[ Reflexões ]

Flagro mais uma vez o Pe. Rambo numa caminhada solitária pela floresta das sequoias, dando vida e revestindo de símbolos os gigantes que o rodeiam e na penumbra dos quais dizia que se sentia pequenino e insignificante como um camundongo.

“Sem querer, a gente se vê em absoluto silêncio em meio à assembleia dos gigantes. Que cantos não teriam deixado os poetas e cantores do Velho Testamento, que nos falam com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos ciprestes do Monte Sião, se tivessem tido ocasião de escutar a voz de Deus nessas florestas. Quando Davi e Salomão cantavam seus salmos, quando Isaias anunciava a seu povo o advento do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos Tempos sentado no seu trono, sobre muitas dessas árvores já pesavam mais de mil anos. Quando no Gólgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: verdadeira árvore da vida da qual pendeu o Senhor em angústia mortal. O canto de luto das árvores do Paraíso, o canto da árvore da mitologia germânica, o canto da vitória da árvore da Redenção, vêm à memória do forasteiro numa caminhada solitária pela floresta” (Rambo, 2015,)

O Pe. Rambo cultivava um autêntico “caso de amor” pelo planalto rio-grandense, especialmente pelos Aparados da Serra. Renato Dalto resumiu magistralmente essa paixão: “Aí o maior símbolo da floresta é a araucária. Vista de baixo para cima, os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar o olhar em direção à terra para ver que há raízes fortes encravados no chão. Rambo costumava dizer que, nesse lugar, à sombra dessas árvores, era a sua pátria a terra. Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para entender Deus”. (Dalto – Tavares. Na Trilha do Pe. Rambo. 2007, p. 12.)

Parece que ficou claro de que na trilha da literatura, especialmente na poética, que o tema floresta aparece como fonte inspiradora rica e muito presente. Conclui-se daí que nela ocultam-se muito mais nuances e desdobram-se dimensões que o utilitarismo puro e simples, a percepção estática da curiosidade à procura de causas e efeitos, leis naturais, correlações e interdependências, estão em condições de perceber. Faz-se necessário aprofundar a reflexão sobre a floresta e, para começar, lembramos Thren von Uexkühl:

Embriagados pelo papel de senhores da natureza esquecemo-nos de que, mesmo que tudo fosse obra das nossas descobertas, da nossa criação, nossa tarefa na natureza não se resumiria  na análise, nem em descobrir, nem em criar, mas que nós próprios somos descoberta e criação da natureza, a qual estamos em condição de usar mal, mas que somos tão pouco capazes de criar com as nossas condições físicas e o nosso espírito. (Horsmann, 1955, p. 7)

Wilhelm Mantel em sua obra: Wald und Forst – Wechselbeziehungen zwischen Natur und Wirtschaft, publicado em 1961, relembra o que Hans Carl von Carlowitz escreveu em 1708:

Escritores antigos e recentes dão testemunho que as belas florestas, também as grandes árvores excepcionalmente belas, sempre foram tratadas com grandes honras entre os nossos velhos alemães e seus vizinhos. Por isso não é de se admirar que a quantidade, a elegância e o tamanho de tantas árvores reunidas, além de reinar permanentemente silêncio profundo e sombra escura, fossem tomadas por um sagrado temor, atribuindo a esses lugares algo de divino. (...) Milhões de troncos semeiam-se a si mesmos sem serem ajudados. Plantam-se sem a ajuda do homem.  Deus semeia, planta, multiplica e conserva apesar de todos os obstáculos, intempéries e prejuízos. (Mantel, 1961, p. 12)

E para fechar a série de manifestações que, quem sabe ajudam na tentativa de aproximação maior ao âmago complexo e misterioso do significado do conceito de floresta, lembramos Rosegger que afirma: “somente o homem solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e deixa apenas árvores para trás”. Ewelk opina: “Pois, a floresta não representa nenhuma alienação da vida. A floresta é vida intensa. E, para concluir o que pensa Riehl: “Também quando já não precisamos da madeira, utilizaremos a floresta e a floresta nos será útil. E se não precisarmos mais a madeira seca par nos aquecer por fora, tanto mais indispensável será a verde, viva e cheia de seiva”. (cf. Mantel, 1961, p. 12-13).

Depois do registro dessas opiniões, observações e interpretações, tentemos uma aproximação maior do conceito de floresta. Dependendo da perspectiva de que se olha e o interesse que move a análise, a compreensão que se tem da floresta e do conceito que se formula, vai de uma visão utilitária e mecanicista, até aproximar-se de uma concepção panteísta do mundo e da natureza. A magnitude do desafio que nos espera, aparece na teorização do problema por Dengels:

A floresta é uma comunidade viva composta por todas as formas e graus imagináveis de interdependências recíprocas, somadas à competição e à ajuda mútua sob todos os aspectos. Comandado pelo princípio do equilíbrio, o qual, sob a influência dos mais variados condicionamentos externos, incorpora constantemente formas mais ou menos definidas, para as quais, após perturbações e oscilações, a biocinose se orienta sempre de novo. (Wolfarth, E.  1953, p. 13)

Este tipo de comunidade de vida é tecnicamente definido como “biocinose”. No contexto em que o conceito foi criado e está sendo empregado, mostra que o significado é limitado. Restringe-se na sua versão inicial, à relação mútua que prospera entre os seres vivos no seio de uma comunidade desse tipo. Oferece, sem dúvida, uma compreensão muito mais abrangente e muito mais completa do que floresta como fábrica de madeira, refúgio de animais, abrigo do homem, como fator de equilíbrio climático e edafológico, ou de preservação de mananciais de água. Uma análise mais atenta deixa claro que algumas questões reclamam um aprofundamento maior. O conceito de “biocinose”, comunidade de vida é, por certo, útil e pode-se dizer até certo ponto fundamental. Oferece como que uma macro visão de ordem, de arquitetura integrada, de funcionalidade interna e complementar entre os inúmeros elementos que integram uma floresta. Contudo, apesar de todas as vantagens vem acompanhado de riscos e armadilhas nada desprezíveis.

Em primeiro lugar silencia ou desconsidera o lugar fundamental que, no caso, cabe, por ex., ao solo, ao ar, à temperatura, à topografia, à região climática, à regularidade e à definição bem demarcada das estações do ano, à composição, estrutura e disposição das rochas. Em segundo lugar atribui um peso demasiado à noção de “comunidade viva”. Além dessas há ainda as restrições à origem do conceito pois, foi emprestado da Sociologia e, por isso mesmo, pede precaução quando aplicado a floresta. Neste nível não poucos fatos e fenômenos acontecem à margem, senão apesar do conceito de “comunidade de vida”. Já em 1943 Fabricius alertou que o conceito é capaz de induzir ao equívoco.

