveis para a subsistência biológica. Passa pelos animais, pássaros, insetos, a microflora e microfauna, o clima, enfim todo o ambiente natural característico que abrigou o homem e suas culturas e moldou suas identidades étnicas. Em poucas palavras, todos esses e, certamente, muitos outros, configuram para o homem o espaço de suas vivências, o palco sobre o qual se desenrolou e se desenrola ainda a sua história, o entorno visível, material, concreto como o invisível e imaginário, que marca o cotidiano dos povos da floresta e perpassa toda sua maneira de ser e agir.
Como se pode ver, as florestas oferecem o ambiente natural que talvez reúna, numa síntese, praticamente todos os elementos que de alguma forma acompanham o homem na sua trajetória histórica e moldaram sua identidade e sua cultura. Em meio ao grande cinturão de florestas subárticas que cobriam e ainda cobrem vastas áreas do hemisfério norte, tanto na Ásia, quanto na Europa e na América, nas florestas temperadas e nas possantes florestas tropicais, gestaram-se dezenas de milhares de culturas, entre elas das mais importantes e mais decisivas, que moldaram a história da humanidade. Nas florestas os ciclos anuais e mensais adquirem significado todo especial. Nelas fervilha a vida numa abundância, numa profusão e numa variedade espantosa. Nelas brotam milhões de fontes, percorrem-nas córregos, arroios e rios sem conta. No seu interior escondem-se lagos misteriosos. Em suas planícies, montanhas e planaltos, a vegetação rasteira, os arbustos e os gigantes de floresta, exibem toda a sua exuberância, oferecem seus frutos e essências e convidam o homem a viver à sua sombra e ao seu abrigo, a fantástica história da sua existência. A prodigalidade da floresta garante ao homem o alimento, as matérias primas para construir seus abrigos, a segurança contra os inimigos e contra os próprios homens. Entre os povos das florestas revela-se com nitidez talvez maior do que em outras circunstâncias o convívio simbólico, a relação existencial do homem com seu habitat. As fontes tornam-se sagradas, nos lagos moram espíritos, deuses, fadas, duendes e muitos outros seres misteriosos e imaginários povoam a floresta e as grandes árvores transformam-se em símbolos. Os ciclos e a dinâmica que regem a dinâmica do multicolorido e multifacetado mundo animal e vegetal, terminam por determinar também a trajetória do homem que aí constrói a sua morada.
Pela sua própria natureza, as florestas oferecem um ambiente peculiar, formam uma “morada”, proporcionam um “estar em casa”, uma “Heimat”, uma “Querência” e transmitem a sensação de pertencimento a um todo mais amplo, mais vasto, mais universal, mais rico do que qualquer outro entorno geográfico.
As florestas existiram antes do homem e provavelmente continuarão a existir depois dele. Entre esses dois extremos situa-se o tempo em que o homem e as florestas foram obrigados a conviver. A floresta que no passado cobria o chão da nossa terra natal nada tinha de amigável. Era terrível e hostil. Do conflito originou-se, apos muitos desencontros, maus tratos e danos para os dois lados, a certeza: na terra há espaço tanto para o homem quanto para a floresta. Importa para o próprio homem que haja espaço para ambos. As florestas subsistem sem nós homens, não nós homens sem a floresta. (Horsmann, 1955, p. 5)
Em poucas linhas, e principalmente nas entrelinhas, o autor conseguiu condensar todo o potencial oculto nas entranhas de uma floresta. À primeira vista e ao primeiro contato ela assusta pela sua imponência e desperta sentimentos de temor perante o desconhecido que oculta e o mistério que a povoa. Um longo e penoso aprendizado se faz necessário até que o homem consiga estabelecer uma relação existencial de parceria com a floresta, para que o susto, quem sabe pânico do primeiro contato, evolua para uma convivência mutuamente útil, e finalmente, consolide uma síntese, uma simbiose entre a floresta, a alma do homem, sua cultura e sua história.
Como se pode ver é na trilha da literatura, e em especial da poética, em que o tema floresta aparece como fonte inspiradora rica e sempre presente. Conclui-se daí que nela se ocultam muito mais nuances e desdobram-se dimensões que o utilitarismo puro e simples, a percepção estática da curiosidade à procura de causas e efeitos, leis naturais, correlações e interdependências estão em condições de perceber, registrar e interpretar. Uexkühl fornece a dica para aprofundar mais um pouco a reflexão.
Embriagados pelo papel de senhores da natureza, esquecemo-nos de que, mesmo que tudo fosse obra das nossas descobertas, da nossa criação, a nossa tarefa na natureza não se resumiria em última análise nem em descobrir, nem em criar, mas que nós próprios somos descoberta e criação da natureza, a qual estamos em condição de usar mal, mas que somos tão pouco capazes de criar com as nossas condições físicas e espirituais. (Horsmann, 1955, p. 7)
Data do tempo do barroco a determinação dada por Christian V. von Schleswig-Hollstein em 1671, empenhado em impedir a destruição das florestas do ducado: “Para que com o tempo não desapareça uma das grandes maravilhas com que Deus brindou a natureza do nosso arquiducado. E Hans Carl von Carlowitz escreveu em 1708:
Escritores antigos e recentes testemunham que as belas florestas, também as grandes árvores excepcionalmente belas, sempre foram consideradas com grandes honras entre os nossos velhos alemães e seus vizinhos. Por isso, não é de admirar muito que a quantidade, a elegância e o tamanho de tantas árvores reunidas, além de reinar permanentemente um silêncio profundo e sombra escura, fossem tomadas por temor sagrado, atribuindo a esses lugares algo de divino. Entre eles milhões de troncos semeiam-se a si mesmos sem ajudar e sem serem ajudados. Plantam-se sem a ajuda do homem. Deus os semeia, planta, multiplica e os conserva, apesar de todos os obstáculos, intempéries e prejuízos. (Cf, Mantel, 1961, p. 12)