Trata-se de uma definição de floresta que preocupa, porque cada membro dessa comunidade, exceto poucos casos de uma verdadeira vida em comunidade e alguns casos de parasitismo, cada integrante da comunidade está em perfeitas condições de levar vida autônoma e, conforme cada caso, associar-se a outros seres vivos. Acontece que acepção alemã do conceito de que cada membro de uma comunidade faz livremente sacrifícios pelo outro e lhe presta serviços, coisas que, em se tratando da floresta, não passam de um grande equívoco. Se o conceito não tivesse sido apresentado com o nome de “biocinose”, provavelmente não teria significado uma grande descoberta. Conclui-se daí que a floresta significa algo a mais, e como fato objetivo, situa-se além de uma simples comunidade de vida. Não poucos estudiosos tentam valer-se do conceito de “organismo” na tentativa de uma compreensão mais objetiva e mais completa da natureza da floresta. Lemmel fez a seguinte consideração: O que fica evidente na comunidade de vida, é o que aprece como somatória dos indivíduos justapostos. Mas as relações biológicas íntimas e a interdependência funcional, escapam de todo da percepção e são passíveis apenas de especulação. (Wolfarth, 1953, p. 13)

[ Reflexões ]

Reflexões sobre a floresta.

As florestas formam um ambiente natural que cobre grandes extensões em todos os continentes. As florestas tropicais da Ásia, América, África e Austrália, as florestas pluviais subtropicais no Brasil, as florestas temperadas e subárticas, as mais extensas do mundo, cobrindo grande parte do hemisfério norte, Ásia, Europa e América do Norte, assistiram o nascimento e consolidação de muitos povos e suas culturas. Pois, foi nessas florestas mistas da Europa Central e do Norte que aconteceu a gênese das culturas germânicas.  Por essa razão essa vasta área foi denominada de Germânia. Pela sua própria natureza as florestas oferecem um ambiente peculiar, formam uma “morada”, proporcionam um “estar em casa”, transmitem a sensação de pertencimento mais amplo, mais vasto, mais rico do que em qualquer outro meio geográfico. 

“As florestas existiram antes do homem e continuarão a existir depois dele. Entre esses dois extremos situa-se o tempo em que o homem e as florestas se vêm obrigados a conviver. A floresta que no passado cobria o chão da nossa terra natal nada tinha de agradável. Era temível e hostil. Do conflito, originou-se, após muitos desencontros e danos para os dois lados, a certeza de que na terra há espaço tanto para o homem quanto para a floresta. Para o próprio interesse do homem, importa que haja espaço para ambos! As florestas subsistem também sem nós, não nós homens sem a floresta”. (Horsmann, 1955, p. 5)

Em poucas linhas e, principalmente, nas entrelinhas o autor conseguiu condensar todo o potencial oculto nas entranhas de uma floresta. À primeira vista e ao primeiro contato ela assusta pela sua imponência e desperta sentimentos de temor perante o desconhecido que oculta e o mistério que a povoa. Um longo e penoso aprendizado mútuo se faz necessário até que o homem consegue estabelecer uma relação existencial com a floresta, para que o susto, quem sabe o pânico inicial, evolua para uma convivência mutuamente útil e, finalmente, se consolide uma parceria entre a floresta, a cultura e a História. Horsmann descreve a experiência vivida por seu pai quando ainda jovem, ao deixar a ilha de Heligoland e defrontou-se pela primeira vez com as florestas do continente:

Após poucos minutos de caminhada encontrava-me bem na entrada de florestas sem fim. As árvores elevavam-se à altura do farol da terra natal. Apesar de silenciosas falavam de alguma forma. Incontáveis as árvores o rodeavam, cercando-o pelos lados e o fechavam pelo alto. Tolhiam a visão e o apequenavam ao ponto de fazer escorrer o suor.  Para fora! Correndo livrou-se do sufoco. Somente fora, ao ar livre o peito tornou a encher-se. Meu pai costumava referir-se seguido a essa experiência com a floresta. Décadas foram necessárias para perceber que é possível descansar bem na sombra de uma árvore na floresta. (Horsmann, 1955, p. 6)

Impõe-se agora a pergunta de difícil resposta:

Afinal o que vem a ser uma floresta? Dependendo da perspectiva da qual se avalia, das intenções e interesses do espectador, do nível de leitura que é capaz de fazer, da intimidade ou distância, da atração ou temor do desconhecido, sua compreensão será mais pragmática, mais utilitarista, mais interesseira, mais sentimental, mais romântica, mais filosófica. O resultado pode ser uma sentença como: ‘A floresta é um pedaço de chão destinado a produzir madeira e todos os objetos que nela encontram a matéria prima”. (Horsmann, 1955, p. 6)

Acontece que a inegável utilidade da floresta é incapaz de ultrapassar sequer a epiderme dessa complexa realidade. Além e mais ao fundo dessa compreensão utilitária ocultam-se dimensões que um observador que se aproxima da floresta e com ela estabelece relações, como o cientista, o poeta, o artista, o ecologista, o místico, o filósofo, o teólogo, é capaz de experimentar ou de intuir. O madeireiro entra na floresta com seus instrumentos de trabalho, localiza a árvore que lhe oferece a madeira desejada. Uma preocupação o anima. Por abaixo o mais rápido possível o gigante que levou séculos para crescer, não se importando ou não suspeitando o que seu ato significa em meio aquela aparente confusão de troncos, galhos, arbustos, ervas, insetos, pássaros e animais. Esse nível de relacionamento com a floresta obviamente não tem condições de fornecer elementos, nem quantitativos, muito menos qualitativos, para formular um conceito de abrangência mínima.

O cientista entra na floresta e começa a observá-la com espírito e objetivos mais ambiciosos. Para ele a floresta não se resume naquela infinidade de troncos, cipós, árvores caídas, arbustos e ervas rasteiras. Para ele, a tudo isso subjaz um sentido, realiza-se um processo, cumpre-se uma finalidade. Desde os fenômenos e as realidades mais simples e mais singelas, até as mais grandiosas e espetaculares, os troncos gigantescos, a abóboda moldada pelas copas, a penumbra perpétua povoada por sons, ruídos, urros, gritos, gemidos, assobios e cantos, tudo deixa de ser um aglomerado no qual a multidão dos indivíduos mascara a harmonia e a percepção do todo. Pouco a pouco fica claro que:

A experiência vivida na floresta que oferece apenas proveitos imediatos, não responde a interrogação pela sua natureza. Aprende-se a entender que o chão, as plantas, os animais e um clima adequado, também fazem parte dessa realidade.  E fazem parte também as nuvens que velejam no alto, os raios do sol filtrados pelas copas das árvores, o tamborilar da chuva sobre as folhas e a neve que verga os galhos. Quando, finalmente soubermos de tudo que lhe pertence, será que então penetramos na natureza da floresta? E a que ponto tudo isso se encaixa na dinâmica do termo que avança sem conhecer descanso? (Horsmann, 1955, p. 6-7)

A busca pela natureza da floresta está completa? Satisfaz? Parece que não. A intuição nos sugere que falta algo, alguma coisa mais profunda, algo mais indevassável, para conferir ao conceito a sua plenitude. Sua compreensão exaustiva nos leva para além dos interesses dos que retiram da floresta as matérias primas para construir abrigos ou suprir a alimentação. Convencemo-nos também de que a curiosidade e os métodos dos cientistas conseguiram penetrar apenas até uma determinada profundidade. Acontece que a floresta é uma realidade que de alguma forma interessa a todos. No quotidiano das culturas que emergiram das florestas do mundo, ainda hoje flui a seiva vitalizadora e regeneradora haurida de suas entranhas fecundas e que continua lhes garantindo o fôlego para enfrentar e superar com sucesso as tempestades e calmarias de milhares de anos de história. O eterno e inexorável ciclo de germinar, nascer, crescer, florescer, amadurecer frutos, declinar e morrer, o interrupto vir e devir, fazem com que o homem se veja espelhado na floresta que o cerca e o sustenta. E, ao mesmo tempo, em que se faz um reconhecimento da floresta, esta lhe oferece todo um universo povoado por incógnitas, ameaças e mistérios. A literatura universal está repleta de referências a esta face mais íntima da floresta. Tácito ao descrever a Germânia assim se expressou: “No seu todo, essa terra é assustadora ou por suas florestas ou por seus pântanos”. Sêneca deixou registrado na sua ep. 14: “Ao te aproximares de uma floresta muito antiga formada por árvores vigorosas, na qual a proximidade sobrepõe um galho ao outro, a ponto de não se enxergar nem a luz nem o céu, a imponência, o silêncio e a penumbra te convencem de que algum  deus deve habitar nela”. E Bernardo de Claraval: “Acredita-me, eu mesmo o experimentei. Encontrarás mais para ser lido nas florestas do que nos livros. Árvores e pedras de ensinarão o que nenhum mestre é capaz de te transmitir”. A floresta serve também de fundo para os versos de Eichendorf em “Lorelei”: “A floresta é grande e estás sozinha, bela noiva. Conheces-me bem. Do alto do penhasco meu tranquilo castelo contempla o Reno. É tarde. O frio aumenta. Jamais sairás desta floresta”. Também os versos de Friedrich Rückert: Deparei-me com uma área coberta de floresta e um homem junto à caldeira. Com o machado em punho tomba uma árvore. Pergunto: Que idade tem a floresta Ele responde: A floresta é uma protetora eterna. Moro neste lugar há uma eternidade e as árvores continuam crescendo sem parar. Há 500 anos percorro este caminho”. E os versos de Anette von Dorste-Hülsdorf: “Como é assustadora a penumbra da floresta nos dias de bruma em novembro. Maravilhoso é o gemido dos galhos e o queixume do vento”. As folhas da floresta tornam-se cúmplices do homem nos versos de Eduard Morike: “Vós milhares de folhas da floresta sois testemunhas que beijei a boca da bela Rothraut”. O poeta teuto-brasileiro Hans Grimen, nascido em São Leopoldo, legou-nos uma metáfora tão rica quanto original, nos versos de uma poesia com o título: “Die Kirche im Wald” (A Igreja na Floresta). Nela a floresta transforma-se numa catedral. Em tradução livre:

Pôs-se de pé e subiu até o alto onde a estrutura se confunde com a penumbra das copas. Examina polegada por polegada as paredes cobertas de verde ao ponto de mal perceber os blocos de rocha avermelhada. As colunas redondas com capitéis formados pelos rabos dos macacos acocorados sob a pesada cumeeira e, por sobre o portal uma cruz de ametistas incrustadas na parede. O portal de entrada tem a soleira desgastada como se muitas pessoas passassem diariamente por ele. Fiquei com receio de cruzar com pressa por causa do tapete úmido e intocado estendido sobre ela. Afastado o último medo, entrei.  Um grande espaço se abriu. Encontro-me numa catedral. Na minha frente ergue-se o altar mor de pedra, sem toalhas e sem velas, nos nichos figuras imóveis de santos verdes, da cabeça aos pés e lá o Menino Jesus no colo da Mãe. Com a mão estendida, iluminado por uma claridade mística que penetra por todas as fendas da cobertura, oferece-me uma orquídea cor de fogo. São José com uma coroa de samambaias na cabeça reverencia a Rainha do céu. É assim com todos. A floresta os adorna com seus adereços. A atmosfera que envolve o recinto paralisa a tal ponto que meus passos me assustam e o eco reverbera de leve nas paredes. Olha para o alto à procura das ladainhas petrificadas do sacerdote e a oração dos fiéis, o incenso aqui queimado e que ficou retido em algum lugar da abóboda. Atenção. Algo se movimentou como se fosse o leve farfalhar dos enfeites. Foi um passarinho que bebeu na pia de água benta. Em vez do brilho de bandeiras amarelo vivo, balançam grinaldas e cipós com suas cores vivas pendendo da abóbada. (Em Amstadt. Cem anos de Germanidade, 2005, p. 400-401).


[ Reflexões ]

Até aqui tentamos esboçar em linhas muito gerais como aconteceu a síntese que resultou da busca do homem dos recursos para atender às demandas materiais e espirituais durante o Neolítico. O resultado foi a consolidação da identidade das culturas dos caçadores e coletores. As identidades étnico-culturais consolidadas no decorrer do Paleolítico, resultaram da relação existencial entre o homem e o meio contingenciado pela própria natureza dos fatos. O homem não vive, não sobrevive, muito menos prospera fora dos contextos geográficos que vai encontrando na sua expansão pelos múltiplos territórios que a superfície da terra lhe oferece. Num primeiro momento busca o que lhe é oferecido espontaneamente para sobreviver. A identidade étnica dos primeiros grupos e caçadores, pescadores e ou coletores, exibia as marcas evidentes da batalha travada com o entorno geográfico. Essa situação começou a melhorar na medida em que o homem se equipou com ferramentas e as foi aperfeiçoando e especializando. Aos poucos o “humano” foi-se impondo até aproximar-se do equilíbrio no qual o meio ambiente entrou com as matérias primas, os referenciais simbólicos e a maneira como o homem materializa seu imaginário e torna palpável seu universo mitológico e suas crenças. Orientado pelo instinto de sobrevivência o homem foi buscar na natureza os alimentos de que necessitava. E, desde muito cedo o próprio ato de alimentar-se, essencial par viver, ultrapassaria o simples ato instintivamente compulsório, para fazer-se acompanhar de procedimentos de natureza cultural: hábitos, costumes, proibições, tabus e outros. O ato de alimentar-se assumiu as características de um ritual. E não só o ato de alimentar como também os próprios alimentos passaram a integrar as culturas, revestidos de sacralidade, de poderes mágicos, afrodisíacos, religiosos ou maléficos.

A parceria do homem com a natureza ensinou ao homem caminhos, formas e alternativas de como melhor consolidar uma pareceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da própria história. E, nesse esforço, três desafios estimularam a criatividade. Em primeiro lugar, encontrar alimento e abrigo, assegurando a sobrevivência física. E segundo lugar, descobrir e aperfeiçoar tecnologias eficientes tornando mais fácil a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. O terceiro o mais importante de todos, consistiu no esforço de penetrar nos mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo para, desta forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência.

O convívio imediato, diuturno, íntimo, existencial com a natureza despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua vida desenrolava-se na mesma cadência, nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, alimentando suas crenças, sua religiosidade, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim, a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer,  animava-se e se personificava de acordo com seu significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades naturais e os fenômenos que as acompanhavam assumiam importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. E, em meio a esse processo de interação, de amálgama e de síntese, as culturas e identidades étnicas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.

[ Reflexões ]

A inteligência reflexa, porém, não só compensa a precariedade da especialização anatômico-fisiológica, como a transforma em trunfo para o sucesso na competição por espaços e na batalha pela sobrevivência. As mãos representam o que há de mais emblemático na falta de especialização anatômica. A rigor não passam de um equipamento que serve para tudo e, por isso mesmo, não serve para executar nenhuma tarefa especializada. Neste nível perde em competitividade para as garras de felino, as patas de um cavalo, as unhas de um tamanduá. Executam tarefas de qualquer um desses e outros animais, mas de forma precária e pouco eficiente. Paradoxalmente, entretanto, a falta de especialidade da mão, transforma-a na ferramenta ideal a serviço da inteligência reflexa. Sua versatilidade não conhece limites quando a seu serviço, exatamente por ser anatomicamente inespecífica. Treinada é capaz de executar os movimentos mais complicados e mais insólitos. Que extremidade de animal é capaz de dar conta da multiplicidade, da variedade e da habilidade dos movimentos que o violinista exige dos seus dedos e mãos ao executar uma peça de música. As papilas das pontas dos dedos denunciam irregularidades mesmo invisíveis a olho nu, numa superfície de papel, metal, madeira ou vidro. Acontece que o homem utilizando sua inteligência reflexa transformou, o que em muitos casos seria um estorvo, no trunfo maior da sua superioridade na batalha pela sobrevivência.

E, ao perceber as limitações da mão, não tardou que nossos mais antigos ancestrais concluíssem pela possibilidade de equipá-la com complementos artificiais para compensar sua precária eficiência quando desarmada. Começou, a partir daí, a caminhada vitoriosa do homem através dos milênios, desenvolvendo tecnologias cada vez mais eficientes. Encontrou no próprio entorno geográfico as matérias primas utilizadas para confeccionar os primeiros artefatos. É legítimo supor, sem grandes riscos de errar, que o homem de então se serviu de madeira, osso, chifre. Sendo materiais sujeitos a uma rápida destruição pelo calor, a umidade e ação mecânica da areia e a movimentação do solo, suas marcas apagaram-se sem deixar vestígios. Os artefatos mais antigos evidentemente manipulados por mãos humanas, são os instrumentos líticos. Resistem quase indefinidamente à ação das intempéries, ainda mais quando forem de sílex, vidro vulcânico e similares. Com eles é possível reconstituir a evolução, o aperfeiçoamento e a diversificação dos instrumentos. O artefato que poderíamos chamar de protótipo vem a ser o “machado de punho”. Para os nossos padrões é tosco na sua confecção e rudimentar e precário na sua eficiência. Examinado bem, entretanto, as múltiplas utilidades a que se destinava, foi o protótipo a partir do qual se derivou, nos milênios posteriores, a indústria de ferramentas, instrumentos, utensílios, implementos, destinados a compensar e superar a ineficiência anatômica e a falta de especialização da mão. Com o “machado de punho” foi possível enfrentar as tarefas mais elementares para melhorar as perspectivas de sobrevivência. Servia como instrumento para escavar, cortar, golpear, arremessar. Com ele trabalhava-se a matéria prima para a construção e instalação de abrigos, caçavam-se animais, escavavam-se raízes e tubérculos. Tornava mais fácil e eficiente a defesa contra animais selvagens e inimigos humanos e facilitava a confecção de vestimentas, enfim, permitiu ao homem da pré-história começar a longa e penosa jornada do controle e domínio do entorno geográfico. A partir dos machados de punho abriu-se o leque sem limites de possibilidades para a especialização de instrumentos e aperfeiçoamentos tecnológicos de lascamento por todo o Paleolítico e parte do Neolítico. Os artefatos e instrumentos diversificaram-se e especializaram-se em ritmo geométrico e as técnicas de lascamento atingiram níveis extremos de acabamento e refinamento. Com a entrada do Neolítico o polimento levou as técnicas da indústria lítica a esgotar suas potencialidades. Os instrumentos de madeira, osso e chifre dão conta de uma dinâmica paralela e semelhante a da utilização da pedra como matéria prima. E na medida em que a criatividade do homem foi aperfeiçoando as técnicas e melhorando a eficiência dos instrumentos de madeira, osso, chifre e pedra, descobriu outras matérias primas que aceleraram ainda mais o ritmo civilizatório. Primeiro foram os metais que se encontram em estado metálico natureza, como foi o caso do ouro e do cobre. Mais tarde os artesãos da época aprenderam a produzir bronze amalgamando cobre e estanho. Cada uma dessas conquistas serviu de estopim para uma nova revolução tecnológica, acompanhada por um salto na qualidade e, principalmente, na caminhada em busca do sucesso na luta pela sobrevivência.

Um outro lance decisivo na marcha do homem pelo controle sobre suas fontes de sobrevivência foi o uso do fogo. Importa pouco sabermos como o homem do paleolítico chegou a descobrir a utilidade prática desse elemento da natureza, como entrou em contato com ele e como descobriu as técnicas de o produzir artificialmente. É legítimo imaginar que o contato com o fogo aconteceu por ocasião de incêndios causados por raios ou erupções vulcânicas. Quando   e porque caminhos o homem chegou a produzir artificialmente o fogo permanece no terreno da especulação. De qualquer forma a descoberta dos meios e técnicas para produzir e controlar o fogo e canalizar suas potencialidades em favor da melhoria das condições de sobrevivência, significou um marco divisório sem precedentes, um transpor de “Rubicão”, um radical “antes e depois”, para o homem da pré-história. E pela dupla face de servir e ser útil quando sob controle e, ao mesmo tempo, representar uma fúria devastadora quando fora do controle, transformou-se num indicador de um patamar civilizatório mais avançado.  Avaliado pelo viés da utilidade injetou alento nas culturas que o adotaram em vários níveis que, combinados, foram determinantes na caminhada exitosa do homem pela história. Dois aspectos vitais para a sobrevivência foram especialmente favorecidos. Em primeiro lugar, todos os povos se beneficiaram ao terem acesso ao fogo. Os alimentos que até então eram consumidos “in natura”, de então em diante, cosidos, assados, defumados ou preparados de qualquer outra maneira com o auxílio do fogo, ganharam em sabor, gosto e conservação. Além disso o leque de possibilidades de alimentação foi ampliado e diversificado em muito. Basta lembrar que uma variedade enorme de frutos, raízes, tubérculos só são aproveitáveis como alimentos quando devidamente manipulados com o auxílio do fogo.

Em segundo lugar, para as regiões frias da terra, a descoberta e a manipulação do fogo  constituiu-se num fator de sobrevivência. Mais da metade das terras habitadas desde a pré-história localizam-se em latitudes com temperaturas que impedem a presença permanente do homem, a médio e longo prazo, sem um mínimo de proteção contra o frio. Acontece que exatamente essas regiões, pródigas em caça e pesca, sementes comestíveis como a bolota do carvalho, nozes, pinhões, cerejas, etc. etc., atraíram os caçadores, pescadores e coletores do Paleolítico. A proteção contra as intempéries, de modo especial as temperaturas baixas à noite e nos meses do outono, inverno e primavera, os obrigou a adotar toda uma tecnologia de confecção de vestimentas com peles de animais, instalar-se em abrigos naturais como cavernas ou recorrer a construção de abrigos, casa subterrâneas e outros com os materiais disponíveis. Tudo ficou mais fácil e, principalmente, mais eficiente no momento em que entrou em cena o fogo acompanhado de suas ilimitadas utilidades, tanto na preparação dos alimentos, quando no aquecimento das cavernas e abrigos artificiais.

O significado do fogo não se esgota na sua utilidade prática. Com sua “domesticação”, se é que se pode denominar assim a canalização dos potenciais do fogo em seu favor, os coletores daquela fase da história, dominaram um dos elementos mais úteis e, ao mesmo tempo, mais devastadores da natureza. O fogo sob controle é uma dádiva, um presente inestimável da natureza. Nada mais gratificante para o forasteiro do que refugiar-se do frio, da chuva e do vento, num abrigo aquecido por um fogão improvisado ou um singelo fogo de chão. Nada mais aconchegante e mais inspirador do que, numa noite de neve e geada, acomodar-se junto a um fogão de lenha ou uma lareira, curtir o calor amigo. Fogão, forno, lareira, integraram-se como elementos que o conceito de “lar”, “querência”, “home”, “Heim” e outros tantos moldados pelas milhares de culturas pelas quais se expressam as identidades étnicas. Pode-se afirmar que o fogo ao lado da água permeia a história das culturas e civilizações como um dos referenciais simbólicos mais presentes. Água benta, fontes que rejuvenescem, velas acesas, lamparinas, fogos simbólicos, tochas olímpicas, fogos de conselho, fogos de chão, o fogo sagrado vigiado pelas vestais em Roma, são apenas alguns exemplos mais conhecidos.

De outra parte o fogo fora de controle transforma-se num dos espetáculos mais assustadores e mais devastadores, experimentados pelo homem. Erupções vulcânicas, incêndios de florestas, casas em chama, os raios que assustam, lembram o homem da sua impotência e pequenez diante do poder da natureza.

E exatamente essa dupla face confere ao fogo significados que vão além da sua utilidade prática. A partir da sua descoberta e controle em períodos imemoriais até os dias de hoje, a sua presença é elemento obrigatório na composição das características étnicas. O fogo nas suas mais diversas manifestações, significados e simbolismos, perpassa todas as culturas e representa um componente sempre presente na síntese da identidade étnica.

[ Reflexões ]

Identidade e entorno geográfico

“Toda a cultura é síntese”, escreveu Alexandro Serrano Caldera. Por analogia, é lícito afirmar que toda “identidade é síntese” pois, os elementos que entram na composição da síntese cultural são os mesmos que definem o perfil da identidade étnica. Desta forma, cultura e identidade são os dois lados da mesma realidade. A cultura vem a ser o cenário sobre o qual, no qual e a partir do qual, se esboçam os traços que definem as identidades individuais e coletivas. Evidentemente essa afirmação implica num universo de desdobramentos que assumem características próprias e peculiares em cada caso particular. Uma observação superficial dificilmente perceberá afinidades ou parentescos mais significativos, por ex., entre a cultura dos patagônios da Argentina e dos tiroleses da Áustria; entre os esquimós do Alasca e os pigmeus de Angola; entre os escoceses e os nativos da Austrália. Há, porém, evidências inegáveis que apontam para uma unidade radical da espécie humana. O homem é uma espécie zoológica que exibe todas as características de natureza biológica inerentes a esse conceito. Existiu e existe uma única espécie como prova tanto a paleontologia humana, quanto os critérios usuais de classificação zoológica das raças humanas historicamente conhecidas, quanto o mapeamento do genoma humano. Uma identidade a nível taxonômico e a nível biogenético une, portanto, todas as raças humanas. 

A constatação que se acaba de fazer leva a uma conclusão importante quando se pretende estabelecer a extensão e os limites na formação da identidade étnica e cultural. O homem como espécie biológica insere-se ontologicamente no mundo natural e isto de várias formas. Em primeiro lugar, o corpo humano é constituído pelos mesmos elementos químicos que entram na formação da natureza mineral em todos os seus níveis. Em segundo lugar os mesmos processos e as mesmas leis químico-fisiológicas básicas que mantém em funcionamento qualquer ser vivo, garantem as funções vitais do organismo humano. Em terceiro lugar, como qualquer outro ser vivo o homem vive numa relação existencial com o meio geográfico que o abriga. O conjunto das atividades fisiológicas necessárias à vida buscam em a natureza a reposição das matérias primas processadas pelas atividades vitais. Da mesma forma a sobrevivência da espécie humana depende das condições climáticas e das matérias primas e dos recursos naturais que lhe garantem abrigo e proteção contra as intempéries e as ameaças oriundas da parte de inimigos humanos e animais predadores. Essa realidade põe-nos frente ao primeiro dos grandes conjuntos de componentes que determinam a gênese de uma identidade étnica e cultural.

A relação primária com o meio  geográfico pelo fato de o homem emergir dele e nele sobreviver, como uma espécie taxonômica igual a qualquer outro mamífero, não pode ser considerado como ponto de partida da identidade étnica e cultural. Este ponto de partida deve ser procurado num outro momento e num outro nível. A identidade étnico-cultural primigênia começa a se esboçar no momento em que entrou em cena o primeiro ser humano em cujo cérebro faiscava a centelha da “inteligência reflexa”. Pouca diferença faz se o fato ocorreu há milhares ou milhões de anos, se foi na África, na Ásia ou em outro lugar qualquer do planeta terra. Pouco importa também, se aquele ser exibia uma fisionomia mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. As regras, as leis e as dinâmicas que até hoje regem a construção da identidade começaram a tomar forma, a partir do momento em que despontou  no cenário desta terra o homem que, com olhar curioso e inquiridor embrenhava-se nas florestas, cruzava estepes, adentrava os desertos, escalava montanhas, percorria as planícies e se banhava nos rios. Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi aprendendo a identificar e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em alimentos, em vestuário, abrigo e proteção. Sem demora  as observações  e as reflexões levaram esses humanos que, ainda hoje, rotulamos erroneamente de “primitivos”, a equipar as mãos com artefatos  e instrumentos que tornavam o acesso  e o manuseio dos alimentos mentos trabalhoso, mais rendosa  caça, mais segura a defesa contra os animais ferozes e mais eficiente a proteção contra as intempéries.

E assim, estavam postas as premissas para começar, lentamente, numa dinâmica auto     alimentada, num ritmo cada vez mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios e montanhas, entre o homem e as estepes, os desertos, os gelos polares, os trópicos e os climas temperados. Ao mesmo tempo em que foi aperfeiçoando e diversificando as tecnologias de fabricação de ferramentas para assegurar a sua sobrevivência física, cresceu o interesse pela compreensão dos fenômenos, das incógnitas e mistérios com que deparava no seu cotidiano. O nascer, o viver e morrer dos animais e dos homens, os ciclos da natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da lua, o germinar, o crescer, o florescer, o amadurecer dos frutos das plantas, tudo desafiava a curiosidade primigênia. E, na procura de respostas tomou forma todo um corpo de crenças, mitologias e simbologias que terminaram por formar uma cosmovisão peculiar para cada situação concreta.

Levado pelo instinto de sobrevivência, o homem foi buscar no seu entorno geográfico os alimentos de que necessitava. E, desde logo, o próprio ato de alimentar-se, vital para a sobrevivência, ultrapassaria o ato elementar instintivamente compulsório, para fazer-se revestir de procedimentos de natureza cultural, como hábitos, costumes, etiquetas, proibições ou tabus. O ato de alimentar-se foi assumindo entre todos os povos as características de um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte integrante das respectivas culturas, ou tratados como algo sagrado, dotado de poderes mágicos, milagrosos, ou então proibidos como maléficos, impuros ou simplesmente nocivos à saúde.

O convívio do homem com a natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como melhor consolidar uma parceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história.

E, neste esforço, três tipos de desafios estimularam a criatividade do homem. Em primeiro lugar, encontrar na natureza os alimentos, abrigos e defesas para garantir a sobrevivência física. Em segundo lugar desenvolver tecnologias cada vez mais eficientes para facilitar a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. Em terceiro lugar, penetrar os mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo e desvendar as incógnitas da própria existência.

A relação imediata, íntima e diuturna com a natureza despertou no homem a clara percepção de fazer parte integrante dela. Além de dela depender para a vida e a morte, a sua vida desenrola-se na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, a humanidade foi construindo suas culturas, suas identidades, suas histórias, seus imaginários, suas simbologias, suas mitologias, suas crenças, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim suas cosmovisões. Tudo que rodeava os homens, por assim dizer, animava-se, personalizava-se de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades e fenômenos naturais assumia vida e importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam ao imaginário. Aconteceu dessa maneira, um espelhar-se recíproco entre o homem e os fatos, fenômenos e realidades do entorno geográfico em que vivia e em meio a esse processo de interação, as culturas foram desenhando seus perfis, as identidades individuais e coletivas definindo suas características e a História traçando seu rumo

Dispensam-se Teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto da constatação com que concluímos a postagem anterior. Entre os povos agricultores, o sol e a lua, imprimindo com seus ciclos regulares a cadência da natureza, tornaram-se referência da própria dinâmica da história. Em torno do nascer do sol, da alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o homem foi elaborando e construindo todo um universo simbólico, todo um universo de costumes, de hábitos, de valores, de crenças, cultos e rituais. O sol definia os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comandava a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse perpétuo fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer, fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos, climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e culturas. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida; o verão o vigor e plenitude adulta; o outono a colheita dos frutos, o inverno o declínio e, finalmente, a morte para, em seguida germinar nova vida e recomeçar o interminável ir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e as fases da vida confundem-se simbolicamente numa única dinâmica. E neste sentido que se fala em primavera da vida ou a idade é contada em primaveras. Pela sua importância, o sol será cultuado como divindade e a lua como deusa. 

No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Apenas alguns exemplos mais. A água indispensável à vida figura como objeto de veneração e não poucas culturas. Água e vida chegam ser sinônimos. As fontes que brotam das entranhas da terra, vem revestidas de propriedades especiais, inclusive mágicas, para curar doenças, rejuvenescer ou regenerar. Por exemplo, banhar-se no primeiro dia do ano numa fonte promete vida longa e saudável. A água entra como elemento simbólico no batismo, na água benta e muitas outras ocasiões. 

Pelo mistério natural que costuma envolver montanhas, vulcões, lagos, mares, florestas, desertos, oceanos, etc., eles terminaram pro personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na foram de crenças, mitos, tabus e outros significados mais. Os deuses e deusas do universo mitológico grego no monte Olimpo, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam com o que acontecia no cotidiano dos mortais. Uma atitude olímpica tornou-se sinônimo de postura sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, acima do bem e do mal. O vulcão Fuji simboliza a própria história do povo japonês. Espíritos que não toleram a presença do homem povoam lagos como o de Lhanguihe no sul do Chile, fazendo com que as proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX.

Poderíamos continuar enumerando ao indefinido os vínculos e as relações das culturas e identidades como entorno físico-ambiental. Não é objetivo aqui pois, esta é apenas uma das condicionantes da identidade étnica e cultural. Outros elementos de importância decisiva não podem ser esquecidos.

Não há a mínima possibilidade de formar uma ideia, nem mesmo superficial, do perfil dos primeiros grupos humanos. As pegadas deixadas por eles apagaram-se a tal ponto, que até nós chegaram apenas alguns vestígios da sua fisionomia física e praticamente nada da sua identidade cultural. A curiosidade, portanto, para saber como eram esses humanos quanto aos seus traços físicos e, principalmente, quanto à sua identidade cultural, não ultrapassam o nível das hipóteses, das teorias e especulações, possíveis com os dados objetivos precários de que   dispomos. Uma coisa, porém, é certa. A matriz original de todas as culturas e identidades étnicas foi apenas, pelo que se pode deduzir, o ponto de partida de uma dinâmica que acelerou o ritmo e multiplicou as formas, na medida em que a história avançava.  O modelo gráfico do globo terrestre utilizado por Teilhard de Chardin para visualizar a evolução da espécie humana, torna mais fácil a compreensão da gênese e multiplicação das formas étnico-culturais. Os meridianos simbolizando as diversas formas culturais partem do mesmo ponto no “polo Sul”. Abrem-se, multiplicam-se e diversificam-se na medida em que se aproximam do equador.  Do equador em direção ao “polo Norte” seguem uma dinâmica inversa. Aproximam-se, fundem-se e tendem a terminar num ponto só no “polo”. Do “alfa”, do ponto de partida tanto geográfico como filético, em algum lugar da África, segundo Teilhard, a humanidade começou a sua trajetória de expansão e ocupação da terra.

Os dados paleoantropológicos e culturais de que dispomos de momento não são suficientes ao ponto de permitir uma reconstituição, passo a passo, da expansão da espécie humana, desde o seu foco de irradiação original. Os indícios apontam para uma ocupação, em ondas sucessivas, de toda a África com uma concentração maior na orla do Mediterrâneo. Seguiu o povoamento, também na forma de vagas sucessivas do oeste para o leste, tomando de assalto toda a Euro-Ásia. Teilhard de Chardin observou três “pulsações” sucessivas, tendo como ponto de partida na pré-história, passando pela proto-história para, finalmente, entrar nos tempos históricos propriamente ditos. A primeira dessas pulsações ou ondas alastrou-se do Sul para o norte pela costa do Pacífico até os contrafortes da Mongólia. Pouca coisa se sabe sobre o nível cultural dessa humanidade primitiva. Sabe-se, entretanto, que o extremo norte desse avanço, em Chukutien, o Sinântropo com domínio sobre o fogo e técnicas de lascamento de pedras, encontrava-se relativamente bem organizado em grupos sociais e, por isso mesmo, dotado de uma considerável força de penetração em novos territórios. A segunda pulsação partiu do norte dos Alpes e não parou de avançar para o leste, até encontrar a costa do Pacífico. Seus vestígios bem caracterizados encontram-se mais visíveis no vale fértil do rio Amarelo na China. Essas vagas humanas tem como protagonistas o homem de Aurignac do Paleolítico Superior. Além do fogo e das técnicas rudimentares de lascamento de pedra, já eram cultores da arte. Sobrepõe-se numa sequência brusca aos depósitos do paleolítico antigo e médio e povoou os espaços que as populações anteriores, pouco numerosas, ainda não tinham ocupado.

A terceira onda começou na entrada do neolítico, com a predominância absoluta do “Homo sapiens” e a saída de cena definitiva de todas as outras raças humanas mais arcaicas. Sempre conforme Teilhard de Chardin, duas grandes áreas geográficas serviram de cenário para o novo estágio civilizatório que teve seu começo com a agricultura e a domesticação de animais. Estas duas formas de subsistência, superando de vez a necessidade constante de os coletores e caçadores se deslocarem, sem parar, por vastos territórios, fazendo com que os agrupamentos humanos não passassem do nível de bandos e hordas nômades. A nova situação trouxe consigo o sedentarismo, pelo menos relativo. Em seu lugar multiplicaram-se coletividades mais numerosas e mais bem organizadas.  O fenômeno evoluiu em duas grandes áreas geográficas.  A primeira, na África do norte mediterrânea e a outra na Euro-Ásia central e norte, desde a Europa Central até a Ásia Central e do Norte.

A essa altura a humanidade encontrava-se no limiar da Pré-História para a História, por volta de 15000 a 20000 anos passados. Demorei-me propositadamente um pouco mais na caracterização da fase que costumamos chamar de Pré-História, para mostrar como a identidade étnica e cultural é uma realidade em permanente construção e em constante evolução, motivada pelas diversas contingências em que a humanidade como um todo e seus grupos individualmente considerados, são obrigados a passar. E para entender melhor essa dinâmica destacamos alguns fatores mais determinantes que atuam na história.

O mais importante foi, sem dúvida, o fato de o homem distinguir-se e distanciar-se de todas as outras espécies de animais, também dos antropoides, pela “Inteligência Reflexa”. Sob o aspecto físico, anatômico, fisiológico, biogenético e instintivo, o homem tem suas raízes fincadas ontologicamente na Biosfera. Mas distancia-se dela e a ultrapassa de vez pela Inteligência Reflexa, ou pela capacidade de Reflexão. Esta eleva a espécie humana a uma esfera inteiramente nova: a Noosfera como a chamou Teilhard. O potencial dessa novidade é de tal ordem que sobre a Litosfera, a Biosfera e a Hidrosfera, envoltas na atmosfera, alastra-se pela terra, em progressão geométrica, a urdidura da trama da Noosfera. Se a espécie humana tivesse sido apenas mais uma espécie de antropoide, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou então, reduzida a uma espécie condenada a sobreviver sem grandes perspectivas. Suas mãos não especializadas servem para tudo e, por isso mesmo, não servem para nada de específico. Seus dentes caninos servem para pouca coisa mais do que completar a arcada dentária. Seus sentidos pouco apurados não garantem os alertas e alarmes indispensáveis num entorno no qual, atrás de cada árvore, cada rocha, cada arbusto ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem.

[ Reflexões ]

A lógica que preside o esforço do homem no entender o que ocorre em seu derredor e de alguma forma prever e escolher caminhos e assim consolidar uma parceria com ele, nada mais é do que a via pela qual se consolida o conhecimento. Conhecimento no sentido rigoroso conceito, portanto, só é possível quando consegue formular uma explicação compreensiva, possível somente com o concurso de todas as formas de aproximação possíveis, com o potencial dos instrumentos teóricos e metodológicos disponíveis. 

Colocada a questão nessa perspectiva, quanto mais se recua na história, tanto menos “científico” e tanto menos “racional” se mostra o conhecimento. Isso não significa, porém, que sua eficácia tenha sido menos importante e menos determinante para a função do que lhe cabia na vida individual e coletiva. Aliás a importância do conhecimento que com certo desprezo, com ar de superioridade e até com certa complacência, não poucos rotulam de “pré-científico”, é muito maior do que se quer admitir. Basta percorrer qualquer um dos corpos do conhecimento consolidados durante milênios pelas culturas do oriente, com destaque para a chinesa, japonesa, da indiana, coreana e outras mais. Mesmo Ernst Bloch, um dos mais respeitados pensadores ocidentais do século XX, despertou para a ideia-motriz que impulsionou e norteou todo o seu pensamento, nos romances de aventura de Karl May, descrevendo os índios da América do Norte. Aquela paisagem intocada de pradarias sem fim, povoadas por índios caçando búfalos em total liberdade, forneceu-lhe o conceito-chave de todo o seu pensamento; “Heimat”, que poderíamos traduzir por “querência”. Sua concretização só é possível onde reina a absoluta liberdade e harmonia. Onde há liberdade existem possibilidades onde há possibilidade existe esperança, onde há esperança, a harmonia entre todas as coisas faz com que o homem se sinta “em casa”, numa querência, numa Heimat”. E deixando de lado o racionalismo científico, o rigor da lógica aristotélica-tomista e a doutrina teológica do Deus Criador, Bloch colocou “a matéria animada” orientada para um objetivo final por ele denominado de “Ideal do Bem”. Chegado ao término do processo evolutivo “o Bem como tal” estará realizado. Paul Heinz Koesters resumiu assim o pensamento de Bloch:

No momento em que a matéria tiver concluído o processo da evolução ao nível em que se encontra de momento, o “bem como tal” estará concretizado. O cosmos, o nosso mundo, os animais e os homens, todos feitos de matéria, ao final do processo estarão reconciliados. Reinará então a situação para a qual tudo – as pedras como o homem, as estrelas como as moscas na parede – convergem (sehnen sich) consciente ou inconscientemente: a Harmonia. Nesse momento finalmente o cosmos inteiro tornou-se “Heimat – Querência”. (Kösters, 1981, p. 300).

Essa abertura para uma cosmovisão que percebe a unidade nas partes, o todo na diversidade, a verdade na multiplicidade das doutrinas, bate de frente na contramão com a pós-modernidade. Para ela o que interessa são as partes. Nos laboratórios dos pesquisadores, nos gabinetes dos analistas da sociedade e da economia, nas redações dos meios de comunicação, nos discursos e manifestações dos políticos e burocratas, nas preocupações dos governantes, não há lugar para o Todo e a Verdade. O que decide são os fatos do momento, as ocorrências da hora, a oportunidade senão o puro oportunismo. Não há nenhuma, ou no máximo pouca preocupação em buscar as raízes históricas, o significado mais profundo dos acontecimentos. O que importa é o impacto do momento, o barulho, o estardalhaço, a dissonância. A preocupação por paradigmas, balizas norteadoras e princípios que presidem as ações dos indivíduos e das coletividades, senão ignorados acham-se em cotação baixa. 

O alerta contra essa opção generalizada para o comportamento das massas, vem sendo dado exatamente por representantes de áreas científicas nas quais os métodos e instrumentos de investigação avançaram mais em especialização. Por enquanto trata-se de vozes isoladas. Mas o que autoriza a esperança da reversão do quadro descrito acima, é a autoridade e o peso desses cientistas. Um deles é nada menos do que Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético do homem. O próprio título da sua obra “A Linguagem de Deus”, sinaliza para o rompimento dos paradigmas e dogmas intocáveis do racionalismo científico. A certa altura das suas reflexões o Dr. Collins nos deixa um parágrafo que convida a pensar, a refletir e meditar.

Ironicamente, outro motivo importante para a visibilidade da posição do Bio-Logos é justamente a harmonia que essa cria entre as facções beligerantes. Como sociedade, não parecemos atraídos pela harmonia, mas pelo conflito. Em parte, a culpa é dos meios de comunicação; entretanto eles apenas atendem aos desejos do público. Por meio dos telejornais, você provavelmente fica sabendo de colisões envolvendo inúmeros carros, furacões destrutivos, crimes violentos, divórcios conturbados de celebridades e debates ásperos entre professores sobre ensinar a teoria da evolução. Provavelmente você não ouviu nada a respeito de reuniões de grupos de vizinhança de credos diferentes para tentar resolver os problemas da comunidade, nem sobre a transformação de Anthony Flew, que por toda vida foi ateu e passou a acreditar em Deus, e com certeza nada sobre a evolução teísta ou sobre o arco íris duplo desta tarde sobre a cidade. Adoramos conflito e discórdia, e quanto mais cruel, melhor.  No meio acadêmico, música e arte produzidos com seriedade pelos seus membros parecem festejar sua dificuldade em serem ouvidas e apreciadas. A harmonia é chata.  (Collins, p. 209-210)

E os noticiários confirmam cada vez mais a preocupação do Dr. Collins. Enquanto redijo essas linhas uma fatia predominante dos noticiários de todos os meios de comunicação do País, volta-se para o julgamento do casal Nardoni, acusado de ter asfixiado e ter jogado a filha do sexto andar de um prédio em São Paulo. A movimentação da policia, o translado dos acusados da prisão para o recinto do julgamento, o aparato do tribunal, o frenesi das rádios e canais de  televisão, as manchetes de primeira página dos jornais, o acotovelar-se  dos curiosos, as opiniões emocionadas e emocionais, beirando à histeria, dos entrevistados nas ruas, as fisionomias de apocalipse de alguns apresentadores de telejornais, envolve o caso num cenário no qual um  misto de sadismo, masoquismo e prazer mórbido, comandam a cacofonia. Na mesma direção e no mesmo nível foi anunciado um acidente provocado, pelo que se presume, por duas camionetas praticando racha numa das rodovias mais movimentadas do Rio Grande do Sul. Uma delas perdeu o controle e o radialista escolhendo os termos foi descrevendo: O motorista perdeu o controle do veículo, atravessou o canteiro central da  rodovia, derrubou todas as placas de sinalização que encontrou pela frente e despedaçou um carro que vinha na direção contrária, matando as três pessoas que se encontravam nele, a si próprio e seu acompanhante. Na sequência das notícias do começo do dia, constam ainda mortes por assassinato, assaltos, etc., etc. Nenhuma notícia que fosse capaz de munir as pessoas com um pensamento positivo para enfrentar a rotina do novo dia. E ai daquele que se atreve a lembrar aos comunicadores que já estaria na hora de baixar um pouco o volume das trombetas que saciam a curiosidade do povo avesso à harmonia, ao sossego e ao lado humano da sociedade. A resposta vem pronta e cortante: É o público que assim o exige!” Não há como não concordar com o Dr. Collins: “A harmonia é chata”. 

Outra autoridade reconhecida como um dos biólogos mais respeitados mundialmente, é Edward Wilson. Em 1978 ele publicou o livro “On Human Nature (Cambridge Harvard University Press, 1978). Nele faz uma observação que o Dr. Collins classificou como “palavra forte”. Wilson citado por Collins escreveu naquela obra:

A arma decisiva apreciada pelo naturalismo científico virá com sua capacidade de explicar a religião tradicional, sua competição entre líderes, como um fenômeno totalmente material. Não é provável que a Teologia sobreviva como uma disciplina intelectual independente. 

Em 2006 Edward Wilson publicou um novo livro com o título: “The Creation – an appeal to save live on Earth”. Salvo melhor juízo, essa obra revela uma radical mudança de posição do autor. O livro em forma de diálogo dirigido a um pastor evangélico, convida-o para um esforço comum entre a ciência e a teologia, a fim de salvar a vida sobre a terra. Não se notam mais vestígios das “palavras fortes” de trinta anos passados. Pelo contrário. O ilustre professor e cientista de Harvard faz um convite, melhor talvez, um apelo a um pastor fundamentalista, para de mãos dadas, Ciência, Religião e Teologia, resolverem as intrincadas questões que envolvem o binômio Homem-Natureza. Rendeu-se, ao que parece, à evidência de que as abordagens unilaterais não bastam para entender e, consequentemente, para enfrentar com sucesso as grandes questões que dizem respeito à relação do homem com a natureza. Eis o resumo de sua posição e o apelo ao esforço mútuo:

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas tem um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos pessoas éticas, patrióticas altruístas, mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos, com a mesma intensidade, santificar a vida humana, compartilharmos o amor pela Criação. (Wilson, Edward, 2007, p. 188)

A mesma convicção de que está na hora de deixar de lado as reivindicações dos donos da verdade, tanto do lado das Ciências do Espírito quanto das Ciências Naturais, é partilhada por muitos outros cientistas. Fundaram até uma associação cujos associados creem em Deus: a “American Scientific Affiliation”. 

Os gigantescos avanços dos conhecimentos nos campos da química, física, astronomia, biogenética e outros, tornados possíveis por um complexo e sofisticado arsenal de tecnologias de investigação, vem multiplicando as manifestações de reconhecidas autoridades científicas, sinalizando para uma convergência no entendimento das questões de fundo. Pondo de lado uma linguagem feita de conceitos completamente fora do alcance da compreensão dos não especialistas, nota-se um sincero esforço para tornar as conquistas científicas compreensíveis para o comum dos mortais, fora dos laboratórios e longe dos congressos de especialistas. Para o grande público conceitos como Big Bang, fóton, elétron, quark, quanta, etc., etc., localizam-se fora do âmbito da compreensão. Para os cientistas o desvendar progressivo das incógnitas da natureza, abre caminho para entender o comportamento dos fenômenos naturais, a inter-relação entre eles e o papel que lhes cabe nos níveis superiores de complexidade nos quais se inserem. Passo por passo a própria Ciência e representantes paradigmáticos do seu meio, formulam alternativas de interpretação nada convencionais, melhor talvez, impensáveis há não muitas décadas atrás. A convicção que se percebe nas entrelinhas do livro do Dr. Francis Collins, permite mais um testemunho seu: 

Apesar de eu, no fim das contas, passar da ciência física à biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, que descrevem a realidade do mundo natural, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apelo estético. Isso levantou a primeira de várias perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Por que a matéria se comporta dessa maneira? Citando a frase de Eugen Wigner, qual seria a explicação para a “inexplicável eficiência da matemática?” Não seria nada além de um feliz acidente ou referência a alguma intuição profunda na natureza e como outros ter encontrado o divino? (Collins,  2007, p.)

Collins cita ainda “Uma breve História do Tempo” de Stephen Hawking, e como observa, “em geral nada dado a contemplações metafísicas”. 

No entanto, se de fato descobrirmos uma teoria completa, todos acabarão compreendendo seus princípios amplos, não apenas alguns cientistas. Então poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão de o    por-que de nós e o universo existirmos. Se descobrirmos a respostas para isso, será o triunfo supremo da razão humana – pois, então, conheceremos a mente de Deus. (Hawking, 2015, p. 229)

Interrogações, interrogações e mais interrogações, perguntas e mais perguntas. E destinam-se a responder o que? Resumindo, externam a ânsia do homem em saber como surgiu o universo cósmico e nele o mundo que nos rodeia; como surgiu o homem, o que é o homem, qual a sua razão de ser e qual o seu destino; qual é o lugar ou não lugar de Deus nesse cenário de tantas incógnitas. Encontrar enfim a Verdade, o Todo na multiplicidade das doutrinas, eis o desafio maior.